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Chicos 65 - 20.07.2021

Chicos é uma publicação literária que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar nossas edições. A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.

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Nº 65

20 de julho de 2021

Literatura e ideias em

Cataguases – MG

Um dedo de prosa

Esta é a nossa edição 65

Quarentena 2021

Chicos é uma publicação que circula apenas pelos meios

digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te

enviar nossas edições ou visite-nos nos links listados

nesta página.

A linha editorial é fundamentalmente voltada para a

literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno

e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números,

uma diversidade temática.

Neste número de início do inverno, em meio a quarentena,

sofrendo perdas com a Covid 19. Nesse inacreditável

e desgovernado país, em que a morte, capitaneada

pelo descaso e indiferença dos negacionistas, caminha

contando cadáveres de mortos sem nomes.

Perdemos o poeta, desenhista e colaborador da Chicos;

o amigo Acir Simões.

Mesmo assim, seguimos em frente na luta pela vida.

Tula Pilar é a poeta da primeira página.

Desejamos uma boa leitura para todos!

E até o início da primavera.

Os Chicos

Capa: Foto - Vicente Costa

Desenhos - Acir Simões

Editores:

Emerson Teixeira Cardoso

José Antonio Pereira

Colaboradores:

Gabriel Franco

Vicente Costa

José Vecchi de Carvalho

Esta edição é dedicada a Acir Simões

Fale conosco: cataletras.chicos@gmail.com

Visite-nos em:

https://independent.academia.edu/ChicosCataletras

https://www.yumpu.com/pt/chicos_cataletras

01


Chicos

ÍNDICE

03 Poeta da primeira página - Tula Pilar

1 2 Figuras + 2 Acir Simões

1 5 Poema torto + 2 Marcelo Benini

1 8 a câmara elemento da rasura + 2 Abreu Paxe

2 1 Porque hoje é sábado + 2 Flausina Márcia

24 Soneto do país perdido Ruy Espinheira Filho

25 Vou me embora mais fico +1 David Cortés Cabán

27 Utensílio + 1 Ronaldo Cagiano

30 Haicais Gary Snyder

3 1 Pé quente para saudar o amanhecer José Pérez

33 A árvore do esquecimento (continuação) Fernando Abritta

39 Antes de mim havia uma rosa José Antonio Pereira

41 É esta de teu querido pai a mesma boca e testa Fernando Cesário

43 As horas mortas José Vecchi de Carvalho

46 A barata e a verossimilhança Raquel Naveira

48 Samuel Rawet no seu labirinto Danilo Gomes

50 Eltânia André e a literatura vista pelo olhar feminino Adelto Gonçalves

53 Dois novos escritores cataguasenses Antônio Jaime Soares

57 Marcos Vinícius Ferreira de Oliveira As Mãos Ásperas Alexandre Kovacs

60 Sul Emerson Teixeira Cardoso

62 Sobre “todos os desertos: e depois?” W. J. Solha

65 Mudança digital Hugo Pontes

66 Tudo muda, nada muda na cabeça e no coração Ronaldo Werneck

69 Lendo os clássicos Luiz Ruffato

7 1 A Literatura Portuguesa que Portugal Ignora Graça Capinha

75 O escritor, a profissão e a previdência

79 Clips

02


Chicos

Poeta da primeira página - Tula Pilar

“Já fui babá, copeira, arrumadeira, cuidei da casa,

da comida e das crianças, assim, eu, Tula

Pilar Ferreira começo a contar minha trajetória”,

declarou a poeta em entrevista ao Nós, mulheres

da periferia.

Seu contato com a poesia se deu em andanças

por eventos culturais e ruas das periferias. “Eu

passava e via um povo reunido no microfone, e

falava: ‘Meu, o que esse povo fica fazendo

aí?’”. Na primeira vez em que Tula se apresentou

em um sarau, a poesia declamada foi a que

conta a sua chegada a São Paulo.

Uma poeta negra, mineira, que trabalhou como

doméstica e transformou a vida em poesia. Essa

descrição pode lembrar Carolina Maria de Jesus,

autora conhecida pela obra O quarto de despejo.

No entanto, essa mesma história se repete com a

trajetória da poeta Tula Pilar, que morreu na tarde

de uma quinta-feira em 11.04.2019.

Tula Pilar nasceu em Leopoldina, Minas Gerais,

em 1970. Ainda menina mudou-se para Belo

Horizonte com a mãe e as irmãs. Aos 19 anos

mudou-se para São Paulo, tal e qual a mãe, trabalhou

de empregada doméstica em várias mansões

da capital.

Tula Pilar fazia parte do Grupo Raizarte, um coletivo

de música, dança e poesia atuante a partir

de 2004 em Taboão da Serra e em muitos outros

espaços culturais de São Paulo e inclusive outros

estados. Atuava nele com os filhos Pedro Lucas

e Dandara. Participava de saraus, mesas e debates

com foco nas mulheres menos favorecidas

socialmente, na mulher negra e nos artistas e

escritores da periferia. Encenava a performance

(monólogo) Eu sou uma Carolina, na qual fazia

um paralelo entre sua própria história e a de Carolina

Maria de Jesus. Poemas seus foram publicados

em algumas antologias de coletivos de

saraus da periferia de São Paulo e em alguns

exemplares da Revista Ocas. Apresentava os poemas

de sua autoria com performance de dança

afro ou cantados em parcerias com músicos convidados.

Publicou: Palavras Inacadêmicas

(Independente) Sensualidade de fino trato e Pilar-futuro

Presente pelo Selo Sarau do Binho.

03


Chicos

Sou uma Carolina

Sou uma Carolina

Trabalhei desde menina

Na infância lavei, passei, engraxei…

Filhos dos outros embalei

Sou negra escritora que virou notícias nos jornais

Foi do Quarto de Despejo aos programas de TV

Sou uma Carolina

Escrevo desde menina

Meus textos foram rasgados, amassados, pisoteados

Foram tantos beliscões

Pelas bandas lá de Minas

Eu sou de Minas Gerais

Fugi da casa da patroa

Vassoura não quero ver mais

A caneta é meu troféu

Borda as palavras no papel

É tudo o que quero dizer

Sou uma Carolina

Feminino e poesia

04


Chicos

A negra escritora que foi do Quarto de Despejo

aos programas na TV

Hoje uso salto alto

Vestido decotado, meio curto e com babados

Estou na sala de estar

No meu sofá aveludado

Porque…

Sou uma Carolina

Feminino e poesia

Pobreza não quero mais

A caneta é meu troféu

Borda as palavras no papel

É tudo o que quero dizer…

Carolina…

05


Vestido rodado

Chicos

Lá vem a negra de vestido rodado

Ai que delícia seu requebrado

Me deixou tonto desconcertado

De salto alto com um bom gingado

Cangote jeitoso, sorriso lustroso

Cintura marcada traseiro empinado

A negra me deixa excitado

Na roda de samba com um belo bailado

Me deixa todo desconcentrado

Ai! negra!

Olhar vivaz, mão na cintura no ritmo do samba

É uma delícia o seu requebrado!

No balançar do vestido rodado

Boca bonita, nariz achatado, linda!

Caso com ela para ser dominado…

Ah! Que bonito seu vestido rodado

Lindo recorte bem decotado

Tirou meu sono, faltei no trabalho

Para ver a negra do vestido rodado

Que na roda de samba me deixa encantado

Com o balançar do vestido rodado

06


Comidinha gostosa

Chicos

Tocou no baile com meu violão

Usou até minhas notas musicais

Usou para me dar uma cantada

Leu meu nome nos jornais

Revirou a minha bolsa

Não pagou a conta

Me desprezou por cem Reais

Me apertou e me comeu, não doeu….

Me lambeu e me beijou, gostei….

Me expulsou às 5 e voltei às 10

Me amou mais uma vez, fingi que era meu freguês

Enchi seu copo de vinho! Mas, derramei só para pirraçar!

