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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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industrializados ao seu demiúrgico cotidiano. É tentador pensar essa

magnífica série como o reverso da moeda pintada por Edward Hopper. A

solidão é um tema forte na vasta obra (embora ele mesmo tenha negado isso)

desse artista norte-americano e é a que mais mexe comigo. Digo que é,

anacronicamente, o reverso de Tkachenko, pois mostra que a solidão é a

condição moderna, seja na cidade e sua multidão de gentes, cores e sons, seja

fugindo para o meio do mato tentando reativar, romanticamente, a solidão

contemplativa.

O quadro que sempre me chamou mais atenção é Automat, de 1927. Na era

pré-internet, uma moça elegante e solitária é obrigada a conversar com sua

xícara dentro de uma lanchonete. Doze anos depois, ele pintou a solidão da

funcionária do cinema. A trabalhadora entediada com o local que, para os

outros, é de lazer. A força dos quadros dele é algo impossível de descrever.

Suas imagens carecem propositadamente de detalhes, como que nos

convidando a preencher o que falta com nossa imaginação. Somos nós que

devemos supor a razão de tanta solidão em meio ao caos urbano. São imagens

de indivíduos sozinhos, seus olhos vazios a olhar por janelas ou vistos por

uma janela. O vidro das janelas cria uma sensação de aquário, de barreira

entre as pessoas. Mas, se não estivesse ali, estariam os retratos menos

sozinhos? Parece-me que não. Há algo nas grandes cidades que repele o outro

e me ensimesma. Perdido em minha própria solidão, ao lado da solidão da

pessoa ao meu lado, a cidade desconecta as pessoas. Ao menos é assim que

Hopper a pinta. A cidade não diminui a solidão: amplifica-a. As pessoas são

ainda mais sozinhas quando ao lado de outras, anônimas, olhando suas

bebidas, imersas em seus próprios problemas. A tela Nighthawks foi descrita

pela escritora Joyce Carol Oates como a “mais pujante e incansavelmente

replicada imagem da solidão americana”. Essa cena icônica é simplesmente a

cena de um jantar. Dentro de uma janela, vemos quatro figuras humanas

iluminadas por luz amarela. Um cliente de costas, um casal e um atendente

mais jovem. Ninguém conversa com ninguém dentro daquele restaurante.

Nem sequer olham um para o outro (à exceção do garçom, que parece esperar

ou atender um pedido). A questão que se põe: a solidão é anterior ao

restaurante e ele apenas a contém ou serve de esperança de refúgio? Ou o

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