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PENEIRA_Fabulaçoes do Territorio_2021_PDF (1)

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MEMÓRIA

TERRITÓRIO

PESQUISA

HIBRIDAÇÃO DE

LINGUAGENS


FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO

Rua Joaquim Silva

Organizadores _

Priscila Bittencourt e Luiz Fernando Pinto

Rio de Janeiro, 2020

Associação Cultural Peneira

realização

apoio


© Associação Cultural Peneira | 2020

Título

Fabulações do Território - Rua Joaquim Silva

Realização PENEIRA

Priscila Bittencourt - Diretora de Arte, Projeto e Comunicação

Taty Maria - Assessora Administrativa

Alex Teixeira - Relações Institucionais

Luiz Fernando Pinto - Diretor Presidente

Organização

Priscila Bittencourt

Luiz Fernando Pinto

Preparação

Luiz Fernando Pinto

Projeto gráfico

Eduardo Barves

Capa

Priscila Bittencourt

Revisão

Alvanisio Damasceno

Autores

Ana Cláudia Souza

Domitila Almenteiro

Júlia Cabo

Priscila Bittencourt

Alex Teixeira

Guilherme Lopes

Hugo Cruz

Luiz Fernando Pinto


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Fabulações do território : Rua Joaquim Silva

[livro eletrônico] / organizadores Priscila

Bittencourt e Luiz Fernando Pinto.

Rio de Janeiro : Associação Cultural Peneira,

2020.

PDF

Vários autores.

ISBN 978-65-990910-2-5

1. Comunidade 2. Espetáculo 3. Lapa (Rio de

Janeiro, RJ) 4. Performance (Arte) 5. Rua Joaquim

Silva (Rio de Janeiro, RJ) 6. Teatro I. Bittencourt,

Priscila. II. Pinto, Luiz Fernando.

20-39386 CDD-792

Índices para catálogo sistemático:

1. Performance : Teatro 792

Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427


1ª edição [2020]

Associação Cultural Peneira

Rua da Glória, 18A

Glória, Rio de Janeiro - RJ

CEP 20.241-180

+55 21 97205-0842

www.peneira.org


A PENEIRA

Criada em 2010 no Rio de Janeiro, a Peneira é uma trama

articulada no cotidiano da cidade, cuja a conexão entre

pessoas e a representação de saberes do dia a dia

perpassam as práticas e suas investigações artísticas,

culturais e sociais. Reconhecida pelo MinC como Ponto de

Cultura, recebeu, através da Comissão de Cultura da Alerj,

o diploma Heloneida Studart 2019 de reconhecimento

pelas práticas culturais realizadas no estado do Rio de

Janeiro. Assim como os diversos cruzamentos que

compõem a metrópole, a Peneira traça seus projetos a

partir da confluência de linguagens artísticas, atreladas à

práticas metodológicas de pesquisa em torno da memória,

oralidade e cotidiano, propondo estratégias de

viabilização, mobilização e processos propulsores de

geração de impacto nos territórios em que atua.

Mais informações, acesse www.peneira.org


APRESENTAÇÃO

Desde a sua criação em 2010, o grupo Peneira vem experimentando

trabalhos com teatro, performance, poesia

e cinema, tendo como fio condutor o imaginário popular

dos moradores do Rio de Janeiro. Foi diante desses

estímulos que os diretores Priscila Bittencourt,

Alex Teixeira e Luiz Fernando Pinto criaram o método

Fabulações do Território, que conecta essas linguagens

com referências etnográficas, do Cinema Verdade, Teatro

do Oprimido, Teatro de Vizinhos e Teatro Documentário,

onde moradores e artistas ficcionam a partir das

memórias e do cotidiano de determinada comunidade.

Para inaugurar o método, o grupo elegeu a Rua Joaquim

Silva - localizada entre os Arcos da Lapa e a extinta Praia

Areias de Espanha, onde hoje está a Avenida Augusto

Severo - como local de pesquisa, e por lá espalharam

cartazes e faixas convidando os moradores a participarem

de um processo artístico de três meses. O resultado é o

espetáculo itinerante ‘Sorte ou Revés’, que tem o texto

assinado pelos três diretores.


O projeto foi contemplado com o prêmio Culturas

Populares - Edição Teixeirinha, outorgado pelo Ministério

da Cidadania. Esta publicação é parte do escopo do

Fabulações do Território, reúne textos de artistas, moradores

e público que tiveram contato com essa experiência.

“Sorte ou Revés” traz a tona questões relacionadas a

micropolítica, quando um grupo de moradores da

Rua Joaquim Silva se junta para realizar um bingo,

e é surpreendido pela chegada de um pesquisador em

busca de informações sobre a cantora Carmen Miranda,

e o anúncio de um ciclone que se aproxima da cidade.

Neste contexto, o público é convidado a jogar o bingo

com os atores, enquanto são reveladas histórias sobre

personagens da Lapa e suas riquezas. Passado e promessas

de futuro se encontram entre as pedras cantadas.


SUMÁRIO

11

A incansável construção de um método de

trabalho artístico

Alex Teixeira

19

“Paga nada não, pode entrar!”

Júlia Cabo

29

Fabular a cidade e a nós

Guilherme Lopes

38

O que te atravessa quando você atravessa

Domitila Almenteiro

45

Tecendo a trama, ligando os pontos

Luiz Fernando Pinto

59

Sobre fabular um método e uma rua

Priscila Bittencourt

83

“Sorte ou revés”: impressões de uma noite

de teatro numa rua na Lapa ou

Rua Joaquim Silva: palco, cenário, inspiração

Ana Cláudia Souza

88

“Sorte ou Revés” ou a vida como ela é!

Hugo Cruz

100

Imagens do acervo de fotografias do

Instituto Moreira Salles


A incansável

construção

de um método de

trabalho artístico

Por Alex Teixeira


É curioso escrever sobre o método Fabulações do

Território em perspectiva, justamente no ano em

que a Peneira completa uma década, e no exato

momento que vivemos. Estamos em abril de 2020,

confinados em casa e diante da maior crise

enfrentada pela nossa geração. A crise da covid-19.

Nesses dias de quarentena, tive a oportunidade de

conversar com algumas pessoas por videochamada,

abrir gavetas e vasculhar HDs antigos em busca de

reconexões com o passado, para uma tentativa de

entendimento do momento presente e, quiçá,

de projeção de futuro.

Talvez neste exato momento em que escrevo,

esteja em curso uma das maiores mudanças no

campo da cultura dos últimos anos. Falo da

relação entre artista e espectador, seja pela forma

de recepção do conteúdo, seja pela influência

que o público passa a exercer sobre a obra.

E olhando de maneira mais atenta a isso, percebo

que, na trajetória da Peneira, sempre estivemos

em busca dessa troca mais íntima e horizontal,

12 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


tentando de alguma forma borrar os obstáculos

entre a plateia e o espetáculo. Isso se esgarça

justamente no Fabulações do Território, que,

entre outras coisas, propõe uma construção criativa

entre artistas e aqueles que eventualmente

poderiam ser meros observadores, mas que

viram não somente parte, mas todo o processo.

Processo esse – como vemos hoje nas lives

de artistas no Instagram – que tem papel

fundamental e peso igual, ou até mesmo

superior, ao do produto apresentado no palco.

Entendo essa relação com o público como uma

das buscas por identidade de grupo, assim como

a interdisciplinaridade dos integrantes – fato

presente desde a primeira formação da Peneira

–, os atravessamentos da cidade, a confluência de

linguagens artísticas e a memória. Alguns desses

pilares emergiram de maneira muito despretensiosa

com a performance Mercadão de Madureira (2013),

criada num outono para o Festival de Teatro

Universitário (Festu). Nascida no palco do extinto

PENEIRA 13


Teatro Tom Jobim, no Jardim Botânico do Rio

de Janeiro, ela pereceu ali mesmo, justamente por

ter causado um estranhamento em parte da

plateia e em alguns artistas que compunham o

trabalho e que estavam em busca de um teatro

pautado no naturalismo e nos dilemas humanos da

contemporaneidade. A composição se iniciava com

um processo de defumação do teatro, e o texto

discorria acerca de um encontro entre o presidente

Juscelino Kubitschek e um caboclo de umbanda,

que segundo relatos de Fernando Collor de Melo,

era D. Pedro I em outra encarnação. A história real,

ocorrida em 1959 durante a reinauguração do

Mercadão, foi levada à cena com uma dose de

fabulação. Após aquela apresentação, o processo

de negação e distanciamento de parte do grupo

com a obra foi evidente. O Mercadão , repleto de

memórias e atravessamentos da cidade, gerou

descontentamento, virou tabu entre a gente,

e mal sabíamos que ali existiam elementos do

embrião de um método de trabalho.

14 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


Nosso primeiro projeto que propunha deslocar o

público do lugar de espectador para dentro da ação

foi a intervenção poético-funcional As águas vão

rolar (2014), uma performance que realizávamos

periodicamente na Praça Luana Muniz, na Lapa,

inspirada em cânticos de trabalho e que rediscutia

a questão da limpeza e a ocupação dos espaços

públicos como lugares de criação. Em cena, uma

percussionista se misturava a artistas e moradores,

que, com suas vassouras, água de cheiro,

sal grosso e sabão em pó, esfregavam a calçada

e evoluíam numa espécie de ritual-espetáculo.

Esse ritual passou a servir de abre-alas para

o Sarau do Escritório (2013), uma das iniciativas

mais longevas do grupo e que serviu de elo entre

pessoas, referências e experimentações.

Ali trabalhamos dramaturgias pautadas em temas

da atualidade, articulação com o território,

memória, construção em rede, e iniciamos um

processo de hibridização de linguagens.

Tempos depois, passamos a entender o Sarau

do Escritório como um grande espetáculo de

PENEIRA 15


variedades, que tinha como referências algumas

composições do Cabaret Voltaire e números de

Teatro de Revista.