Pirraça de amor acaba na cama, eu sei….

Usei vestido sem calcinha, fiquei na beira do fogão

Usei cebola para temperar a relação

Vem comer do meu guisado! Cuscuz, arroz, feijão!

Coma tudo bem gostoso. Que até te faço um ovo frito meu bem!

07


Delírio

Chicos

Delírio dos corpos que se movem na penumbra da noite

Peles que se roçam na escuridão

Silhuetas dançantes ao clarão do luar

Que invadem as frestas do canto reservado para o acontecer

Fumaças e cheiros…

Um liquido licoroso na taça, adoçará ainda mais o delírio que se pretende

sentir entorpecendo a razão

Bíceps troncudo circunda o pescoço um do outro

Protegem alternados movimentos frenéticos no chão de estampas

De ladrilhos recém cobertos por colcha de retalhos escrito palavras

ousadas

Caçada incontida, sorriso para seduzir, prazer infinito…

A noite já se faz dia

Sentimentos romperam a aurora

Vidraças fechadas, sol querendo entrar

Figuras desnudas adormecidas

Sobre a colcha de retalhos escrito palavras ousadas.

08


O Africano 02

Chicos

Tentou fugir da brasilidade de uma das mulheres negras com

quem se envolveu

Uma moça de nádegas grandes, empinadas e firmes

O africano, sentiu o pênis subir dentro das calças, sem poder controlar.

Agarraram-se, tiraram toda a roupa mais uma vez

As horas passaram, o dia correu…

Precisavam ir para o trabalho mas, com vontades ensandecidas

Fizeram sexo no meio da sala

Bocas tumultuaram em momentos de êxtase, em lambidas safadas

e incontidas ele diz o quão doce é a sua xota…

Vícios incontroláveis…

O africano de corpo forte, alto, naturalmente musculoso, Pênis

monumental

A moça de medidas perfeitas, pele de ébano, o fez desesperar-se

com seu divino requebrado. Mesmo quando vestida…

Nua o fez esquecer os compromissos, esquecer do tempo

Amaram-se. Também dançaram no ritmo frenético de um som

africano

Vestidos, horas mais tarde, saem apressados para o trabalho, entraram

no ônibus lotado rumo ao centro da cidade…

09


Poesia dos pés

Chicos

Ah, não terminei... Quem sou hoje, escritora da periferia de São Paulo

colaborando com outras mulheres invisibilizadas. Levo a arte e a poesia para

nos transformar e nos libertar de muitos rótulos e preconceitos...

Caminho pela cidade

Caminho pelo mundo

Buscando meus desejos

Estive aqui

Estive lá

Estou junto de mim

Volto na infância

Onde os pés libertaram-me

Pelos campos de terra vermelha de Minas Gerais

Corri para brincar de pique-esconde

Pular corda, amarelinha

- Joga bola!

- Olha a pipa no céu junto com arco-íris

- Choveu!

A água da chuva na enxurrada

Nossa roupa cheia de barro

- Xiiii! A mãe vai bater na gente

10


Chicos

- Vamos lavar na cachoeira

- Não! Lava em uma lagoa!

- Na água do rio

- Bate os pés! Lava rápido senão afunda!

- Está de noite

- Vamos para casa

- A mãe via chegar!

- Tia, ascende a lamparina

- Machucou o pé de novo, menina!

Pés com eternas marcas de infância

Dormem para descansar

Acordam cedo para trabalhar

Caminham para o centro da cidade

Os pés me levam para onde quero ir…

Para onde posso sonhar!

11


Chicos

Figuras

*Acir Simões

O poeta agora não verseja.

Despeja carvão

no papel indefeso.

Já não faz versos.

na cor pastel.

Rostos diversos

Mutilados dançam em parábolas,

em círculos viciosos,

triângulos amorosos.

As figuras ainda são linguagem,

mas se transmudam:

adeus metáforas,

passar bem metonímia.

12


Viagem

Chicos

Meus desejos são silenciosos

para não espantar os duendes da sorte,

que serão embarcados em um dos cantos da mala de viagem.

Juntos, amontoados, o futuro e o passado, cada dia mais próximos,

enchem a metade da mala.

Aperte os cintos, aperte a mala que muita coisa cabe

ainda que entulhe.

cabe também a inextirpável culpa.

Na outra metade cabem os sentidos,

aqueles que nos persuadem superioridade,

que nos obrigam às omissões.

Vão no outro canto da mala os que se alegram cativos da nossa ausência.

Agora pronta a mala, embarcados, a paisagem nos traz remorsos

dos esquecimentos,

da solidariedade esquecida no banco da estação.

E segue a viagem nos cinzentos dias e nos ensolarados.

13


Chicos

Equilibrista

Insiste pulsar

Em ritmo

Arrítmico

A ousadia

De viver o finito,

Desejando o improvável.

Etéreo e realidade

Convulsionam

Na corda bamba

Do circo.

Um guarda-chuvas

Emperrado

É o condutor

Do equilíbrio.

* Acir Simões

Nasceu em Cataguases MG, desenhista e poeta, morou em Belo Horizonte - MG onde

faleceu.

14


Chicos

Poema torto

*Marcelo Benini

O torto torto se faz terra acima

É debaixo que cresce

O torto torto se faz decíduo

Morto, seco

Quando água alguma toca

A primeira flor forja

Abelha, broto, fruto

O torto torto é pouso

De águas novas

E dos apanhadores do chão maduro

O torto é torto modo

De árvores e povo.

15


A marche do enfant Rimbaud

Chicos

Um militar

Tem tendência a passarinho

Pode ser a saíra

Ou o soldadinho

Todo dia carrega seu fuzil

Engraxa suas botas

Canta o Hino à Bandeira

Um dia descuidaram

E fugiu o passarinho

Levou cantil, botas e fuzil

Encontrou outros tantos

Companheiros

Foi fazer revolução

De passarinhos.

16


Chicos

Desistencialismo

Faz tantos anos que no tronco da árvore

Coreografadas por um perverso

As abelhas voam em círculos

Nada podem contra o sol graciliano

Esse lastimável estado de validez

Essa indelével mandíbula fraturando delicadezas

As asas cortadas nos quedaram mansos passarinhos

Acedemos em cair

Em passar longamente caindo pela vida

No peito, trago rubra caliandra

Gesto sanguíneo contra o azul

Só eu sei os passarinhos que me habitam.

Nota dos editores: Republicado por

sair com erro na edição anterior.

* Marcelo Benini

Nasceu em Cataguases MG, reside em Brasília DF. Redator publicitário e poeta, Participou

de uma antologia de autores brasileiros publicada na Alemanha pela fundação

Lettrétage (2012) é autor dos livros: Crônicas - O Homem Interdito (2012) e poesia O

Capim Sobre o Coleiro (2010); Fazenda de Cacos (2014); e Currais Concretos (2018

17


Chicos

a câmara elemento da rasura

*Abreu Paxe

transmudar o monólogo obscuro emagrece

o tempo contrária plenitude imperfeita cai azeda palavra

há sempre limites para o exílio de textura vertical

penumbra os ângulos auroras de meia superfície

molham a relva tardes os papéis brancos infernos

ainda um corpo imperativa bainha desfeito lençol

nascimentos esquecimentos descobrimentos

de rima relvado

poema fumaça da água viva conjunção os escombros

mastigado avesso árvores plana geometria parada

lança rasura a transparência devolve a montanha outra lavra

18


Chicos

uma mulher a sombra do poeta

depois dos árabes adormecem subúrbios

no regaço aquários da bota orvalhada luz se apagava

proeminente aonde quisesse rasgava saiotes

e assaltava com as palavras os rijos jornais da noite seios

comigo húmidos habitavam os peixes magoados

no rosto do primeiro livro um beijo um vapor

os guerreiros curados e cansados lábios há três dias

operadores negros comiam e bebiam rios

as auroras em festa lentamente sob a sombra do poeta

viajam transportando águas e cidades na garganta as

águas e cidades escrevem a luminosidade dos pés

19


Chicos

falares atados ao silêncio

morrem por fora outros ventos maduros

arados as magnó1ias da face osmoses catastróficas

perdidas escalam algas as sombras outras

meninas despidas bocas no diadema

aberta ferida o gesso excesso de realidades

sinos ao cimo o céu despe-se apertado

tudo recolhe e acende o chão da luz por dentro

estes ventos derradeiros falares atados ao silêncio

* Abreu Paxe

Abreu Castelo Vieira dos Paxe, nasceu no Vale do Loge, município do Bembe

província do Uíge, Angola. Licenciou-se no Instituto Superior de Ciências da

Educação (ISCED), em Luanda, na especialidade de Língua Portuguesa onde é

docente de Literatura Angolana. Publicou A chave no repouso da porta

(2003), que venceu o Prémio Literário António Jacinto; O VENTO FEDE DE

LUZ, Luanda: União dos Escritores Angolanos, (2007).

