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crescimento urbano desordenado, e aposta na tecnologia como causa desse
vazio interno, desse deserto de relações na alma humana. Na Argentina ou
nos Estados Unidos, o argumento é o mesmo: a solidão no século XXI não é
mais a busca sublime do fugere urbem (que vazou de Horácio ao Arcadismo e,
dele, para o cinema contemporâneo, passando pelo Romantismo do XIX), a
contemplação de Caspars Friedrich. Tornou-se uma doença, um distúrbio,
algo a ser evitado. Amar uma não coisa, se voltarmos a Heidegger, pode nos
tornar coisa, nos tornar dependentes de algo sem consciência. Renunciamos à
nossa condição humana para ter um mínimo de conforto, pois a solidão deixa
de ser condição para a liberdade e passa a ser ponto de partida para a doença,
para a tristeza, para a melancolia.
Por fim, vale voltar à chama da vela. Precisamos terminar o capítulo
lembrando de mais um poder da luz artística: seu poder xamânico, curativo.
Alain de Botton tem uma frase muito feliz, quando raciocina sobre como o
contato com a arte faz com que as pessoas se sintam menos solitárias:
“Pessoas que vivessem o tempo todo felizes jamais iriam a uma livraria ou
ouviriam música”. Ou seja, a tristeza e a melancolia de nossos dias, a raiva e
as explosões que temos, a desumanização de nossos dias líquidos podem ser
diminuídas pela arte. A arte e a capacidade de amenizar a solidão, de nos
fazer pensar, de nos aproximar e sentir. Como no delicado e cortante filme A
liberdade é azul (Krzysztof Kieslowski, 1993), da Trilogia das cores. Um terrível
acidente mata um pai e sua filha. Sozinha, a mãe, uma modelo famosa
(Juliette Binoche), é levada às raias da loucura. Tenta o suicídio. Em
desespero, a jovem recupera as músicas inacabadas do marido. Por meio da
música e de tudo o que de memória ela contém, o interesse pela vida é
lentamente retomado.