Muitas influências também surgiram a partir

da oficina Teatro e sua arte pop: corpo e cidade

(2014), aplicada em diferentes territórios, com os

mais variados públicos, sempre mesclando profissionais

das artes com pessoas que não necessariamente

trabalham no campo da cultura, e tendo

a cidade como elemento transversal para as

criações. Outro projeto da Peneira que tinha a

cidade como elemento balizador era o Cine Vila

(2016), que explorava o encontro entre o cotidiano

da Praça Tobias Barreto, em Vila Isabel, e as artes

visuais, com ênfase no audiovisual nacional

independente, e debates e reflexões sobre

fazeres artísticos.

Em 2016, começamos a juntar as confluências de

diversos trabalhos executados nos anos anteriores,

e criamos o projeto Teatro e Território, que tinha

16 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


como principal referencial teórico o conceito de

Arte e Comunidade, mas ainda aplicado exclusivamente

à linguagem do teatro. Desse processo

nasceu o espetáculo Yaperi: aquilo que flutua

(2017), sobre as memórias ficcionadas da cidade de

Japeri. Ainda em 2017, radicalizamos as pesquisas

para dentro de casa, revimos tudo o que tínhamos

feito até então, descobrimos novos elementos,

acrescentamos tantos outros, e assim nasceu o

método Fabulações do Território, que, em linhas

gerais, é um processo artístico que conecta

diferentes linguagens, como: poesia, cinema,

teatro e música, com referências etnográficas,

do Cinema Verdade, Teatro do Oprimido, Teatro

de Vizinhos e Teatro Documentário, em que

moradores e artistas ficcionam a partir das

memórias e do cotidiano de determinada comunidade,

e geram um espetáculo em que todos

os envolvidos são protagonistas da obra.

Nossa primeira experiência com o método

Fabulações do Território se deu em 2018, na Rua

Joaquim Silva, e originou o espetáculo itinerante

PENEIRA 17


Sorte ou revés (2019), que ficou em cartaz por um

mês, durante o verão, num cenário pré-carnavalesco

de uma rua da velha Lapa do Rio de Janeiro.

Que venham novas fabulações!

Alex Teixeira é artista multidisciplinar, mestrando

em Cultura e Territorialidades pela Universidade

Federal Fluminense e bacharel em Comunicação

Social. Co-fundador da Peneira, desenvolve seus

trabalhos em espaços não convencionais,

utilizando-se do conceito de artes híbridas.

18 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


“Paga nada não,

pode entrar!”

Por Júlia Souza Cabo


Quando perguntei ao Alex como a ideia da peça

Sorte ou revés havia surgido, ele pacientemente

me contou a história do grupo Peneira, as diversas

experiências estéticas e de linguagens que eles

haviam realizado, e as colaborações e alianças que

desaguaram no espetáculo.

Tudo muito interessante, é verdade, mas a explicação

me pareceu curiosamente insuficiente.

O desenvolvimento de uma técnica, o cuidado, o

estudo e a dedicação de todas as pessoas envolvidas

claramente transpareciam na história que ele me

contava, mas nada daquilo me sanava a dúvida que

eu venho carregando faz tempo: como é possível

que esse grupo de pessoas tenha feito tudo certo?

No plano estético, no plano ético e na forma como

abordavam as relações interpessoais, foi tudo

feito com uma delicadeza e seriedade fora do

normal. Eu, francamente, quando vi a faixa perto

do bar do Adalto convidando os moradores da

20 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


região para participarem de uma peça sobre o

bairro, não esperava isso.

Eu não conhecia ninguém daquele grupo, não

sabia como o processo iria ser gerido e sou,

por natureza, um pouco desconfiada. Além disso,

com exceção de algumas poucas malfadadas

experiências no segundo grau, eu nunca havia

atuado. Estar neste lugar do ator é, pelo menos

para mim, algo muito estranho, que exige uma

vulnerabilidade que eu tinha minhas dúvidas se

seria capaz de suportar. Foi um tremendo alívio

perceber que os diretores, a preparadora corporal

e a preparadora vocal sabiam mais do que bem

o que estavam fazendo. No fim das contas, eles

fizeram com que todo o processo parecesse fácil e

possível de ser desfrutado. Um feito e tanto.

Mas, acima de tudo, me preocupava a forma como

eles iriam estabelecer uma relação com aquele

ambiente que propunham em que trabalhássemos

e com as pessoas que por ali moram e transitam.

PENEIRA 21


Demorou um pouco para eu entender que o grupo

Peneira já havia encontrado a forma correta de

realizar o encontro com a rua e com o espectador.

Alguns anos antes, enquanto trabalhava no centro

da cidade, eu aproveitava minha hora de almoço

para ler O espectador emancipado, do filósofo

Jacques Rancière (2012). Segundo o autor, uma

prática artística emancipatória ocorre quando se

entende que, ao contrário do que se pensou

durante boa parte do século XX, ser espectador

não é um mal, uma atividade passiva que deve ser

combatida. Mas que há poder nessa posição,

na capacidade do espectador em relacionar e criar

associações a todo instante entre o que viram,

ouviram e pensaram.

A emancipação, diz o autor, deve partir de um

posicionamento em que não se espera que ocorra

uma transmissão de saberes entre os artistas e seu

público, mas que entenda que um espetáculo é um

jogo imprevisível de associações e desassociações,

22 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


e que nele “não há forma privilegiada, como não há

ponto de partida privilegiado, há pontos de partida,

cruzamentos que nos permitem aprender algo

novo. [...] Isto significa emancipação:

o embaralhamento da fronteira entre os que agem

e os que olham, entre indivíduos e membros do

corpo coletivo” (RANCIÈRE, 2012. Pg. 23).

Sorte ou revés já sabia disso e foi além.

Se não me falha a memória, foi no dia da estreia

que a Priscila disse que a peça era “um presente

para a rua”, afirmação que me parece um resumo

perfeito de como todo processo de construção

desse espetáculo foi conduzido.

O grupo se apropriou de e jogou com as histórias

e casos daquele espaço e, em contrapartida,

ofereceu estas novas histórias de volta para a rua,

para que as pessoas que por ali transitam pudessem

jogar com elas (as histórias). E não só isso:

convidou os próprios moradores daquele local

PENEIRA 23


para construírem esse jogo com eles.

Que delicadeza e que sacada genial.

A ideia de um presente me parece particularmente

interessante quando se pensa que quando você

presenteia alguém com algo, isso deixa de lhe

pertencer. Além disso, a não ser que você seja

uma pessoa particularmente mesquinha,

entende que quem recebe o presente pode fazer

o uso que quiser dele. É óbvio que você espera

que seu presente seja desfrutado, mas não há

sentido em querer pautar o como .

Da mesma forma, quando Sorte ou revés colocava

sua peça-bingo na rua, fazia-o sabendo que o

espectador iria fazer daquilo o que quisesse e que

não havia uma forma errada de se assistir àquela

peça. O processo todo foi tão rápido, condensado

em tão poucos meses, que minha memória acabou

por juntar tudo. Não me lembro mais de quando

as oficinas terminaram e passamos a ensaiar

de fato a peça.

24 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


Não sei mais em qual mês finalmente recebemos o

texto da peça completo nem quando foi a primeira

vez que fomos ensaiar na rua. O que me lembro

é da sensação de, a cada nova cena, a cada nova

proposta, a cada trecho que era apresentado para

o grupo de atores, eu pensar: “Sim, é isso! Essa é

a forma correta, a forma justa de se abordar este

espaço!” Voltando agora a esse sentimento, fico me

perguntando o que é essa forma correta, justa,

que a Peneira conseguiu alcançar.

O crítico e teórico Stephen Greenblatt (1988) diz

que potência de uma obra vem da capacidade dela

de gerar energia social, de colocar em movimento

transações culturais semiencobertas, através da

quais as grandes obras de arte adquirem sua

potência. No caso de Sorte ou revés, as transações

culturais que ela ativa e faz circular são tantas que

é até difícil listar. O bingo da Dona Marlene,

a exploração da Rua Joaquim Silva pelos guias de

turismo, as interferências do poder público,

as histórias quase inacreditáveis dos moradores,

PENEIRA 25


os botecos, os sambas, os antigos bordéis,

a memória de uma praia que não existe mais…

Por formação e insistência, sou historiadora.

E qualquer um que conhece um historiador sabe

que aquilo que caracteriza a área é a chatice de

seus integrantes. E não tem coisa que historiadores

gostem mais de odiar do que obras de arte que

abordam o passado. A gente até diz que sabe que

o passado não é um reino que nos pertence, mas

no fundo somos um tanto possessivos. Por isso,

talvez, que a ideia de trabalhar a memória e

fabular a partir desta me pareceu tão genial.

Foge, da melhor forma possível, do escopo da

História (essa com H maiúsculo). Que a peça seja

uma fabulação das diversas mitologias daquele

espaço e ao mesmo tempo seja um bingo a ser

jogado foi a forma correta de se colocar naquele

espaço. Qual é a história da peça mesmo?

Um grupo de vizinhos se junta para fazer um

bingo. O tempo está bom, mas um anúncio os

informa que vai desaguar uma tempestade.

26 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


É preciso tomar providências. Minha personagem,

apavorada com a chuva, esquece o bingo, só quer

que alguém resolva o seu problema. As mitologias

da rua se multiplicam, há mortos nas paredes.

O prefeito aparece, quer vender tudo para o

capital estrangeiro. De longe, um gringo chega em

busca de Carmen Miranda. Não sabemos se ele a

encontra ou não, mas pouco importa, essas pessoas

na rua a encontram. E ela está viva! Ou estava

até bem pouco tempo, agora dorme no porão do

Ximeninho. A chuva vai embora, festa na praia

aterrada. A peça dá a volta: quando o bingo está

prestes a começar, ele acaba.