20


Chicos

Porque hoje é Sábado

*Flausina Márcia

As ondas colorem-se

Têm verde atlântico e

Azul mediterrâneo

Roxas do Mar Egeu

Vermelhas em Minas

Daquele Egito lá?

Vem o Negro passar

Para alaranjada a

Onda do Mar Morto

Desdobrados setes

Ondeiam mares Cáspios

Arábicos e Adriáticos

Que palavras lindas!

Que oceanos Índicos!

Pacíficos !

Árticos e Antárticos

Atlântico é o cachorrão

Pacifico é o maior

Poesia é a maior onda.

Abril/2021

21


Chicos

inferno astral

VÓRTICE

VERSOS

VERDADES

VARIANTES

VÍRUS

VINGANÇAS

VOLUNTÁRIAS

VERBOS

VEEMENTES

VARIEDADES

VINDE A MIM

VÊNUS

VERTENTES

VATICÍNIOS

VIDAS

VIÇOSAS

VOLUMOSAS

VENTRES

VEÍCULOS

VALPARAÍSO

VADE DE MIM

Junho/2021

22


Chicos

Um Poema é aquilo que falta

Um Poema é aquilo que sobra

Um Poema é Aquilo, o Deus das

SOMBRAS

Junho/2021

* Flausina Márcia

Nasceu em Cataguases (MG) e mora em Belo Horizonte (MG) onde trabalhou

na Secretaria de Cultura de Minas Gerais. Publicou, entre outros, Vagalume

(2002), Sua Casa Minha Cruz (2003) e Poemas Declives (2014).

23


Chicos

Soneto do país perdido

*Ruy Espinheira Filho

Fulguras, ó Brasil, florão da América,

Iluminado ao sol do Novo Mundo!

Hino Nacional Brasileiro.

Osório Duque Estrada e Francisco Manuel da Silva,

Luares pungentes. Nas suaves manhãs,

canários, sabiás, arribaçãs.

Nada mais vasto e belo não havia,

eu pensava – e eis que a vida me sorria

como a menina que na tarde ia

e em mim inventava um canto de alegria.

E eu ali, ainda longe dos afãs

da luta bruta pelas coisas vãs.

E eis que aquele país de antigamente,

que prometia ser eternamente

só de grandezas sob um céu de anil,

hoje é a tristeza que me faz doente,

na noite amarga deste tempo vil

morrendo de saudades do Brasil.

Bahia, Brasil, maio de 2021.

(Sob a pandemia, mas, sobretudo, os hediondos temporais

que rolam sobre nós vindos do Planalto Central...)

* Ruy Espinheira Filho

Nasceu em Salvador (BA). poeta, romancista, professor, cronista e jornalista.

Publicou entre outros, As Sombras Luminosas (1981 — Prêmio Nacional de

Poesia Cruz e Sousa), Memória da Chuva (1996 — Prêmio Ribeiro Couto, da

União Brasileira de Escritores), O Rei Artur Vai à Guerra (1987, finalista do

Prêmio Nestlé), Ângelo Sobral Desce aos Infernos (1986 — Prêmio Rio de Literatura

[2º lugar], 1985), Possui textos publicados em antologias estrangeiras

editadas em Portugal, Estados Unidos, França e Itália.

24


Chicos

Vou-me embora mas fico

*David Cortés Cabán

Vou-me destas montanhas.

Regresso ou estou indo.

Sempre me vou e volto como um duende.

Sou o cântico interminável

que viaja entre as costas.

Vou em tua equipagem nas viagens

para que vejas que não te abandono,

quando chegas sem saber que partiste,

quando partes sem saber que chegaste

e a vida te carrega por cidades

em meio a vozes a cantar no vento.

Vou-me digo ao destino que me aguarda

para que o mar e o sol não me detenham,

quando olho para as árvores ao longe.

Escuto-as quando cantam por tua ausência

pra me fazer buscar o que pedi.

Vou-me às pedras o digo e ao caminho

companheiro de viagens e de perdas.

E vou-me porque a neve de outros povos

me chama sempre pra que não a esqueça,

quando o amor como um raio o meu corpo transpassa.

Sempre estou regressando, estou partindo

para me fazer crer que não parti,

vendo o caminho e tudo se afastando

como um eco no rasto de meus passos.

25


Chicos

O que há para escolher

Ela e eu sozinhos na escuridão

querendo isto e aquilo,

tudo o que passou pela vida e não regressa.

Os abandonados se despedem,

regressam e não encontram seu lugar.

Onde fica o que foi?

Quem se afasta sem escolher?

Olhamos a cena.

É só o vento e o canto dos pássaros.

Os jovens chegam de longe.

Nós estamos do outro lado.

Estamos regressando de outro país.

Alguém tocava uma guitarra,

alguém dançava e cantava em outra habitação.

Começava a chover.

Disse: “A noite é um labirinto de espelhos.”

A solidão está em toda parte,

um caminho para regressar.

Tradução de Anderson Braga Horta

* David Cortés Cabán

Nasceu em Arecibo Porto Rico em 1952. Cortés Cabán Mestre em Literatura

Espanhola e Hispano-Americana pelo The City College College (CUNY).

Foi professor em Escolas Públicas de Nova York e professor adjunto do

Departamento de Línguas Modernas do Hostos Communiity College of

The City University of New York. Publicou: Poesía - Poemas y otros silencios

(1981), Al final de las palabras (1985), Una hora antes (1991), El libro de

los regresos (1999), Ritual de pájaros: antología personal (2004) e Lugar sin

fin (2017). Ensaio, Visión poética en tres libros de Alfredo Pérez Alencart.

26


Chicos

Utensílio

*Ronaldo Cagiano

E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.

...

E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Helder

Os anos e as estações

Num poema cabe tudo:

a escrita torta da solidão

os gatos de Hemingway

os anjos de Rilke

o verme da fome corroendo os estômagos

a cólera e o espanto

a ditadura de deus

o funeral da tarde

a obediência dos rebanhos

o desacato da minha heresia

a insensibilidade dos poderosos

a agonia dos refugiados

a hediondez da corrupção

a antipoesia de auschwitz

o tiro que matou

lorca os suicídios de vargas e sándor márai

a bomba de hiroshima

o canal de suez

27


Chicos

o maio de sessenta e oito

a primavera de praga

o discurso de martin luther king

a terceira margem do rio

os sertões que nos habitam

as guernicas contemporâneas

as baratas de kafka e de clarice

as carmens de bizet e mérimée

as metamorfoses da morte

as armadilhas do destino

a fecundidade do adeus

o contrabando da verdade

a coreografia dos danados

a arqueologia do caos

.

.

.

a escaldante lucidez do verbo

28


Chicos

Tempo e barbárie

Todo conservador é um pulha

com hemorroidas no olhar

e flatos no coração:

sua alma funerária

é assassina de sonhos

* Ronaldo Cagiano

Nasceu em Cataguases MG, mora atualmente em Portugal. Publicou, entre

outros, Dezembro indigesto (Contos, Prêmio Brasília de Produção Literária

2001), O sol nas feridas (Poesia, Finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012) e

Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016).

