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Edição de 28 de setembro de 2020

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STORYTELLER<br />

Damiano Baschiera/Unsplash<br />

Cacos <strong>de</strong> passado<br />

Nas páginas amareladas faço<br />

uma volta encantadora, para<br />

<strong>de</strong>scobrir que em alguns aspectos<br />

a propaganda não mudou<br />

LULA VIEIRA<br />

Minha mulher <strong>de</strong>cretou que meu escritório<br />

doméstico é uma pouca-vergonha.<br />

A primeira reação foi a <strong>de</strong> dizer que<br />

era meu estilo, que é muito tar<strong>de</strong> para mudar.<br />

Quase apanhei.<br />

Tive <strong>de</strong> ouvir que não se tratava <strong>de</strong><br />

uma questão literária. Era sujeira mesmo.<br />

Pare<strong>de</strong>s sujas, sofá molambento, livros<br />

espalhados, poeira. Um moquifo. Daí,<br />

sob pressão, precisei pilotar uma reforma<br />

geral e uma tentativa <strong>de</strong> arrumar o inarrumável.<br />

Para compensar o sacrifício <strong>de</strong> criar uma<br />

or<strong>de</strong>nação mínima para montanhas <strong>de</strong> livros,<br />

papéis soltos e recortes, apareceram<br />

coisas <strong>de</strong>slumbrantes.<br />

Encontrei exemplares da Revista Propaganda<br />

(que pertence ao PROPMARK), <strong>de</strong><br />

mais <strong>de</strong> 50 anos atrás. Registre-se que já<br />

tinha comprado estes volumes como antiguida<strong>de</strong>,<br />

antes que me chamem <strong>de</strong> velho.<br />

Nas páginas amareladas faço uma volta<br />

encantadora ao passado, para <strong>de</strong>scobrir<br />

que em alguns aspectos a propaganda não<br />

mudou. Uma das coisas que me chamaram<br />

a atenção foi um artigo do publicitário Rubem<br />

Braga (ele mesmo, Rubem Braga, o<br />

gran<strong>de</strong> cronista, já foi publicitário).<br />

Com o título Anúncios, ele fala <strong>de</strong> seus<br />

problemas como redator <strong>de</strong> propaganda.<br />

Vale a pena reproduzir um trechinho. Com<br />

o <strong>de</strong>vido respeito e abrindo as indispensáveis<br />

aspas, aí vai um naco do artigo assinado<br />

pelo gran<strong>de</strong> Rubem Braga.<br />

“Passei meu dia mexendo e remexendo<br />

no texto <strong>de</strong> um anúncio. Era um produto<br />

novo que vai ser lançado. Não sou nenhum<br />

perito neste ofício, embora não me falte<br />

certa prática. Ou melhor: sei apenas o bastante<br />

para saber como é difícil.<br />

O leitor comum não po<strong>de</strong> imaginar que<br />

um anúncio é tão trabalhoso como um<br />

soneto. O poeta e o redator <strong>de</strong> anúncios<br />

não po<strong>de</strong>m fazer como o jornalista e o prosador<br />

comum, que usam as palavras com<br />

certa folga. Têm <strong>de</strong> medi-las, estudar-lhes<br />

com minúcia o sentido preciso, o som e o<br />

tamanho.<br />

Têm <strong>de</strong> examinar a frase <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> escrita,<br />

pesar sua força, limpá-la <strong>de</strong> todo supérfluo,<br />

imaginar o efeito psicológico que ela<br />

po<strong>de</strong>rá ter.<br />

Têm <strong>de</strong> se transferir para a alma do consumidor,<br />

<strong>de</strong>spertar a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> comprar,<br />

apelando para seu conforto, seu senso <strong>de</strong><br />

economia, sua vaida<strong>de</strong>, seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> êxito<br />

social ou amoroso.<br />

Ontem, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> passar algumas horas<br />

mexendo com um único anúncio, tive <strong>de</strong><br />

redigir uma crônica para uma revista.<br />

Bati página e meia a máquina com rapi<strong>de</strong>z,<br />

quase com satisfação, como um sujeito<br />

que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> andar muito tempo na areia<br />

fofa, chega a uma estrada <strong>de</strong> terra firme.<br />

Valerá alguma coisa para o escritor o<br />

treinamento publicitário com toda sua minuciosa<br />

disciplina?<br />

Não lhe será esse serviço militar útil para<br />

<strong>de</strong>senvolver nele o senso <strong>de</strong> economia<br />

verbal, <strong>de</strong> precisão, <strong>de</strong> clareza, <strong>de</strong> força <strong>de</strong><br />

sugestão e lógica?<br />

Em tese, sim. Na prática, porém, isso talvez<br />

<strong>de</strong>penda do temperamento do escritor.<br />

O homem que passa o dia inteiro escrevendo<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma técnica tão estrita,<br />

em que se exige o máximo <strong>de</strong> imaginação<br />

aliada ao máximo <strong>de</strong> concentração e <strong>de</strong> respeito<br />

a fatores objetivos e utilitários, po<strong>de</strong><br />

muito bem, em sua hora <strong>de</strong> folga entregue<br />

à literatura, ter vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever coisas<br />

assim:<br />

‘A lua <strong>de</strong> agosto semeava crisântemos e<br />

bicicletas ver<strong>de</strong>s no abril <strong>de</strong> teu sonho <strong>de</strong><br />

mariposa castanha...’”.<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />

e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />

editor e professor<br />

lulavieira.luvi@gmail.com<br />

22 <strong>28</strong> <strong>de</strong> <strong>setembro</strong> <strong>de</strong> <strong>2020</strong> - jornal propmark

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