REFERÊNCIAS

GREENBLATT, Stephen. Shakespearean Negotiations

. Oxford: Claredon Press, 1988.

RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado .

São Paulo: Ed, Martins Fontes, 2012.

PENEIRA 27


Júlia Souza Cabo é historiadora, professora e

tradutora. É formada em História pela Universidade

Federal Fluminense (2007-2011) e possui mestrado

em História Social da Cultura pela Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro (2013-

2015). Foi professora do Pré-Vestibular Social do

Estado (Cederj) no ano de 2012 e trabalhou como

tradutora entre os anos de 2016 e 2018, tendo

atuado principalmente no campo de propriedade

intelectual. No ano de 2019 participou da peça

itinerante Sorte ou Revés realizada pelo Grupo

Peneira. Atualmente é doutoranda do Programa

de Pós-graduação em História da Universidade

Federal Fluminense onde desenvolve uma

pesquisa sobre a obra literária de Torquato Neto.

28 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


Fabular a cidade

e a nós

Por Guilherme Lopes


Uma célebre frase, atribuída a Freud, afirma:

“Quando Pedro me fala de Paulo, sei mais de

Pedro do que de Paulo.” Não posso confirmar essa

autoria, mas, como todo bom dito consagrado,

interessa menos saber quem falou primeiro do

que apreender um pouco de sua sabedoria e

saber usá-la no momento certo.

Começo dizendo que é bem possível que esse texto

confirme o referido dito. Vou falar do que encontrei

em mim mesmo quando assisti à peça Sorte ou

revés, mas também nos outros espetáculos,

projetos, intervenções artísticas da Peneira.

E como eles me deslocaram, mobilizaram e

fizeram elaborar minha própria história.

Sou de uma geração que saiu da infância na virada

dos anos 1990 para os 2000 e conheceu um mundo

onde havia, talvez, as últimas verdades inquestionáveis.

Destaco duas: 1) a história acabou e o

capitalismo venceu, ou seja, dê seu jeito pra viver,

porque esse sistema “é o melhor que temos”;

30 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


e 2) podemos ser aquilo que desejamos ser – de

astronauta a VJ da MTV, de dono de startup a

agroecologista. Basta estudar, correr atrás e bum!

Seu mérito o recompensará. Essa geração vive

hoje uma crise, que eu vejo que ganhou escala em

2013. Naquele ano, percebemos que esses dois

discursos eram contraditórios, isto é, a única

forma de sermos quem sonhávamos era (e ainda é)

por meio da mudança radical do atual estado

de coisas . Era necessário fabular outras vidas

possíveis, por nós e para nós mesmos. Daí a crise,

pois nos faltou (e ainda falta) espaço para inventar

esses futuros.

Porém, mesmo sem método e objetivos bem

definidos, começamos a ensaiar soluções.

Ruas, praças e casas foram ocupadas com

assembleias, manifestações, porradarias, labs de

tecnologia e muita cultura. Sonhávamos com

políticas públicas que ampliassem, e não reduzissem,

direitos. Iríamos ocupar e disputar espaços

– e quando não fosse possível, a gente construiria

PENEIRA 31


alternativas por fora. Criamos coletivos, fizemos

saraus, dançamos passinho, redescobrimos o

antirracismo, o feminismo e o ativismo LGBTQI+.

Reconhecemos a violência policial, a repressão aos

bailes funks nas comunidades com UPPs e tomamos

uma grande rasteira política. Olhamos pra

trás e vimos que não estávamos inventando nada –

só atualizando para as redes e ruas aquilo que

nossos mais velhos vinham fazendo há anos.

Foi nesse contexto, nesse período de 2013 pra cá,

que conheci e passei a acompanhar a Peneira.

Não vim de família habituada a frequentar

teatros, shows e exposições. Sou um jovem

preto e evangélico, filho de trabalhadores da

classe média, criado em Jacarepaguá. Fui formado

entre o púlpito da igreja, a televisão e, depois, a

internet. Meu repertório vem do cotidiano,

das rodas de rima com os amigos, das aulas de

teatro e circo na ONG e na Igreja, de copiar

coreografia de clipe de hip-hop e de baixar mp3.

Além disso, foi também a graduação e o trabalho

32 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


na produção cultural que formaram meu repertório

artístico e cultural.

Salvo engano, Sorte ou revés foi o primeiro espetáculo

itinerante a que eu fui assistir como público

e sem estar a trabalho.

Toda essa volta é para explicar como o espetáculo

me afetou e afetou minha história de vida. E como

o método Fabulações do Território diz respeito a

um processo de criação estética que está enraizado

em boa parte dos debates políticos sobre

direito à cultura, território, identidade, memória

e direito à cidade, que vivenciamos intensamente

no Rio de Janeiro em anos passados. Bom, pelo

menos eu o vi assim. Ao final do espetáculo, saí

com a sensação de ter sido “vingado”, sabe? Mesmo

com a série de porradas que tomamos desde 2016

– acredito que vem desde antes, mas esse debate

fica para depois –, ainda há quem esteja no front

de (re)invenção da vida. Sorte ou revés honra essa

PENEIRA 33


história que construímos, apresentando caminhos

metodológicos e perspectivas artísticas.

A fusão entre memórias populares, ficção e

pesquisa histórica presente no espetáculo me

provocou dessa maneira. O que é essa minha

história, relatada acima, senão uma tentativa de

pôr sentido, criar conexões entre fatos históricos,

percepções pessoais e memórias parciais sobre

quem eu sou, no tempo em que vivi e vivo?

Nesse ponto, entendo que as fabulações nos

convidam a uma disputa pela memória – seja no

romper com silenciamentos e dar ouvidos às vozes

que falam e gritam no cotidiano, mas sobretudo

no exercício de ficcionar a nós mesmos. Pensar a

arte e a criação como espaços de autodeterminação.

Em um só movimento, reinterpretar o passado,

disputar o presente e elaborar um futuro.

Reunir as memórias da Joaquim Silva, de personagens

históricos como Carmen Miranda, denunciar a

especulação imobiliária e as intervenções urbanas

antidemocráticas, mas, também, celebrar a capaci-

34 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


dade de subversão e a reinvenção de tradições.

O espetáculo nos convida a retomar, por meio da

cultura, a imaginação política que se esvaziou tanto

em nossos dias, quando, na urgência de barrarmos

os retrocessos, não nos tem sobrado tempo de sonhar.

O encontro entre atores, moradores do entorno,

músicos e alguns personagens da Lapa no espetáculo

me fez celebrar a memória de quando

ocupávamos ruas e praças com maior frequência.

Um momento em que política, estética e vida

cotidiana se atravessavam em meio a palavras de

ordem, lambe-lambes, aulas públicas e rodas de

danças populares num território menos regulado

pelo Lapa Presente. Importante destacar que esse

ponto se torna especialmente sensível

nesse tempo em que finalizo este texto, em abril

de 2020, quando a cultura carioca está de quarentena

em função da pandemia que atinge o Brasil e

o mundo. Talvez por isso o excesso de nostalgia e

romantização do passado. E peço desculpas desde

já. Enfim, o fato é que o espetáculo e este exercício

PENEIRA 35


de revisitá-lo e escrever sobre ele reafirmaram

em mim o entendimento de que o encontro é um

método de criação. E esse encontro se dá sobre

um chão, durante um tempo determinado e com

pessoas específicas. Somos nós, somente nós, os

que podem produzir esse encontro e conduzir o

processo cultural e político que dele decorre.

Com nossos corpos, histórias e repertórios,

diversos ou comuns, mas igualmente valorosos.

Por fim, entre algumas edições do Sarau do

Escritório, conversas com Luiz, Priscila e Alex,

uma sessão de O provinciano incurável (peça de

teatro que o Luiz escreveu sobre Câmara Cascudo)

no #OcupaMinC e, finalmente, a oportunidade de

assistir a Sorte ou revés , fui fabulando para mim

qual seria a provocação que a Peneira me trouxe

em todos estes anos de trocas. Atualmente, estou

pensando isso em termos de “tarefa histórica”,

só para retomar a conversa sobre “geração” lá do

início deste texto. Minha aposta é a seguinte:

36 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


reconquistar a arte e a cultura como lugar de

invenção de nossas vidas.

Guilherme Lopes é músico, cristão e trabalhador da

cultura. Graduado em produção cultural, trabalhou

com políticas públicas e pesquisou antirracismo e

cultura. No tempo livre, canta, toca e produz música.

PENEIRA 37


O que te atravessa

quando você atravessa

Por Domitila Almenteiro


Dar ouvido. Essa é a proposta da metodologia

Fabulações do Território. Sem a comum pretensão

de achar que é possível dar voz, e sim com a sábia

consciência de que as vozes já estão ali. Foi com

esse ouvido sensível que a Peneira nos levou a

abrir os sentidos e flanar pela rua.

Fabulações é um processo realmente coletivo,

em que toda a criação depende das descobertas

feitas em conjunto. Ele foi usado na criação de

Sorte ou revés. Diferente do que se faz nas peças

tradicionais, aqui o roteiro é desenvolvido ao

mesmo tempo em que o grupo se forma.

Através de explorações ativas na cidade, surge o

espetáculo. Para que tudo isso funcione, é preciso

uma dose singela de ingenuidade.

Sorte ou revés não tem a rua só como palco ou

como inspiração, mas como protagonista.

Tudo acontece através de e com ela. Essa inversão

desloca a ideia de realidade e fantasia, permitindo-

-nos transitar e embaralhar o convencional.

PENEIRA 39


O que é, afinal, presente e passado, progresso e

retrocesso, coletivo e individual, público e privado,

encenação e vida real?