29


Chicos

Haicais

*Gary Snyder

Eles não o contrataram,

então ele almoçou sozinho:

o sussurro do meio-dia

Um caminhão passou

Smoke Creek deserto

três horas atrás:

* Gary Snyder

Gary Snyder nasceu em São Francisco, Estados Unidos, poeta, tradutor, linguista,

mitólogo e antropólogo norte-americano associado à Geração Beat.

Traduziu poetas chineses e é um dos precursores e maiores impulsionadores

norte-americanos de pesquisas com a chamada etnopoética.

30


Pé quente para saudar o amanhecer

Chicos

*José Pérez

Três letras dentro de meus chinelos

(duas vogais uma consoante)

saem andando em direção ao nada A temporal sequência

Cúmplice desponta o sol O satélite envia a hora

A China amanhece quadrada Nova York ovalada

Paris é um ângulo obtuso Paris um quadradinho

São Paulo musgos e plumas

Montreal ferve em gelo.

A terra treme na chama da estufa.

cai alguma folha arrependida da árvore

os cães depositam sua excrescência na praça do herói

os meninos correm rumo a si mesmos

A diversão começa

põe-se a girar o mundo em sua hora

31


Chicos

É real

alguém apaga na alcova seu último suspiro

os amantes terminam sua mentira fugaz

os transportes se movem

brincam de guerra as luzes do semáforo

a pista está disponível para o próximo avião

cruzemos a linha A delgada linha vermelha

Chegou o amanhecer

Quando chegar a noite

vamos de regresso

Tradução de Anderson Braga Horta

* José Pérez

Nasceu em El Tigre - Anzoátegui, reside em Pariaguán, Mesa de Guanipa - Anzoátegui,

Venezuela. Licenciado em Letras. Doutor en Filología Hispánica pela Universidad

de Oviedo, España (2011). Professor da Universidad de Oriente Núcleo de Nueva Esparta

em Lingüística. Pertence a Red Nacional de Escritores de Venezuela. Publicou:

Jardín del tiempo (1991), Callejón con Salida (1994), Por la Mar de Luís Castro

(1995), De par en par (1998), No Lysis, No Listesis (2000), Pájaro de mar por terra

(2003) Como ojo de pez (2006), Fombona, rugido de tigre (2007), En canto de

Guanipa (2007), Páginas de abordo (2008) e Cosmovisión del somari (2011 e 2013). E-

books: Gustavo Pereira, Antología sin somaris (2017), A palo mayor (2018), La casa

de los poetas (2018).

32


Chicos

*Fernando Abritta

Talvez não entenda

a lenda silenciosa em mim

(Em mim, Luiz Ruffato)

7 – Nas costas brasileiras

Barco negreiro – tumbeiro de brasileiros desliza no oceano Atlântico como em sua casa. Uma

tempestade se aproxima rapidamente. O veleiro agitado pelas ondas, balançando e jogado pelo

vento, é conduzido por esta tempestade.

Dentro leva muitos escravizados e uma rainha esposa do poderoso rei Agonglô que morreu

deixando dois sucessores: Adandozan, o regente, para reinar até quando Guezo, o rei bebê

filho de Nã Agotimé, estivesse pronto. Do alto de seu trono Adandozan determinou e entregou

aos brancos negreiros mãe de rei infante para que nunca ninguém mais a visse e nem

lembrasse da ordem dada por Guezo. Fez Nã Agotimé rodar tronco da árvore que rouba memórias,

a árvore do esquecimento. Fez dela escrava de brancos que a levaram para que sumisse

no outro lado das águas em terras desconhecidas.

O veleiro segue aos trancos das fortes ondas o rumo decidido por Exu e orixás.

Dentro o capitão dá ordens na ilusão de comando.

─ Ao trabalho, Marujada, que nuvens negras se aproximam. Prendam bem essas velas. Travem

bem os apetrechos que esse barco vai balançar. Valei-me, Nosso Senhor do Bonfim. Valei-me,

Nossa Senhora da Conceição. Atenção, piloto, que devemos estar saindo da passagem

do meio e vamos pegar a corrente do Brasil. Se esta tempestade deixar.

33


Chicos

Os escravizados rezam baixinho orikis para Xangô num cantochão murmurado:

Xangô é guerreiro,

Xangô mata os inimigos,

Xangô, meu juiz,

Xangô, meu refúgio.

─ Marujada, ao trabalho. A África dadivosa e rica que abastece nosso bolso, nossa bolsa e

nossa balsa com essas riquezas e consome nossa cachaça, essa bela África agora está longe

demais. Também as costas do Brasil ainda estão longe para nos abrigar. E esse oceano parece

querer nos tragar.

Os escravizados rezam baixinho orikis para Xangô num cantochão murmurado:

Xangô usa argolas em suas orelhas.

Xangô usa colares de contas.

Xangô usa braceletes com elegância.

Xangô usa poderosos talismãs.

Xangô é guerreiro.

Xangô mata os inimigos

Xangô, meu juiz.

Xangô, meu refúgio.

─ Marujada, ao trabalho. Travem essas velas. Empurrem mais pra dentro essa escória negra,

esses que foram esquecidos, que não têm nem pais ou tios ou irmãos. Nem família nem amigos

os querem, mas, nós sabemos quem os quer. Homens da prata, condes, viscondes, comendadores

e fazendeiros estarão lá nos esperando ansiosos por essa mão de obra. Amarrem

essas velas que o barco começa a balançar.

Os escravizados rezam baixinho orikis para Xangô num cantochão murmurado:

Xangô é saudado:

ei de Kossô, que age com independência!

Ele ri quando vai à casa de Oxum,

ele se demora na casa de Oiá,

ele usa grande pano vermelho.

34


Chicos

Oh! Elefante que caminha com dignidade!

Xangô, meu juiz,

Xangô, meu refúgio.

─ Marujada, ao trabalho. Avante e com força que não fomos nós que os buscamos nos confins

da África. Nosso Deus que os quer em seu rebanho. Melhor que não seja agora. Assim

nos salvamos dessa tempestade. Rezem, marujos, para que essas ondas não nos engulam e

nos deixem passar vivos.

Os escravizados rezam murmurando:

Meu senhor, que cozinha o inhame

com o ar de suas narinas

e mata seis pessoas com um só raio,

que franze o Nariz e o mentiroso foge.

Xangô que racha e lasca paredes,

Xangô faz o poderoso tremer,

Xangô, meu juiz.

Xangô, meu refúgio.

─ Senhor do Bonfim, nos ajude nessa tempestade. Não nos culpe por esses cativos. Nada temos

com as guerras que eles travam entre si. Não fomos nós que os buscamos em suas camas,

suas casas, suas famílias. Senhor Nosso, só queremos garantir nosso sustento. Não nos

abandone, Senhor do Bonfim.

Os escravizados rezam para Xangô murmurando:

Xangô fala com todo o corpo,

seus olhos são vermelhos como brasas,

Xangô, em ti que busco meu refúgio,

Xangô, meu juiz,

Xangô, meu refúgio.

─ Senhora Nossa da Conceição, salve esses pobres marinheiros da voracidade deste mar. Não

nos culpe, Senhora, por esses cativos que transportamos. Amém. Amém. Amém. As nossas

35


Chicos

dívidas se acumulam em terra enquanto trabalhamos nesse barco. Nossos filhos nos esperam

em terra. Não nos abandone, Senhora.

Os escravizados rezam para Xangô:

Xangô entra na casa,

todos os Orixás sentirão medo,

Xangô, meu juiz,

Xangô, meu refúgio.

─ Poderes noturnos, que detêm a força da vida, que podem dar fim à vida, por que deixaram

essas bestas ao nosso laço? Para que agora tenhamos que lançar esses negros ao mar? Não,

não pode ser. Esses têm muito a fazer no Brasil. Muita cana a moer, muita moenda a moê-los.

