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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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Talvez o maior ícone da solidão romântica seja o Viajante sobre o mar de

névoa, do pintor alemão Caspar David Friedrich. O óleo é de 1818 e se encontra

no acervo da Kunsthalle de Hamburgo. Vemos um homem solitário, de costas

para nós, apreciando uma paisagem alpina do topo de um pico rochoso. O

solitário contemplativo está acima das nuvens, que se dissipam ou se

concentram em áreas da pintura que estão abaixo de seus pés. Não é um

nefelibata, mas alguém acima das nuvens. Quando algo irrompe do intenso

nevoeiro abaixo, vemos pedras e mais picos. Abaixo das nuvens, o mistério.

Friedrich deixa apenas à nossa imaginação a faculdade de pensar de onde

partiu o homem e o que ele veria se as nuvens não estivessem ali. A sensação

é de infinito, de reflexão pela contemplação. Quando examinamos mais de

perto, percebemos que as roupas do solitário não são as de um alpinista.

Logo, ele não deve estar tão alto assim, mas talvez em um prado perto de um

rio sob intensa neblina. Impossível saber, impossível não tentar adivinhar. O

homem no pico enevoado torna-se uma extensão de nós mesmos. Fomos

convidados à tela sem perceber. O mistério e a delícia da contemplação

solitária trazem inequívoco perigo (imagina torcer o pé sem ter ninguém por

perto, longe de tudo? Pensemos num escorregão do personagem...), mas

igualmente trazem liberdade. Estar só é condição para ser livre. Ali estamos

menos sós.

Esse pessimismo com a vida comezinha e o desejo pela solidão libertadora

atravessaram o século XIX e plasmaram-se no filme Na natureza selvagem, de

Sean Penn (2007). A história é real. Um jovem norte-americano, Christopher

McCandless, forma-se em história e antropologia e, influenciado por leituras

de Henry David Thoreau e Tolstói, resolve romper com o mundo e queimar os

navios. Doa todo o seu dinheiro para a caridade, abandona o carro, pais,

amigos e, com pouco mais do que a roupa do corpo, alguns mantimentos,

livros e uma espingarda (afinal, é mais difícil abandonar o gosto americano

pela Segunda Emenda), lança-se sem direção em busca de uma existência

mais pura. Chega até o México. De lá, ruma para o Alasca. No meio da

natureza selvagem, que dá título ao filme, morre enquanto morava num

ônibus abandonado. A causa da morte é incerta, talvez inanição, talvez

envenenamento por ter confundido uma planta comestível com outra

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