Espremida entre o pé do morro de Santa Teresa e

o Largo da Lapa, a Joaquim Silva é uma rua singular

na cidade. Sua lógica própria é cosmopolita e

suburbana. Abriga ao mesmo tempo o futebol da

criançada (que ainda brinca na rua), a cadeira na

calçada, a efervescência da noite mais diversificada

da cidade e o bingo de domingo da Dona

Marlene. O botequim tradicional, o novo restaurante

da moda, a carvoaria (onde mais ainda existe

uma carvoaria?) e o terceiro ponto turístico mais

visitado do Rio, a Escadaria Selarón. A descida

do convento e as lendas de Madame Satã.

É essa sobreposição de camadas que forma a alma

da Joaquim. E “sim, as ruas têm alma!”, como escreveu

João do Rio, compreendendo que as elas têm

personalidade própria e são a vida das cidades.

40 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


A rua Joaquim Silva é uma amálgama

de tantas almas.

Sem compreender a complexidade dessas múltiplas

dimensões (talvez pela ausência da tal dose

singela de ingenuidade), o poder público propõe

constantemente projetos higienizadores de

“revitalização” da Lapa. Visando a uma certa ideia

de progresso, acaba por homogeneizar o bairro e

sufocar sua alma plural. Por sorte ou por revés,

a Joaquim Silva ainda se conserva resguardada

dessas interferências, preservando suas

características próprias e um espírito do subúrbio

do Rio (ou do centro na década de 1970).

Os participantes de Sorte ou revés, sejam integrantes

do grupo, público, sejam moradores ou

transeuntes distraídos, atravessam e são atravessados

pelo espetáculo. Assim, são levados a observar

diferentes pontos de vista. Todos são estimulados

a experimentar outras formas de participação.

PENEIRA 41


A experiência de fazer o espetáculo é também,

de certa forma, a experiência de fazer a cidade.

A cidade é viva. A alma já está lá. Se a rua é a

protagonista, Sorte ou revés é quase uma autobiografia.

A cenografia, então, precisa apenas colocar

os adereços para vestir o personagem. O papel do

cenário é jogar luz naquilo que é essencial para guiar

os olhares em meio a esse grande emaranhado.

Um carrinho de entrega de bebidas, elemento

marcante do bairro, foi adaptado para se transformar

em estação de rádio e acompanhar o

trajeto de meio quilômetro. Brincando com a não

linearidade temporal do texto, foram inseridos

elementos cinematográficos de décadas passadas e

acessórios de praia, resgatando a memória da

antiga Praia Areias de Espanha. Tudo isso misturado

a elementos do cotidiano.

Para essa construção, também se tirou proveito

do que a própria rua oferece. Muitos componentes

42 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


do cenário foram adquiridos no “shopping chão”

(formado por vendedores de objetos usados que

expõem suas mercadorias na calçada). Com um

aspecto de improviso, bem característico da Lapa,

o cenário se mesclou ao contexto e virou parte

integrante da paisagem, misturando aquilo que

já é parte do cotidiano da Joaquim com o que foi

trazido pela produção.

Assim, os limites vão se borrando para os participantes.

O que faz parte do dia a dia e o que é

parte do espetáculo? O que é encenação e o que

é vida real? Sorte ou revés é um questionamento

sobre tudo isso, às vezes mais real que a própria

realidade. Um convite àqueles que estão realmente

abertos a ouvir, enxergar e saborear a rua,

embarcando em uma caminhada por todas essas

dimensões da experiência de cidade.

Afinal, o que o atravessa quando você atravessa?

PENEIRA 43


Domitila Almenteiro é Arquiteta e Urbanista (UFRJ

e Università di Bologna) co-fundadora do MUTA

arquitetura. Atua em projetos de arquitetura e

cenografia, intervenções urbanas e assessoria

técnica aos movimentos de luta por moradia.

Desenvolveu o cenário e participou da encenação

do espetáculo Sorte ou Revés.

44 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


Tecendo a trama,

ligando os pontos

Por Luiz Fernando Pinto


00. Um processo que continua gerando

desdobramentos

Não há uma análise única deste trabalho,

sobretudo porque ele já nasceu de forma coletiva

e com diversos atravessamentos. Logo, os discursos

de cada participante, seja morador da região da

Lapa, sejam artistas convidados, espectadores ou

até mesmo os três diretores que conduziram o

processo, terão um ponto de vista singular, capaz

de revelar percepções similares e/ou distintas.

A complexidade desta experiência nos permite

voltar a refletir sobre ela mais de um ano após o

seu início. Como era previsto, o processo que

constituiu essa ação artístico-comunitária ainda

está em curso.

01. A construção

Após meses de pesquisas e reuniões, chegamos à

formulação do projeto que seria a principal atuação

46 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


da Peneira com direcionamento para os eixos:

memória ; conexão entre pessoas e confluência

entre linguagens artísticas . Nos encontros, além

de refletirmos sobre o repertório de atuação do

grupo, cada um de nós trazia suas propostas,

referências teóricas e experiências no campo

artístico, comunitário e acadêmico. Tínhamos a

pretensão de desenvolver um procedimento de

trabalho participativo que pudesse ser replicado

em localidades distintas. Em um primeiro momento,

havíamos decidido que a estreia do Fabulações do

Território seria no bairro de Madureira, na zona norte

do Rio de Janeiro. Mas, após avaliação,

combinamos dar o pontapé inicial na Rua Joaquim

Silva, no bairro da Lapa. A “capital do subúrbio”

ficaria para um futuro próximo. Vínhamos realizando

projetos na Lapa desde 2013, fazia bastante

sentido que aprofundássemos nossa atuação no

referido território.

PENEIRA 47


02. Memórias

Um dos procedimentos estruturais do Fabulações

do Território é a manipulação da memória de

determinada localidade como elemento de criação

de novos discursos. A ativação dos arquivos da Rua

Joaquim Silva iniciou-se através de uma pesquisa

de campo. Essa etapa do processo, além de

ensejar o estabelecimento de uma relação com

os moradores, foi o momento em que levantamos

fotografias, narrativas orais e textos sobre

o território. Passamos a frequentar diariamente a

extensão da rua e começamos a visualizar as suas

sutilezas. As dinâmicas do cotidiano, o ritmo

acelerado da rua em dias de semana no período

diurno, contrapondo-se com a calmaria ao entardecer,

a relação dos moradores com os turistas,

as crianças brincando de pique, entre outras

situações do dia dia, foram registrados em nosso

diário de campo. A partir dessa coleta de materiais,

percebemos que, apesar de uma escuta ativa, um

olhar atento e um bocado de bibliografias e

48 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


materiais de arquivo sobre a Lapa, estavam

diante de nós muitas lacunas e um desconhecido

que daria margem para a criação de ficções e

(re)construções de narrativas. Essas eram as

brechas fundamentais para o nosso processo

criativo. Desse modo, iniciamos a relação com os

elementos que compreendem a Rua Joaquim Silva.

03. Um convite: “Participe de um espetáculo sobre

a Rua Joaquim Silva”

A rua já sabia quem eram aquelas quatro pessoas

(os diretores e a produtora) que passaram

a conviver diariamente naquela localidade.

Fizemos as refeições no bar do Adalto, no bar do

Antônio, no restaurante peruano e no bar do

Ximeninho; frequentamos o sarau na Casa da

Música, consertamos os calçados na sapataria do

Seu Francisco; e, aos domingos, marcamos presença

no bingo da Dona Marlene. Eram esses momentos

que aproveitamos para compartilhar com os

PENEIRA 49


moradores o que pretendíamos com o Fabulações

do Território e também para convidá-los a participar

dessa construção. Somando-se ao convite

realizado de forma presencial, distribuímos

cartazes, filipetas e fixamos algumas faixas ao

longo da rua anunciando o nosso primeiro encontro

de trabalho. Paralelamente, convidamos artistas

da área da música, poesia, teatro, cinema,

arquitetura, design, iluminação, figurino, canto e

dança para cocriar junto com os moradores participantes.

Parafraseando Augusto Boal, queríamos ir

além das fronteiras habituais do teatro e perceber

a Rua Joaquim Silva através de todas as artes.

04. Corpos que se encontram

Após a união entre moradores da região da Lapa

e os artistas convidados, iniciamos uma série de

encontros de criação, (des)construção, descobertas,

cisões, invenções, provocações e elaboração de

um inventário, no qual o ponto de partida era a

50 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


Joaquim Silva e a relação que cada um possuía

com a rua. Além de conduzi-los para realizações

de exercícios coletivos, nessa etapa do método de

trabalho o objetivo era constituir uma experiência

participativa com influências do Teatro do Oprimido

(BOAL, 2008), a partir de jogos teatrais e

composições cênicas centradas nos conflitos

cotidianos e na descoberta de possibilidades de

resoluções de problemas, somando a isso a

conscientização corporal, através da dança e

música afro, e experimentações com produções

de textos e desenvolvimento de narrativas

dialogando com referências da etnoficção,

de Jean Rouch (GONÇALVES, 2008). Esse período

foi fundamental para desconstruir as possíveis

hierarquizações entre os participantes e fomentar

a participação ativa de cada um.

PENEIRA 51


05. Montar é fazer escolhas

Chegamos a um ponto, durante os exercícios

propostos na sala de ensaio, que era perceptível

no grupo a formação de um acúmulo de saberes

sobre a Rua Joaquim Silva e o aprofundamento

das relações afetivas entre os participantes e

com a região. Além de uma operação somente

intelectual, essa pulsão, utilizando o termo

freudiano, coloca em evidência os aspectos

palpáveis da criação, imprimindo-lhes um caráter

inexorável de experiência. O procedimento participativo

contínuo possibilita a construção de um

grupo sensível primordial para o processo de

composição cênica que cada ator investigou

durante o projeto – para nós, diretores do

Fabulações do Território, estávamos trabalhando

com um coletivo de atores, do qual faziam parte

tanto o morador da comunidade quanto o artista

convidado. Afinal, novamente citando Boal (2018),

“[…] todo mundo atua, age, interpreta.