Os escravizados rezam:

Xangô que racha e lasca paredes,

Xangô faz o poderoso tremer,

Xangô, meu juiz,

Xangô, meu refúgio.

─ Marujada, ao trabalho. Se esse barco começar a naufragar, teremos que colocar nossa carga

pra fora. Melhor ter prejuízo que perder a vida nessa tempestade. E o seguro paga a carga.

Nosso Senhor do Bonfim há de nos proteger da falência, do prejuízo.

Os escravizados rezam:

Xangô possui o trovão,

Xangô e seu porte corajoso,

Xangô, meu juiz,

Xangô, meu refúgio.

─ Marujada, ao trabalho. São Jerônimo, Santa Bárbara, protegei-nos. Lembrem-se, marujos, a

seguradora só cobre a carga. Atenção ao trabalho, mão firme nas cordas. Sua família vai passar

fome, caso você morra. A seguradora não cobre sua vida e sua família nada receberá com

sua morte. Força e atenção.

36


Chicos

Os escravizados rezam orikis:

Xangô possui a grande arma,

Xangô possui o machado escaldante,

Xangô castiga quem cria problemas,

Xangô, meu juiz,

Xangô, meu refúgio.

─ Marujada, ao trabalho. Gajeiro, sobe ao seu mastro e vigia essa tormenta. Observa se ele

resiste. Homens, rápido com isso. Entreguem essa peça moribunda ao mar. Esse negrinho

morto vale mais que vivo. O seguro nos reembolsará.

Os escravizados rezam um cantochão murmurado:

Xangô é o caminho, eu sou o seguidor,

Xangô gera e protege a germinação,

Xangô, meu juiz,

Xangô, meu refúgio.

─ Marujada, ao trabalho, subam aos mastros e prendam essas velas. Desocupem esse tombadilho

que as ondas já começam a lavar. Marujada, mantenham a disciplina. Força no chicote.

Não importa quanto sangue corra, quanto sofrimento cause nem mesmo seu cansaço. Mantenha

cada um no seu lugar pra estabilizar o navio.

Os escravizados rezam para Xangô:

Xangô, eu me inclino e me coloco em sua casa,

Prometo te entregar todo meu tempo,

Xangô, pra condenar é justo juiz,

Xangô, meu juiz,

Xangô, meu refúgio.

─ Marujada, ao trabalho. Piloto, estuda bem seus mapas. Ache nossa posição. Veja se não

perde o rumo. Precisamos levar essas peças a salvo em algum porto. Tirar o capital acrescido

do lucro pra nossos contratantes.

Os escravizados rezam:

37


Chicos

Xangô sacode o corpo e

queima com fogo encantado,

Xangô nunca fecha a estrada a alguém,

Xangô, meu juiz,

Xangô, meu refúgio.

─ Marujada, ao trabalho. Controlem esses negros, que os gritos de medo de uns podem enlouquecer

os outros. Lembrem-se daquela negra que saltou de cabeça na boca de um tubarão?

Loucura faz isso. Segurem eles em suas prateleiras.

Os escravizados rezam baixinho orikis:

Ele ri quando vai à casa de Oxum,

ele se demora na casa de Oyá,

ele usa grande pano vermelho.

Oh! Elefante que caminha com dignidade!

Xangô, meu juiz,

Xangô, meu refúgio.

─ Marujos, não se desesperem, não se assustem. Todos nós fizemos nossas confissões e fomos

abençoados antes de iniciar essa viagem. O mal são esses negros, o mal indomável que

precisa ser controlado com o poder do chicote.

Os escravizados rezam baixinho orikis para Xangô num cantochão murmurado:

Xangô é o caminho, eu sou o seguidor,

Xangô gera e protege a germinação,

Xangô, meu juiz,

Xangô, meu refúgio.

* Fernando Abritta

Nasceu na Serra da Onça, Cataguarino, distrito de Cataguases (MG). Mora em

Juiz de Fora (MG) Publicou, entre outros, umÁrvore, O Caso da Menina Que

Perdeu a Voz, e, em parceria com Joaquim branco, Uma Verde História, além

de um ebook, Relâmpago.

38


Chicos

Antes de mim havia uma rosa

*José Antonio Pereira

...

e sobre todas as luzes,

imarcescível, infrangível

a rosa e o cristal do meu sonho

o poder do impossível.

em Réquiem

Francisco Marcelo Cabral

Sentado no sofá da sala, limpo os

óculos após ler mais um capítulo de “Eu vi

Hamalla”. Maria, a neta, vem de algum

cômodo onde a algazarra não permite entender

nada do que dizem, olha para a capa

do livro sem o menor interesse, — Você

e os poetas palestinos, né vô? Se esparrama

felinamente no sofá, deita a cabeça na

minha perna e continua, — Lá dentro, todos

estão listando os pecados dos ausentes

sem a menor compaixão. Sabia que te encontraria

solitário por aqui. Ela olha para

os meus olhos e sorri. Entendo o que ela

me pede. Sempre foi assim, desde pequena,

quando se aninhava no meu colo, queria

ouvir uma das minhas fantasiosas histórias.

Acordo de mais um sonho. Sonho

com a irmã antecessora em um sorriso terno

e contido entre os anéis de saturno, que

giram cada um num sentido em um diadema

volátil como um arco íris. Na mesa de

cabeceira a pedra reflete as cores do sol

que apagam a penumbra da noite e me

traz o aconchego do calor do dia. Detesto

noites frias. Levo a mão à pedra, acaricio

sua frieza com o calor de meu corpo. Ela

não é só um cristal. A memória vazia de

Rosa, assim chamavam aquele ente lançado

no esquecimento, tento preencher com

sonhos e imaginando a possibilidade de

ressurgi-la ou reencarná-la. Mas em que

corpo? Poderia ser de alguma atriz bonitona

de cinema, mas não sei como fazê-lo.

Ela era um segredo familiar guardado a

trezentas chaves. Assunto evitado, nunca

sequer ousei perguntar qualquer coisa sobre

aquela que seria a primogênita.

Caminhando entre o cascalho rolado

de um riacho, enquanto meu pai mais uma

vez iscava sua varinha de taquara, encontro

entre as pedras escuras e redondas uma

de que, feito um espelho, me enche o rosto

de brilho, após a recolher, agacho e levo

às águas, livro a do barro e ela brilha

intensamente e ofusca meus olhos. A voz

de pai quebra o encantamento, — Cuidado!

Não entre na água, volte para perto de

mim. Na alegria do achado, não me importo

com o susto do chamado e retorno.

39


Chicos

Mostro-lhe o achado. Ele sorri, ergue a fieira

de lambaris pescados, estica o braço e

traz a fieira para junto de minha pedra.

— Olha Quim! Tua pedra brilha tanto

quanto os lambaris, é um cristal, meu filho.

Radiante com o meu achado, — Pai,

encontrei um tesouro. Durante muito tempo

o escondia dos olhares de todos, tinha

certeza que era o maior diamante do mundo.

Na tarde quente, deitado em minha

cama, folheava um gibi onde as imagens

gritavam mais que os balões cheios de

onomatopeias e escutava a conversa dos

adultos, alguns falavam de Mandela, os

diamantes da Namíbia e apartheid, conversa

incompreensível para um moleque como

eu. Não sabia quem era Mandela, onde

ficava Namíbia e o que era apartheid. Mesmo

assim, cismei que o meu cristal era um

diamante da Namíbia e resolvi chamar-lhe

Mandela. Radiante, decido contar para todo

mundo, mas o mágico mundo do gibi

me atrai de volta. Quando chego ao fim, o

silêncio da casa é apavorante e sinto que

me abandonaram. Passo a tarde me divertindo

com a luz e suas cores transmutando

em feixes que dançam ao movimento de

minhas mãos. Isso faz de Mandela um mago.