Somos todos atores. Até mesmo os atores” (p. 14).

52 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


Com isso, foi possível construirmos uma

constelação composta por cenas, escritos,

imagens, vídeos, mapas, músicas, depoimentos,

áudios, objetos, entre outros elementos utilizados

para operarmos um processo que resultaria na

montagem do espetáculo. Mesmo que o projeto

tenha em sua estrutura uma proposta interdisciplinar,

em que as linguagens artísticas se interligam

num grande rizoma, destaco aqui o procedimento

de criação dos personagens do espetáculo

Sorte ou revés .

06. O ator-compositor

Costumo dizer que a criação de um personagem

é um trabalho artesanal, associativo, consciente e

cheio de descobertas, distante de uma disposição de

genialidade e/ou de inspiração. Matteo Bonfitto vai

dizer que o ator faz uso de uma espécie de codificação

de materiais, tornando-se um ator-compositor.

PENEIRA 53


Segundo Bonfitto (2009), a ação física é o eixo

central da prática de compor, capaz de oferecer

inúmeras possibilidades de resolução para os

diferentes processos criativos. Entende-se aqui o

conceito de ação física a partir da perspectiva do

Método das Ações Físicas criado pelo ator, diretor

e teórico russo Constantin Stanislavski, no qual,

em linhas gerais, ele propõe um deslocamento de

eixo pelo qual o trabalho do ator passa a utilizar a

“manipulação” não somente da memória de

emoções, mas também da memória das sensações

e dos sentidos; uma memória física, portanto.

Diversos pesquisadores das artes performativas

operaram a ideia de Ações Físicas, expandindo as

provocações de Stanislavski e desdobrando em

outros procedimentos (BONFITTO, 2009).

No nosso processo de composição dos personagens

de Sorte ou revés, as Ações Físicas somaram-

-se aos materiais de arquivo que levantamos desde

o início do projeto. Após a criação de exercícios

combinando essas referências, desenvolvidos a

partir de uma centralidade na palavra e na

54 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


imagem, tendo como viés canalizador das

improvisações apresentadas pelos atores o

direcionamento para uma ideia de fabulação,

chegamos à elaboração do texto dramatúrgico e

aos corpos de cada personagem. Outro elemento

presente no método de Stanislavski e enfatizado

por nós durante os dois últimos meses de ensaio

foi a execução e a repetição das ações e cenas

criadas, sobretudo antes dos ensaios gerais na

Rua Joaquim Silva.

07. Continuidade

Assim como me referi no início deste texto,

quando apresentamos o espetáculo Sorte ou

revés durante o mês de fevereiro de 2019 na Rua

Joaquim Silva, sabíamos que ali não seria o

encerramento do projeto, mas o último dia de

apresentação foi para nós como um novo início.

Além da mudança da perspectiva de relação com

a rua, alterando nossos corpos e modificando o

PENEIRA 55


nosso olhar perante o dia a dia da localidade,

diversos acontecimentos ocorreram e nos

revelaram o quanto também fazemos parte da

Rua Joaquim Silva e como as suas dinâmicas traduzem

a cidade em que habitamos. Desenvolver um

processo participativo com moradores da região,

manusear e fabular arquivos sobre a localidade,

estreitar laços com o território, compartilhar com

a rua um espetáculo que tensiona o seu cotidiano,

transformou-se em uma ação micropolítica que

buscou novos caminhos para futuros possíveis,

ação essa que se inscreve no domínio performativo

não só artístico, mas também teórico e/ou

existencial (ROLNIK, 2009).

Bibliografia

BOAL, Augusto. Jogos para atores e não-atores . 1.

ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

______. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas

. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

56 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


BONFITTO, Matteo. O ator-compositor : as ações

físicas como eixo: de Stanislavski a Barba. 2. ed.

São Paulo: Perspectiva, 2009.

BURNIER, Luiz Otávio. A Arte de Ator : da técnica à

representação. 2. ed. Campinas: Unicamp, 2009.

CRUZ, Hugo (coord.). Arte e comunidade . Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 2015.

DIDI-HUBERMAN, George. Diante do tempo :

história da arte e anacronismo das imagens. 1. ed.

Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.

ROLNIK, Suely. Furor de Arquivo. Arte & Ensaios :

revista do Programa de Pós-Graduação em Artes

Visuais/ Escola de Belas Artes de UFRJ, Rio de

Janeiro, n. 19, dez 2009.

PENEIRA 57


Luiz Fernando Pinto é bacharel em Teatro e

mestrando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade

pela Pontifícia Universidade Católica do

Rio de Janeiro. Escritor, desenvolve pesquisa sobre

a cena da poesia contemporânea da região

metropolitana do Rio de Janeiro.

Atualmente é diretor presidente da Peneira.

58 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


Sobre fabular

um método

e uma rua

Por Priscila Bittencourt


É por meio do imaginário que se podem

atingir não só a cabeça mas, de modo especial,

o coração, isto é, as aspirações,

os medos e as esperanças de um povo.

É nele que as sociedades definem

seus inimigos, organizam seu passado,

presente e futuro

(CARVALHO, 1987, p.10).

Rua Nova de Santa Teresa (1885), Doutor Joaquim

Silva (1917) e, enfim, Rua Joaquim Silva1.

Esses foram os nomes da rua cujo perímetro hoje

vai da esquina com a Rua Evaristo da Veiga, em

frente aos Arcos da Lapa, até a Rua Augusto

Severo, local que antes dos aterramentos era

conhecido como Praia da Lapa2, localizada na

região central da cidade do Rio de Janeiro.

As alterações do nome da rua aqui vão ao encontro

do que Lefebvre (2008, p.81) aponta como as

metamorfoses da cidade, “essa obra por excelência

da práxis e da civilização se desfaz e se refaz sob

nossos olhos”. O nome que antes indicava a rua

como parte do bairro de Santa Teresa hoje leva o

nome de um médico e filósofo, e compõe o

60 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


bairro da Lapa, território de forte expressão no

imaginário sobre o Rio de Janeiro e local em que o

método de trabalho Fabulações do Território foi

inaugurado em outubro de 2018 e teve como

resultado final o espetáculo multilinguagem Sorte

ou revés, que estreou em fevereiro de 2019.

Conhecida internacionalmente por ficar ao pé da

Escadaria Selarón e seus ladrilhos coloridos, a rua é

também popular por fazer parte do circuito da

boemia. No início dos anos 2000, jovens de diferentes

regiões da metrópole do Rio de Janeiro

aglomeravam-se, assim como turistas das mais

diversas origens, que ali encontraram espaços de

lazer e entretenimento3, concentrados no trecho

entre a Rua Evaristo da Veiga e a Rua Teotônio

Regadas, justamente a fração mais conhecida da

Joaquim Silva.

O Fabulações do Território faz parte do escopo

de ações da Associação Cultural Peneira4 na

metrópole do Rio de Janeiro, assim como o Sarau

PENEIRA 61


do Escritório, espetáculo composto por diferentes

expressões artísticas com ênfase na literatura e

na poesia falada, e o Cine Vila, cineclube com

projeção de filmes nacionais e estímulo para

experimentação nas artes visuais, articulados

com debates.

Em busca de levantar dados, conhecer outras

narrativas e estreitar laços com o território, criar

registros e potencializar outras narrativas e em

consequência gerar documentos5, de acordo com

Le Goff (1990, p.288), a Peneira colocou em prática

o método de trabalho Fabulações do Território.

O método conecta diferentes linguagens artísticas

com o fazer etnográfico, o Cinema Verdade

(AUMONT; MARIE, 2007, p.50), Teatro do

Oprimido (BOAL, 2008, p.19), Teatro de Vizinhos

(CRUZ, 2015, p.92) e Teatro Documentário (PAVIS,

2008, p.387), em que moradores e artistas ficcionam

a partir das memórias e do cotidiano de

determinada comunidade.

62 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


Para a formulação do Fabulações do Território

parti do pressuposto de que participantes e

moradores, ao narrar sobre si e o território, fazem

o exercício de ficcionar, revelando a história que

querem contar, e inspirada em Jean Rouch,

estava interessada no Faire comme si.

Esse fazer de conta, somado a multiplicidade de

narrativas orais, textuais e imagéticas foi o guia

para fabularmos sobre as memórias da Rua

Joaquim Silva, sem necessariamente estar

compromissado com uma verdade. “[…] esta

forma de ser múltiplo e verdadeiro, de não opor

ficção e realidade” (GONÇALVES, 2008, p.117) é

o leitmotiv de nossa construção. Marco Antônio

Gonçalves destaca um depoimento de Jean Rouch

no filme Mosso Mosso. Jean Rouch Comme si...

(de Jean-André Fieschi):

[...]aprendi com os Dogon uma regra incrível,

que se transformou na norma da minha vida,

que é “fazer de conta” como fazemos agora.

“Faire comme si”, “Fazer de conta” é…

“Fazer de conta” que o que dizemos é verdade... os

Dogon contam uma história que

PENEIRA 63


não aconteceu com eles,

mas nas montanhas mandingas, há uns 1.000 anos

talvez. Eles fazem de conta

que aconteceu no país Dogon.

Eles dizem: “aqui se criou fulano,

aqui desceu e morreu a raposa’”.

Eles narram um mito que nunca aconteceu lá,

mas foi em outro lugar,

mas eles “fazem de conta”

e fazendo de conta ficamos mais

perto da realidade

(apud GONÇALVES, 2008, p.117)

Para realizar o projeto, o pequeno trio que então

compunha a Peneira, Alex Teixeira, Luiz Fernando

Pinto e eu, fizemos o convite para a produtora

Talita Magar, que, com afinco e dedicação,

se juntou a nós para tornar possível o nosso

melindroso plano. Como equipe convidada,

contamos também com Yassu Noguchi (poeta e

escritora), Kamilla Neves (atriz e dançarina),

Domitila Almenteiro (arquiteta), Flávia Moretz

(VJ), Michele Lima Pereira (atriz), Ledjane Motta

(cantora e preparadora vocal), Camila Loren

(estilista e figurinista), Paulo Sérgio Kajal (poeta),

64 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


Pedro Uchoa (ator), Victor Santana (ator),

Handerson Oliveira (VJ), Jon Tomaz (iluminador),

Jon Pires (músico), Victor Coutinho (fotógrafo),

Fabiano Pires (arquiteto e designer), Mauricio Maia

(músico), Fernando Katulo (músico), Sérgio Farias

(câmera). Na supervisão além-mar, tivemos o Hugo

Cruz (diretor artístico do grupo Pele, da cidade do

Porto, Portugal), que, com seu olhar atencioso e

sua experiência, foi fundamental para o

Fabulações do Território extrapolar os nossos

desejos, tornando tangível nosso plano de criação

artística e comunitária.

O espetáculo itinerante Sorte ou revés foi resultado

do processo de trabalho do Fabulações do

Território e de uma confluência de linguagens

artísticas, como cinema, performance, música e

poesia, atravessadas pela cidade. O espetáculo

perpassou toda a extensão da Joaquim Silva, com

18 pessoas em cena, incluindo atores, não atores

e músicos. Um processo de fabulação através da

oralidade, compartilhamento de memórias e

PENEIRA 65


criação artística, potencializando a ressignificação

de um espaço urbano, expandindo a ideia de

cidade e possibilitando a construção de outras

narrativas. Nesse projeto, participei da formulação

do método de trabalho, dirigi o espetáculo e

também escrevi a dramaturgia.

A inserção no campo se iniciou em setembro de

2018, quando se estabeleceu um primeiro contato

com moradores e comerciantes da rua,

explicitando do que se tratava o projeto e já

ouvindo histórias sobre a região. Logo fomos

apresentados por um grande parceiro da Peneira,

o Lencinho (do Circo Voador), à Dona Marlene,

moradora há mais de cinquenta anos na Rua

Joaquim Silva e figura de suma importância para

as dinâmicas sociais e afetivas daquele território.

Conhecemos também Seu Francisco (da sapataria),

que outrora realizou a manutenção dos sapatos de

Madame Satã e compartilhou conosco recortes de

jornais antigos, assim como as memórias daquela

região. Fomos recebidos também por Gilmara e

66 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


por Adalto (proprietário do bar de mesmo nome),

assim como por Robertinha Villas, Tuninho Villas e

Marvin Maciel (da Casa Com a Música), os donos da

rede de restaurantes Os Ximenes, Seu Antônio

(do bar da esquina da Travessa da Mosqueira),

Daad (do antigo hotel Loves House ali no início da

Escadaria Selarón), Adelino (do Othello Centro

Cultural), Fátima e Will (da marcenaria), Paulo

Branquinho, além daquelas figuras que ao

longo dos meses passaram a nos cumprimentar e

perguntar sobre o processo “do teatro”.

Foram espalhadas faixas e cartazes pela extensão

da rua convidando moradores, comerciantes e

simpatizantes a participar da construção de um

espetáculo a partir das memórias da rua. No dia

1º. de novembro, na Casa de Estudos Urbanos,

começaram os encontros, que duraram três meses

e resultaram no espetáculo multilinguagem que

moveu público e artistas pela extensão da

Joaquim Silva, aos sábados e domingos de

fevereiro de 2019. No nosso primeiro encontro,

PENEIRA 67


cheios de dúvidas, tímidos e, sobretudo, curiosos,

conhecemos aqueles que viriam a ser protagonistas

do nosso ambicioso plano de alcançar mentes

e corações por meio de um emaranhado de

memórias prévias e aquelas construídas coletivamente

ao longo do processo. Os moradores,

comerciantes e simpatizantes foram chegando.

Entre eles estavam Júlia Cabo, Luís Cláudio Arcos

(o LC), Marcus Ferreira, Tiago Nascimento

(o Articulador), Calebi Benedito, Luan Estevez e

Wellington, entre outros, mostrando-se abertos e

disponíveis à entrega de um processo intenso de

construção, superando as expectativas dos que

meses antes planejaram aquele encontro.

Era evidente que alguns mais disponíveis que

outros, como o exemplo do Marcus Ferreira,

que chegou pronto para assistir e não participar

de um espetáculo, precisando ser convencido a

permanecer. Vale ressaltar aqui que o processo de

conquista e convencimento é contínuo e mútuo,

até o último dia de espetáculo. Posteriormente,

foram chegando Amanda Corrêa, Cristina Telles e

68 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


Waleska Adami (a Dilminha).

Durante os encontros, os participantes foram

convidados a realizar trabalho de campo no

logradouro e estimulados a desnaturalizar os sons,

a arquitetura, os personagens locais e as diferentes

intervenções no espaço urbano, levando-os a

perceber as diversas camadas de temporalidades e

construções sociais em um mesmo espaço tempo,

em um movimento de estranhar o familiar – como

Gilberto Velho sugere em O desafio da proximidade

(VELHO, 2003). Cada participante do processo

recebeu um bloco de notas para escrever o seu

“diário de bordo” e, em ocasiões específicas,

realizou entrevistas com moradores e transeuntes,

além de praticar a observação participante.

Circular e frequentar espaços da Joaquim Silva

passou a ser parte da rotina do grupo durante

os meses de preparação do espetáculo; estar na

Joaquim Silva passava por momentos de trabalho

assim como de lazer. Os participantes passaram

também por preparação corporal, vocal, musical,

e encontros com análise de fotografias e vídeos

PENEIRA 69


sobre a região, sendo estimulados a produzir

também seus próprios conteúdos. Os textos,

vídeos e fotografias produzidos pelo grupo foram

analisados e debatidos durante os encontros.

A partir do acúmulo de uma multiplicidade de

documentos, relatos e relações estabelecidas

durante o processo de criação do espetáculo, hoje

volto a esse projeto, com o desafio de compartilhar

reflexões sobre a experiência, diante da

necessidade de dar continuidade ao que foi

construído, elucidar os possíveis saberes gerados

pelo trabalho e elaborar questões a serem

debatidas. A busca por converter relatos e

registros da experiência artística no espaço

público em narrativa a ser compartilhada é fruto

do anseio de investigar e propor soluções para as

barreiras simbólicas presentes na construção do

espaço urbano e das relações entre indivíduos na

metrópole. A proposta aqui é considerar a possibilidade

de construção de espaços urbanos que

sejam mais horizontais, onde os indivíduos que

agenciam (GIDDENS, 2003) a urbe cotidianamente

70 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


possam se perceber no imaginário de cidade.

Esse percurso envolve as formas de representação

e processos comunicacionais, desde os monumentos,

matérias de jornais e até mesmo o nome da

rua. Ao considerar a profusão de conteúdo gerado,

a expressiva quantidade de pessoas envolvidas e a

representatividade desse território para a metrópole,

torna-se significativo aprofundar a análise

a fim de gerar conhecimento capaz de estabelecer

elos entre o que está sendo discutido e pesquisado

por mim e pela Peneira, e a práxis cotidiana

da cidade.

A transformação da percepção desse território,

concomitante às transformações de percepção

estéticas e cognitivas do grupo de pessoas que

participaram do processo e do espetáculo é

um ponto-chave para esta reflexão mais de

um ano depois.

A rua que antes era conhecida pela maioria do

grupo pelas memórias de boêmia, hoje é um vasto

PENEIRA 71


campo de referências e camadas que dizem muito

sobre a cidade em que vivemos. Ao analisarmos

coletivamente as fotos antigas vimos que o

famoso monumento Arcos da Lapa já foi espaço de

comércio e moradia. A disputa pelo espaço urbano

foi revelada nas pequenas casas de madeira que

foram sendo apagadas das fotografias aéreas ao

longo dos anos. O mesmo caminhar com o peso nas

costas foi observado durante as idas à rua, como na

fotografia do extinto quiosque, anterior às reformas

de Pereira Passos, localizado na esquina com a Rua

Evaristo da Veiga. Os arquétipos do cotidiano

revelam um território, sobretudo, popular.

Sob o mesmo espaço, os Arcos da Lapa, que um

dia foi moradia e em outro tempo local de eventos

culturais, e onde ainda hoje temos exemplares da

obra de Selarón, percebemos as transformações da

cidade e como as intervenções no espaço público

não estão fixas. A transformação é permanente, e a

memória da cidade também é feita pelos indivíduos

que a constroem cotidianamente.

72 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


As obras artísticas que hoje são afixadas no

epicentro do simbólico território precisam de

permanente manutenção física, mas também de

sentido para aqueles que as mantêm vivas.

Nossa referência fundamental, homenageada no

espetáculo e que também veio a se tornar uma

grande parceira, Dona Marlene, é a personificação

de como um território é construído cotidianamente

pela articulação de pessoas. Sua forte influência e

poder de representação dos desafios e afetos da

rua revelam o que não está escrito na placa com o

nome da rua, dos documentos oficiais e nem nos

jornais e revistas sobre o ponto turístico.

A liderança, presença e afeto desta mulher

alcançam camadas que só acessíveis a partir da

relação entre pessoas. Através de suas ações,

hoje temos memórias de uma rua que também é

espaço para crianças brincarem de pique-pega,

pula-pula, e para a realização de bingo com

brindes como fraldas paras as recentes mães,

a tão sonhada geladeira e até mesmo a cerveja do

PENEIRA 73


fim de semana. Enquanto fomos ali recebidos,

vi num mesmo espaço a brincadeira informal e a

ajuda entre vizinhos, ao mesmo tempo em que a

vigilância do Estado passava de camburão abrindo

caminho entre as bolhas de sabão espalhadas

pelas crianças. Com a responsabilidade de revelar

um dos frutos de nossa experiência para o território

e público participante, conduzindo a narrativa

pela extensão da rua, nos inspiramos na maior

ópera popular do mundo, o carnaval. Assim, como

nas estratégias dos cortejos de blocos. Era preciso

avançar, tomar a rua, ampliar vozes e gestos.