A tarde se finda e o sol abandona o

meu quarto, com o Mandela nas mãos saio

pela casa, tenho medo da noite que se avizinha.

Alguns ruídos me atraem para a sala,

por ali o sol ainda brilha. À medida que

caminho vai clareando a voz de minha

avó, é nasal, o que lhe dá um aveludado

acolhimento, ela nunca foi autoritária.

Nunca conheci uma avó preta autoritária.

Paro, furtivamente quero ouvi-la, mas é a

voz de mãe que aterroriza, é chorosa. Desisto

de ficar parado e entro pela sala as

mãos enrugadas e trêmulas da avó acariciavam

os cabelos de mãe. As palavras em

soluços, — ... minha... morreu... em meus

braços. É uma dor que nunca acaba. Estico

minha mão para também acarinhar e na

outra o Mandela em oferenda. Minha voz

é insegura mas traz um timbre de afeto,

— Ele é mágico. Quando brilha no meio da

noite, vejo Rosa. Nunca vejo seu rosto inteiro.

A cabeça sempre inclinada para frente,

enfeitada por um arco de anéis brilhantes

e sua testa morena brilha. O olhar de

mãe volta-se para mim. A autoridade do

olhar esmaga e a voz é firme. — Quim,

saia daqui! Ela pega o Mandela e o atira

pela janela, a vidraça estilhaça em mil cristais

e se espalham pela sala. Nunca mais vi

Mandela.

Maria me traz de volta ao mundo real.

— Vô, seus olhos estão molhados de

lágrimas. Quem era Rosa?

* José Antonio Pereira

Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e outras

crônicas (2006) e autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).

40


Chicos

É esta de teu querido pai a mesma boca e testa

*Fernando Cesário

Ela Estremece. Como recordar o que se

passou entre eles, como guiar as lembranças

ternas, se a... se a brutalidade das horas persistia

como sombras pesadas investindo de

imprevisíveis sonhos aterradores? E havia o

medo, o mesmo medo! Morrer, ocorreu-lhe,

certamente, não é ideia agradável, mas infinitamente

pior é assistir quando partem os

entes queridos (ainda pior é ter a convicção

da perda sem nem ao menos ser autorizada

a reconhecê-la, corrigiu-se mentalmente).

Exorcizar os medos, voltar ao sentido da realidade!

Numa atitude estudada, mudava de

lugar. Jogava as pernas para diante, mudava

os pensamentos, mudava a sensibilidade.

Ajeitava os cabelos com os dedos, erguia

silenciosamente a cabeça, os ombros, embora

o olhar tristonho se mantivesse perdido

no nada. Busca recordar uma canção, recuperar

um verso; se não viessem, vocalizava

qualquer coisa, assobiava, inventava um trecho;

o que de armas seu espírito pudesse

lançar mão e vir-lhe em socorro. Principalmente,

afastava os tais pensamentos, as raízes

da agonia. E Portinari se erguia, e Niemeyer,

e Jan Zac. Não raro, ouvira-o referirse

ao mural “Tiradentes”; no prédio que

Niemeyer desenhara e onde cursara o ginasial

e o científico, em Cataguases. Ouvira-o, a

voz vibrando de entusiasmo, revelar o acervo

artístico e arquitetônico da cidade. Cataguases

está para o modernismo como Ouro

Preto, para o barroco. Indagou-lhe, incrédula,

como explicar que uma cidadezinha

tão... As famílias feudais, ele interrompeu,

com indisfarçável tom de ironia. Podia tomar

a estrada, Ponte Nova, Viçosa, Ubá, procurar

pelos parentes, pela mãe e os dois irmãos,

gente endurecida pela vida; andar pela

cidade, percorrer as ruas, incógnita. Tudo

eram ideias agradáveis. Afinal, não experimentara

momentos de júbilo ao imaginar-se

sobrepisando as passadas de um Alvarenga,

um Athaíde, um Aleijadinho, dois séculos

depois? Talvez o mesmo voltasse a se repetir,

lá em Cataguases. Pelas ruas, ‘seu anjo

doce e pornográfico’ asseverava, subitamente

deparava-se com um painel de Djanira

(em Santa Teresa, perto de sua casa, existia

uma rua Pintora Djanira), de Portinari... Seria

extraordinário! A reflexão lhe trazia afagos

e sensação de bem-estar. Esquecida,

afagava os seios, ternamente, quase angustiadamente.

Após um instante impreciso de

tempo, no entanto, ascendeu de novo ao

sentido de realidade; deixou cair os braços e

41


Chicos

e inclinou a cabeça para diante. Fitou os mamilos

em ressalto sob a blusa de viscose.

Pressentia a lubricidade, o desejo intenso

nas carnes, mas...

Tirar fotografias a cores, as quais os anos se

encarregariam de desbotar e cobrir de tons

nevados, crepusculares. Fica ao lado dela,

uma voz lhe dizia. Fica ao lado dela! Urgia

atar as muitas pontas soltas. Hercília! Mas

sempre a chamava de Cilinha. Certa feita,

num dos raros momentos em que o viu loquaz

e expansivo – haviam assistido ‘Rocco

e Seus Irmãos’, no MAM – ele confiou para

ela que, se um dia, viesse a conhecê-la, à

sua mãe, iria se surpreender. Aliás, repetiulhe

o mesmo quase uma meia dezena de outras

vezes. Marília perguntou-lhe o porquê e

recebeu em resposta que ele e sua mãe não

se pareciam, fisicamente, em nada; seus

avós maternos eram mestiços de índios. Ela

então lhe indagou como explicar sua pele

tão clara, seus olhos e ele explicou que, pelo

lado paterno, descendiam de italianos, que

haviam vindo, no início do século, para o

cultivo do café. Da região do Vêneto, entrou

a falar. Treviso! E completava que somente

Isabel, a do meio, “brasileiramente linda”,

guardava semelhança com os Rodrigues: a

mesma pele encarnada, os cabelos pretíssimos,

os olhos ogivais. Hoje, coitada, está

muito acabada. Precocemente acabada. A

vida, a labuta... Você sabe. E interrompia o

raciocínio.

Estava em cogitação, de fato, compreender

as razões de, rompendo as regras, seu anjo

louro ter se lançado ao mundo, ano de

1964, enquanto o irmão quase dez anos

mais velho, João Bernardo, receando as estradas,

as muitas distâncias e Isabel, já noiva

e esperando pelo casamento, seguiam o

exemplo de toda gente, aceitando os limites

estabelecidos pelos cumes daqueles morros.

Janeiro de 1964, pouco antes de os furacões

açoitarem as marinas, destruírem as escunas,

esgarçarem os velames.

Fragmento de Sinos para os suicidas

* Fernando Cesário

Nasceu no Rio de Janeiro RJ mora em Cataguases MG, é autor, entre outros,

dos romances Os algozes do sono (2000), Alma de violino Prêmio Lima Barreto

(2004) e Olhos vesgos de Maquiavel (2011).

42


As horas mortas

Chicos

*José Vecchi de Carvalho

Em dezembro, contava os dias. Não que

acontecesse grandes coisas na data esperada,

mas em minha vida cheia de nadas, qualquer

mudança no vaivém da casa e da rua onde eu

morava era um grande acontecimento. Até mesmo

situações de pura consternação tornavam-se

eventos alegres para mim. Quando alguém da

vizinhança morria, por exemplo, as casas todas

se enlutavam, desligavam rádios e tevês. No entanto,

nessas horas meus sentidos de bisbilhotices

ingênuas se aguçavam e percorriam o tumulto

dos velórios à procura de cheiros, cores, soluços,

gestos e vozes diferentes.

Mas em dezembro ninguém morria, talvez

por decreto de Saramago ou intermitências filtradas

por minha memória infantil. Mês de nascimento,

noivado, casamento, festas e mais festas.

Era quando tudo se comprava com o coração

e se pagava com suor e juros. Mês do Natal,

e era por isso que eu contava os dias e as horas.