Para tal desafio, construímos nosso triciclo/rádio

que preenchia o asfalto com música e pronunciamentos.

Sob a perspectiva de modificar paisagem

temporariamente, fizemos uso de projeções

mapeadas, que narravam nas fachadas parte

da história que estávamos compartilhando.

Acredito que cada participante do Fabulações do

Território, a partir do encontro e compartilhamento

de experiências, tornou-se um vasto campo de

74 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


referências e de transmissão de conhecimentos,

não só sobre a rua, mas, sobretudo, sobre como

construir coletivamente, sobre pensar a cidade,

para além do que é visível aos olhos e do potencial

de influência e atuação que cada um carrega.

Percorremos um caminho sobre os afetos e imaginários,

compartilhamos o absurdo e fabuloso na

tentativa de alcançar mentes e corações. Aqui a

necessidade de síntese adia relatos de causos

dessa aventura que foi montar um espetáculo

que percorria a extensão da Rua Joaquim Silva.

Esse foi um pontapé inicial para espalhar pelos

diferentes territórios possibilidades de fabulação

coletiva. Fica aqui o profundo agradecimento a

todas e todos que deixaram um pouco de si e

levaram um pouco do todo, superando os diversos

desafios da nossa epopeia, tornando-a possível.

PENEIRA 75


BIBLIOGRAFIA

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1 Fonte: http://literaturaeriodejaneiro.blogs-

pot.com/2003/01/nomes-antigos-de-ruas-do-rio-

-de-janeiro.html

2 É possível achar referências à Praia da Lapa

em fotos antigas, como a fotografia de Juan

Gutierrez de 1894, disponível do acervo do

Instituto MoreiraSalles.

3 É possível encontrar relato semelhante

em Fazzioni (2012).

4 Criada no Rio de Janeiro em 2010, essa

organização multicultural busca possibilidades

estéticas em suas variadas ações no campo da

80 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


indústria criativa. Reconhecida pelo MinC como

Ponto de Cultura, recebeu, através da Comissão de

Cultura da Alerj, o diploma Heloneida Studart 2019

de reconhecimento pelas práticas culturais realizadas

no estado do Rio de Janeiro. Atua através da

combinação de linguagens, propondo processos

artísticos e estratégias de viabilização, mobilização

e metodologias propulsoras para transformações

culturais e sociais (www.peneira.org).

5 Segundo Le Goff (1990, p.288): “O documento

não é qualquer coisa que fica por conta do

passado, é um produto da sociedade que o fabricou

segundo as relações de forças que aí detinham

o poder. Só a análise do documento enquanto

monumento permite à memória coletiva recuperá-lo

e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é,

com pleno conhecimento de causa.”

PENEIRA 81


Priscila Bittencourt é cientista social com formação

voltada para antropologia visual pela Universidade

Federal do Rio de Janeiro, cursou direção cinematográfica

na Escola de Cinema Darcy Ribeiro.

Fotógrafa e montadora, atuou com projetos

voltados para pesquisa participativa e documentação

de culturas com etnias indígenas. Atualmente é

diretora de arte, projeto e comunicação da Peneira,

e desenvolve pesquisa relacionada a arquivo,

memória e território.

82 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


“Sorte ou revés”: impressões de uma

noite de teatro numa rua na Lapa

ou

Rua Joaquim Silva: palco,

cenário, inspiração

Por Ana Cláudia

PENEIRA 83


Finzinho de fevereiro de 2019, consegui, finalmente,

assistir a Sorte ou revés , espetáculo ousado que

o coletivo Peneira montou e apresentou na Lapa,

transformando em palco toda a extensão da Rua

Joaquim Silva.

Ali, a trama se desenvolvia envolvendo atores, público,

passantes e distraídos em geral. Há momentos

em que não dava para saber quem era ator, quem

era morador de rua, quem era curioso, tamanha a

mistura do elenco com a plateia super diversa.

Mesmo com tanto convite à dispersão – a Joaquim

Silva é uma ebulição só, especialmente num sábado

à noite pré-Carnaval –, o grupo vai envolvendo o

público na história que fala de moradores ilustres

da Lapa, especialmente Carmen Miranda, cujos

restos mortais estariam escondidos no porão do

Ximeninho, o botequim na esquina da Joaquim Silva

com a Teotônio Regadas.

A história toda é ótima, e a cena com as “revelações”

84 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


sobre Carmen Miranda, no pé da Escadaria Selarón,

um dos pontos altos do espetáculo, com atuação

impecável e vigorosa de Michele Lima, cuja

personagem, aflita e pressionada pelo tempo,

pedia silêncio enquanto contava segredos.

Além do deslocamento para acompanhar a peça

– tudo começa nos Arcos da Lapa, ali pertinho de

onde era o restaurante Semente, e termina no

boteco Beco do Rato –, o público também tem de

prestar atenção no bingo, que corre junto com a

trama e se torna parte da história. A cada trecho,

nova dezena é sorteada e, no final, conhece-se o

vencedor, que ganha até prêmio!

Aconteceu comigo. Acompanhei tudo desde o

início: vi chegar a charanga iluminada e sonora,

empurrada com cuidado pelos integrantes do

grupo; vi o show ao vivo, que dá início a tudo, com

ótimos músicos tocando na rua, aquecendo a

plateia; vi cenas lindas que são parte da trama,

como o momento incrível em que todos têm de

PENEIRA 85


ajudar a subir a grande e invisível tenda que vai

cobrir o espaço e proteger o que vai acontecer

ali embaixo...

Cruzei toda a Joaquim Silva, com tempo para

admirar o casario, os restaurantes tradicionais,

os mais requintados e os caídos, a escada de ladrilhos

que sobe para Santa Teresa, a rua de paralelepípedos

que vai até a Sala Cecília Meirelles, o

Centro Afro-Carioca de Cinema Zózimo Bulbul...

a Lapa inteira naquele caminho, muita história

sendo conduzida por essa ideia um tanto excêntrica

de uma trupe de jovens de todo o Rio, dispostos a

ocupar a rua com teatro, música, poesia,

alegria, irreverência.

Impossível não admirar esse coletivo abusado,

inventivo, criativo, que faz, acontece e bota na rua

eventos incríveis como Sarau do Escritório.

Articulados, eles conhecem todo mundo e,

queridos, é claro que todo mundo vai atrás do

chamado do Peneira.

86 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


No grand finale de Sorte ou revés, quando é

revelado o ganhador do bingo, surpresa: a cartela

sorteada foi a minha! Àquela altura, eu já não era

mais espectadora, mas me sentia parte da turma,

do elenco, da história. Anunciada a cartela vencedora,

conferidos os números corretamente, hora de

a ganhadora ir buscar o prêmio e se apresentar ao

público, atendendo ao pedido do mestre de

cerimônias da noite. Tomada por aquilo tudo, não

tive dúvidas quando pediram para eu me apresentar,

dizendo meu nome: “Carmen Miranda!”,

respondi, carregando no R, reverenciando a

pequena e os grandes notáveis do Peneira, naquela

noite memorável, no coração do Rio de Janeiro.

Ana Claudia Souza, carioca, jornalista, mestre em

Comunicação e Cultura pela Escola de

Comunicação da UFRJ, fazedora de pontes.

PENEIRA 87


“Sorte ou Revés” ou

a vida como ela é!

Por Hugo Cruz


É impossível começar a escrever este texto sem o

localizar no tempo e no espaço, como, aliás,

aprendemos sistematicamente a fazer nas criações

artísticas que envolvem os mais distintos

territórios e protagonistas. Hoje, dia 27 abril de

2020, escrevo desde o Porto, Portugal, dois dias

depois da celebração do 25 de Abril no país.

O dia da Liberdade, como ficou inscrito, assinala 46

anos de uma revolução, não violenta, feita por

militares que se colocaram do lado do povo e o

apoiaram na libertação de uma longa e opressiva

ditadura. Essa revolução, feita com cravos nas

pontas das espingardas, acabaria também com o

absurdo e desumano domínio das colónias africanas.

Curiosamente, festejamos este ano essa Liberdade

(há palavras que não consigo escrever sem a inicial

maiúscula) confinados em casa, à varanda cantando

a música que fez despoletar a revolução1 e que

numa das suas passagens diz “o povo é quem mais

ordena dentro de ti, ó cidade”. Essa poderia ser

uma frase-ação repetida à exaustão em processos

PENEIRA 89


criativos coletivos que se pretendem assentes em

lógicas relacionais comunitárias.

A pandemia da covid-19 é o que vivemos hoje, sem

saber como será o amanhã e fazendo dos dias

recriações frágeis e resistências necessárias.

Aqui, como no Rio de Janeiro, com todas as

diferenças das duas realidades sociais, culturais e

políticas, o coronavírus nos derruba as certezas e

nos pode, ou não, (re)situar na relação conosco, com

os outros, com o ambiente e, acima de tudo, com

um sistema esgotado que não serve à esmagadora

maioria. Vivemos uma espécie de parêntese, onde

o que era já não é, mas o que vai ser é impossível de

ser antecipado, o que nos obriga a centrar no agora

e a uma libertação da tirania da previsibilidade.

Esta é, provavelmente, a hora de viver o espaço e o

tempo como eles realmente são.

Com as distinções óbvias, existem aspectos no

presente que se configuram numa espécie de

“treino” que as práticas artísticas comunitárias

90 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


já nos vinham a propor. Ou seja, o movimento de

construir com o outro, o assumir das fragilidades,

a cultura do confronto e a discussão como

construtores de outras perspectivas, a flexibilidade

e o diálogo que exige uma criação coletiva,

o processo constante de visibilizar e priorizar o

essencial, a necessidade de resistência e desafio,

a sustentabilidade, a relevância do erro para se

voltar a experimentar, o abordar material e

imaterial numa tensão construtiva, o espaço

público como arena privilegiada de participação

e criação, o respeito pelo tempo necessário dos

processos, a análise e crítica das micro e macro

políticas omnipresentes nos ensaios, em cena e

nas nossas rotinas, são coisas que, provavelmente,

precisamos hoje e vamos ainda necessitar mais

no futuro.

Alguns desses princípios são trazidos pela Peneira

de forma fluida para os seus trabalhos. A maneira

como se apresenta, intitulando-se “trama

articulada no cotidiano da cidade, cujas conexão

PENEIRA 91


entre pessoas e representação de saberes do dia

a dia perpassam as práticas e suas investigações

artísticas, culturais e sociais”, revela a abertura ao

risco e à multiplicação de outras realidades possíveis

e urgentes. Num movimento orgânico e contínuo

de questionamento, rigor, criatividade e

organização coletiva e não negando conflitos e

impasses inerentes, esse grupo procura manter o

seu trabalho com dignidade ética e estética,

essencial aos nossos tempos. Assume, desde que

o conheço, uma postura descentrada, de escuta e

aprendizagem com as realidades, não procurando

falar sobre essas realidades nas suas criações,

mas antes a partir delas. Quando surgiu, depois

de alguns felizes encontros, a possibilidade de

estar próximo desse trabalho, como supervisor,

penso ter entendido as demandas artísticas e

políticas que o grupo não queria mais adiar.

Pensando nas discussões comprometidas de

como fazer e por quê, nas deambulações pelas

ruas, nas reuniões via Skype (hoje tão banalizadas),

nas leituras partilhadas, nas dúvidas e rupturas

92 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


transversais, o coletivo manteve uma ação marcada

pela construção de um encontro com os moradores

da Rua Joaquim Silva, afinal um encontro de vizinhos

do mesmo bairro com toda a sua diversidade.

Sem tentações de “romantizar” esses processos,

muito expostos a instrumentalizações, esse

trabalho concreto reuniu um conjunto de

elementos-chave a sublinhar.

Desde logo, consistiu numa criação baseada na

horizontalidade entre todos os elementos do

grupo, profissionais ou não das artes, numa

participação ativa em todas as fases do processo

criativo. Dessa forma, parecem ter sido evitadas

abordagens participativas manipuladoras que

excluem, por exemplo, os não profissionais da

tomada de decisão nos processos, perpetuando-

-se, assim, a manutenção da visão de quem já tem

o poder dentro dos cânones estabelecidos.

Tive oportunidade de perceber como a pesquisa

histórica e antropológica envolveu todos, como

a discussão e reflexão foi aprofundada e como a

PENEIRA 93


escrita e direção, mesmo que assumida mais

diretamente por alguns elementos, foi partilhada

de forma persistente. Sorte ou revés espelhou um

exercício de relação com a Lapa não se limitando

à representação, mas indo muito mais além,

poeticamente cruzando passado, presente e

projetando futuro para os moradores do bairro e

da cidade. O percurso da Peneira, quase sempre

difícil, tem sido continuado, estruturado, pensado,

perspectivando o conflito como uma potência.

Esse caminho foi reforçado neste projeto pela sua

ligação ao contexto de vizinhança, da rua e proximidade

intrínseca do ato de “criar” ao pulsar da

vida. Tal permitiu conceber a criação artística nas

suas múltiplas dimensões muito para além dos

circuitos culturais legitimados. Nesse caso, parece

estarmos, à semelhança do que acontece

noutras geografias na atualidade, perante “outras”

e “novas” configurações de criação e participação.

Falamos de espaços de ensaio e apresentação que

constroem estéticas próprias e únicas, atravessando

o real e o imaginado, o convencional e o não

94 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


convencional, e modos de produção diversos.

E exatamente por isso devem ser reconhecidos

enquanto tal, distanciando-se de categorizações

desiguais e rígidas relativas ao acesso e legitimação

da alta cultura e cultura popular. São espaços

quotidianos que expressam o seu potencial

artístico e os seus protagonistas que através da

participação cultural expandem a vivência de

cidadãos e o direito à cidade.

Com as metáforas, o humor, o trabalho de corpo

e de palavra, de coro, o cruzamento de diferentes

linguagens artísticas, o pensamento crítico implícito

e explícito, este trabalho salientou o potencial do

“fazer junto” sem tentações homogeneizantes.

Talvez pelo equilíbrio que este projeto revelou entre

o “fazer participativo” e o “fazer institucional”,

o ‘fazer artístico” e o “fazer político”, o prêmio

Culturas Populares, do Ministério da Cidadania do

Brasil, possa ter sido mais do que um agradecimento,

mas antes um reconhecimento pelo

PENEIRA 95


trabalho que aponta no sentido de uma cidadania

ativa onde se incluiu a participação cultural e o

acesso aos modos de produção.

Num momento em que nos fechamos, em que o

medo reforça olhares e corpos em tensão, que

lugar podem tomar as criações artísticas comunitárias

que nos convocam a sonhar como algo

inerente ao ofício de resistir enquanto humanos?

Este é talvez o momento de responder à convocação

de criar para e num outro mundo de forma

comum e genuinamente participada, não fazendo

“tábua rasa” das desigualdades e relações de

poder instaladas.

Estejamos à altura de rumar ao futuro, como

afirmava a personagem do prefeito em Sorte ou

revés: “Por gentileza, é necessário que evacuem

o espaço, pois é preciso dar seguimento à obra,

rumo ao futuro.” Mas desta vez, ao contrário do

que ele defendia escondido numa maquilhagem

inebriante, sem que esse futuro seja assente em

96 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


cimento, dinheiro, exploração, precariedade, sem

que seja alicerçado na desumanidade.

Estejamos do lado da construção da “sorte” sem

negar a resistência ao “revés”.

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1 “Grândola, Vila Morena”, música de Zeca

Afonso , que foi usada pelo Movimento das Forças

Armadas (MFA) como segunda senha de sinalização

da Revolução dos Cravos.

https://www.youtube.com/watch?v=gaLWqy4e7ls

98 FABULAÇÕES DO TERRITÓRIO


Hugo Cruz desenvolve o seu trabalho no espaço

da criação artística e participação cívica e política.

Enquanto criador tem trabalhado em escolas,

prisões, bairros sociais, centros comunitários,

fábricas, casas do povo com principal enfoque nos

espaços públicos e não convencionais. Cofundador

da PELE, Nómada e Núcleo do Teatro do Oprimido

do Porto. Diretor artístico do MEXE_Encontro

Internacional de Arte e Comunidade e Mira_Artes

Performativas. Doutorando no CIIE–Universidade

do Porto e CHAIA–Universidade de Évora. A sua

atividade desenvolve-se entre Portugal, Brasil e

Espanha nos campos referidos. Leciona com

frequência em diversas instituições nacionais e

internacionais. Coordenou os livros “Arte e

Comunidade” (2015) e “Arte e Esperança” (2019)

editados pela Fundação Calouste Gulbenkian.

(hugoalvescruz.com)

PENEIRA 99



Marc Ferrez/ Coleção Gilberto Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles

Aqueduto da Carioca , também conhecido como Arcos da Lapa, 1905

Rio de Janeiro


Marc Ferrez/ Coleção Gilberto Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles

Aqueduto da Carioca , também conhecido como Arcos da Lapa, 1905

Rio de Janeiro


Augusto Malta/Acervo Instituto Moreira Salles

Rua dos Arcos , c. 1905

Rio de Janeiro


Augusto Malta/Acervo Instituto Moreira Salles

Ressaca em frente ao Passeio Público, 1921

Rio de Janeiro


Augusto Malta/Acervo Instituto Moreira Salles

Avenida Beira Mar na altura do Passeio Público, 27/10/1906

Rio de Janeiro


N. Viggiani / Acervo Instituto Moreira Salles

Viaduto da Lapa, c. 1920

Rio de Janeiro


Georges Leuzinger/ Convênio Instituto Moreira Salles –

Leibniz-Institut fuer Laenderkunde, Leipzig

Arcos, Santa Thereza e Glória, c. 1867

Rio de Janeiro


Fabulações do Território_Rua

Joaquim Silva

Espetáculo Sorte ou Revés

Ficha técnica


Direção e texto

Priscila Bittencourt, Alex Teixeira e Luiz Fernando Pinto

Dramaturgia

Priscila Bittencourt, Yassu Noguchi, Alex Teixeira,

Luiz Fernando Pinto e Paulo Sérgio Kajal

Supervisão

Hugo Cruz

Direção musical

Maurício Maia

Músicos

Calebi Benedito, Fernando Katullo, Jon Pires e

Mauricio Maia

Direção de movimento e preparação corporal

Kamilla Neves

Preparação vocal

Ledjane Motta

Cenografia

Domitila Almenteiro

Iluminação

Jon Thomaz


Figurino

Camila Loren

Mapping e videoinstalação

Flávia Moretz, Handerson Oliveira e Priscila Bittencourt

Elenco

Amanda Corrêa, Cristina Telles, Domitila

Almenteiro, Júlia Cabo, Michele Lima Pereira,

Waleska Adami, Yassu Noguchi, Alex Teixeira,

Calebi Benedito, Luís Cláudio Arcos, Marcus

Ferreira, Paulo Sérgio Kajal, Pedro Uchoa,

Tiago Nascimento e Victor Santana

Fotografia

Victor Coutinho

Design

Fabiano Pires

Pesquisa

Priscila Bittencourt, Alex Teixeira e

Luiz Fernando Pinto

Produção

Talita Magar


Assistência de produção

Katleen Carvalho

Realização

Peneira

Assista o registro do espetáculo Sorte ou Revés

https://youtu.be/PD_4dEVOeQE

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utilizando a família tipográfica Ubuntu.


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