Era bom ver minhas irmãs, primas e suas amigas

envolvendo galhos de árvore, cortados e bem

aparados, com algodão e papel celofane verdeescuro

brilhante, pisca-piscas, bolas coloridas

grandes e pequenas. Essas bolas me fascinavam.

Embaixo da árvore de Natal, colocavam caixinhas

de papelão embrulhadas com papel de presente

e arrematadas com laços de cores variadas.

Ao lado da árvore, um pequeno presépio. Nada

se comparava à alegria do Natal. As ruas da cidade

ficavam coloridas e, de dentro das casas, à

noite, saíam as piscas luminosidades multicoloridas.

Minha mãe ficava sempre de costas, no

fogão, na pia ou limpando a casa, escondendo

os olhos marejados, mas acho que era emoção.

Essas datas são sempre assim. Meu irmão, Ademir,

ficou importante, foi pra São Paulo, um ano

sem aparecer, agora ia chegar, trazer mais alegria,

presentes e quem sabe uma nova namorada

bonita e chique. Eu mal podia esperar. Meu pai

entrava pela sala, olhava as meninas em suas

funções natalinas, passava pela cozinha, olhava

para a minha mãe, beliscava alguma coisa no

fogão e saía para a varandinha dos fundos, resmungando

uma coisa qualquer, mastigando palavras

avulsas e sem sentido. Quase não falavam

sobre o meu irmão, e se alguém mexia no assunto,

era pra gente ficar calado, ninguém tinha

que saber de nada. Achava estranho, sempre

43


Chicos

assim, pareciam cochichar, abaixavam a cabeça,

a voz, ninguém entendia direito o que diziam.

Devia haver algum segredo. Para mim, significava

uma surpresa e eu alimentava essa ideia em

silêncio, acumulando sonhos.

Quando amanheceu a véspera, o mundo

acordou agitado. Antes do sol já se ouvia barulho

das pessoas nas ruas. Na minha casa, o dia

anterior nem adormeceu. Eu podia ouvir meu

pai e minha mãe conversando baixinho igual

quando se referiam ao meu irmão. De manhã,

meu pai, como sempre, saiu cedo para o trabalho

e minha mãe não voltou pra cama depois

que ele tomou café e sumiu na rua escura com

sua velha bicicleta. Não havia muito o que fazer

àquela hora, mas minha mãe inventava coisas e,

naquele dia, então... Do meu quarto dava pra

ouvir o ruído dos seus afazeres: o barulho de

uma panela, o movimento da vassoura limpando

o chão, a água no tanque de roupa, o movimento

leve dos seus passos pra lá e pra cá. Quando

tudo se aquietou, a casa ainda em penumbra denunciou

o tremular de uma luz de vela. Levantei

devagar e espiei de longe, minha mãe de joelhos,

diante do presépio de Natal, rezava e passava

um lenço no rosto. Eu não sabia rezar direito,

mas caminhei lentamente e parei um pouco

atrás dela, me ajoelhei e rezei ao meu modo,

pedi a Deus que os pedidos de minha mãe fossem

realizados e os meus também. Minha mãe

se levantou e acariciou meus cabelos, me beijou

e arrumou a mesa do café: um pão requentado,

um pote de margarina, um bule com leite morno

e uma garrafa de café. Me chamou de Ademir,

mas não liguei, sabia que ela trocava os nossos

nomes de vez em quando. No fundo, eu até gostava,

porque era bom parecer com meu irmão:

cabelos longos, barba cerrada, bonito, forte, tinha

um monte de gente que gostava dele na fábrica

e no bairro. Tinha até quem não gostava,

alguns tinham inveja, inventavam coisas. Meu

pai, incomodado, dava conselhos, pedia pra ele

deixar de lado certas coisas arriscadas que fazia,

estava cercado de leva-e-traz, e os chefes não

estavam satisfeitos. Mas Ademir, turrão, não dava

ouvidos. Até que ele foi embora e meus pais

ficaram tristes, muita gente ficou triste. Eu não

fiquei nem alegre nem triste, mas achava aquilo

tudo muito importante e, além do mais, me fascinava

pensar no dia em que ele viesse nos visitar,

a casa, a rua, tudo ficaria diferente.

Acho que por isso minha mãe levantou cedo

naquele dia, rezou diante do presépio, agradecendo;

por isso me ajoelhei como ela e, mesmo

sem saber, rezei ao meu modo. Por isso as

horas não passavam, o dia como uma lesma se

arrastava lento na manhã interminável. A qualquer

barulho no portão, eu corria para ver quem

estava chegando. Não era ninguém, e minha casa

foi ficando cada vez mais sem graça. Cheguei

a me plantar de pé no portão, aguardando a chegada,

os olhos atentos a identificar pessoas na

rua até a vista doer, até me queimar sob o sol

forte daquele dia. Em cada pessoa que surgia no

início do quarteirão, eu via o vulto de Ademir.

Acho que por isso minha mãe levantou cedo

naquele dia, rezou diante do presépio, agradecendo;

por isso me ajoelhei como ela e, mesmo

sem saber, rezei ao meu modo. Por isso as

horas não passavam, o dia como uma lesma se

arrastava lento na manhã interminável. A qualquer

barulho no portão, eu corria para ver quem

44


Chicos

estava chegando. Não era ninguém, e minha casa

foi ficando cada vez mais sem graça. Cheguei

a me plantar de pé no portão, aguardando a chegada,

os olhos atentos a identificar pessoas na

rua até a vista doer, até me queimar sob o sol

forte daquele dia. Em cada pessoa que surgia no

início do quarteirão, eu via o vulto de Ademir.

À tarde, as horas mortas se estenderam até

o pôr do sol. O enfado estatelou-se em cada cômodo

da minha casa. Anoiteceu e tudo pareceu

um dia comum, sem nenhum ruído diferente,

apenas um soluço abafado, talvez, vindo do

quarto de minha mãe, mas com isso eu já estava

meio acostumado. Meu pai estava caladão, respirava

fundo e resmungava coisas que eu não

entendia. Agora, o silêncio sufocava mais que o

calor, distanciava e escurecia tudo à minha frente.

No pequeno corredor, parecia haver uma

enorme cratera isolando os cômodos da casa no

breu da noite. Meu irmão não veio, e não veio

nunca mais. Não sei o que minha mãe pediu em

sua prece, mas não foi atendida. Naquele Natal,

nenhuma alegria aconteceu, e mesmo os presentinhos

foram incapazes de provocar qualquer

empolgação. Apenas a arvorezinha revestida de

papel celofane verde-escuro insistia, em vão, na

alegria da casa, com o seu pisca-pisca e suas bolas

coloridas.

de Cada gota de silêncio,

Editora Ipêamarelo, 2021

* José Vecchi de Carvalho

Nasceu em Cataguases, após morar por muito tempo em Viçosa vive

hoje em Paula Candido todas cidades mineiras. Coautor de A casa da

Rua Alferes e outras crônicas (2006), e autor de Duas Cruzes (contos

2018), Contradança (contos 2020) e Cada gota de silêncio (contos 2021)

45


Chicos

A barata e a verossimilhança

*Raquel Naveira

No meio da noite quente e úmida de

verão, despertei. Fui até a cozinha e lá estava

ela, a barata, andando sobre o soalho

branco, as antenas em riste. Sua cabeça era

curta e os olhos me pareceram lânguidos,

cheios de cílios. Tâmara marrom avermelhada.

Correu como se tivesse medo de mim.

Logo eu, que tenho pavor desse inseto gorduroso,

saído dos esgotos e desertos para

atacar minha ansiedade de mulher.

Franz Kafka, o escritor austro-húngaro,

escreveu A Metamorfose, história do caixeiro-viajante

Gregor Samsa, que um dia acorda

metamorfoseado em um enorme inseto,

uma barata. O clímax do livro se instala logo

no início, no primeiro parágrafo. Temos que

aceitar e continuar lendo a partir de um

acontecimento extraordinário. Mas Gregor é

tão natural, tão preocupado com seu trabalho,

em perder o emprego com o qual mantém

sua família que, espantosamente, acreditamos

no seu relato. Sentimos um suor frio,

um misto de horror e beleza diante dessa

mudança estranha e notável. Vêm à tona as

perseguições existenciais que sofremos, os

nossos questionamentos sobre solidão, fuga,

paranoia. Identificamo-nos com o “monstro

de dorso duro e inúmeras patas”, que revela

nosso desespero frente ao absurdo universo

em que vivemos. O pai esconde o filho no

quarto, mas, aos poucos, ele é esquecido por

todos, encurralado, desumanizado e morre

de inanição.

A Paixão segundo GH é um romance

ou uma novela da misteriosa Clarice Lispector?

Ela responderia que não se importava

com essas questões literárias. Era “um livro

qualquer”, que deveria ser lido por pessoas

de “alma já formada”. Podemos tentar o seguinte

resumo: após a demissão da empregada

doméstica, uma mulher branca, sem

nome (sabemos apenas as suas iniciais gravadas

no couro de uma valise), classe média

alta, sem filhos, escultora, resolve arrumar,

ordenar as coisas, fazer uma faxina no quarto

da funcionária. O quarto está limpo, impecável,

mas, de repente, surge uma barata.

Essa barata “que vista de perto é um objeto

de grande luxo. Uma noiva de pretas joias”,

vai desencadear uma verdadeira epifania,

uma enxurrada de revelações, lembranças

íntimas, cadeias de analogias súbitas. Energias

que atraem baratas emergem do fundo da

alma de GH: um calvário de tristezas, impurezas,

pensamentos negativos, cóleras, hostilidades,

depreciações, abortos, ajustes de

contas (“O que fizera eu de mim?). GH se

sentia imunda como a Bíblia fala dos imundos

e ela fizera o ato proibido de tocar no

que é imundo. Entre súplicas e arrependimentos,

ela vê uma matéria branca saindo

da barata espremida. Cada vez mais perturbada,

fora de controle e com coragem, ela

cede ao desejo de comer a barata em expiação,

em busca dos instintos mais primitivos

que justificassem o encontro de sua verdadeira

razão de existir, de sua identidade. GH

tinha vergonha de si mesma e da face de

Deus. Queria se reorganizar através desse

louco ritual, que poderia levá-la ao campo

demoníaco. É assim que GH se purifica, se

desintoxica dos sentimentos perversos,

“limpa a ponto de entrar na vida divina”.

46


Chicos

Pela porta da danação. Desceu ao inferno.

Descobriu que o erro básico de viver era ter

repulsa por uma barata. Ter nojo de beijar

um leproso. Encheu-se de piedade. O seu antipecado

foi comer a massa daquela barata,

numa sensação de hipnose, seguida de vômito

violento. Depois desse expurgo, veio a alegria,

a graça que se chama paixão. Cometera

o ato ínfimo, o ato máximo que sempre lhe

faltara.

A Paixão segundo GH... Paixão com letra

maiúscula como a Paixão de Jesus Cristo,

que significa sofrimentos físicos, espirituais e

mentais. Suspeito que GH seja uma referência

a Gênero Humano. GH somos todos nós, estupefatos,

necessitados de redenção perante

nossos próprios horrores.

Ariadne Cantú, advogada e escritora,

que convive de perto com jovens e adolescentes

em situação de risco, optou pela linguagem

da fábula em O Barato das Baratas, livro

que prefaciei. Nessa história, as personagens

são baratas que sobrevivem depois de uma

hecatombe, de uma explosão nuclear da Terra.

São forças da natureza, têm características

humanas, muito humanas. Numa sociedade

hedonista, encantada com o poder, de valores

éticos e morais corrompidos, envolvem-se

com um barato alucinógeno que fascina, desorienta,

desintegra, esfacela, esmigalha. Tudo

nos soa familiar e conhecido. Algo que

nos causa asco, mas do qual fazemos parte,

às vezes até por omissão. É como se percorrêssemos

antros sujos da alma infestada por

essas pragas que roem roupas, livros e mentes,

criaturas complexas que nos apavoram e

aliciam. A autora, de maneira original, com

sabedoria e imaginação, aborda o assunto

pungente e dramático da droga na contemporaneidade.

Não seria possível narrar sobre o pesadelo

de se ver transformado em uma barata, sobre

o nojo de comer uma barata ou sobre um

mundo onde baratas se humanizaram, sem

uma das principais ferramentas do escritor: a

verossimilhança. Essa coerência, esse nexo

entre fatos e ideias é que nos dá a impressão

da verdade que a ficção consegue demonstrar.

A criação da suprarrealidade.

O mestre de Teoria Literária, Hênio Tavares,

assim nos explicou: “Se a Verdade é o

acordo entre o pensamentos e a realidade, incalculáveis

são os desacordos entre o pensamento

e a realidade, que a longa história das

artes registra e imortaliza na consagração da

glória.” Há mentiras ou desacordos belíssimos

como as lendas e as mitologias.

Tratei aqui das baratas que representam

as moléstias espirituais e reais que nos afrontam,

escapando pelos buracos e bueiros abertos

na crosta do planeta. Imaginem o meu

susto naquela noite úmida e quente de verão,

quando despertei e dei de cara com uma barata

na cozinha. Ela foi mais rápida do que eu

e, antes que a esmagasse e a virasse pelo

avesso, com patas leves e asas fartas, sumiu

pelo ralo. A lâmpada brilhou forte.

Referências bibliográficas

CANTÚ, Ariadne. O Barato das Baratas. Campo

Grande/MS: Alvorada, 2014

KAFKA, Franz. A Metamorfose. São Paulo:

Biblioteca Folha, 1998.

LISPECTOR, Clarice. A Paixão segundo GH.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.

TAVARES, Hênio Último da Cunha. Teoria

Literária. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, 5ª edição.

* Raquel Naveira

Nasceu em Campo Grande MS, formada em Direito e Letras, doutoranda em

Literatura Portuguesa na USP, é escritora e publicou, entre outros, Abadia

(1996), Casa de tecla (1999) indicados ao Prêmio Jabuti de Poesia

47


Samuel Rawet no seu labirinto

Chicos

*Danilo Gomes

Há 37 anos morria em Brasília, dramaticamente,

o escritor Samuel Rawet. Mais especificamente

em Sobradinho. Solitário, de ataque

cardíaco, aos 55 anos de idade.

Ele nasceu em 23 de julho de 1929, na

aldeia de Klimontow, na Polônia, de pais judeus.

Nome completo: Samuel Urys Rawet.

Chegou ao Rio de Janeiro aos 7 anos de idade e

foi morar com a família nos subúrbios (Ramos e

depois Olaria), passando infância pobre.

“Aprendeu português como poucos brasileiros”,

escreveu Napoleão Valadares no seu Dicionário

de Escritores de Brasília , já em 4ª edição. Formou-se

em Engenharia. Integrou a equipe de

Oscar Niemeyer, Lúcio Costa, Joaquim Cardozo

(também poeta, e dos bons), Carlos Magalhães

da Silveira (recentemente falecido em Brasília,

aos 88 anos, ex-genro de Oscar Niemeyer). Trabalhando

com o pernambucano Joaquim Cardozo,

Samuel Rawet fez inúmeros cálculos para

edifícios de Brasília. Assim, o engenheiro e já

contista famoso ajudou a construir a nova capital

do Brasil, saga comandada pelo Presidente Juscelino

Kubitschek de Oliveira.

Foi contista, novelista, teatrólogo e ensaísta.

Em 1956, Rawet publicou seu livro de

maior sucesso, Contos do imigrante . Livro doloroso,

angustiante, como foi e como seria a vida

do autor, que rompeu com o judaísmo e a família.

Há um clima de Dostoiévski e um travo de

angústia de Kafka em seus contos e novelas.

Aqui em Brasília ele se tornou “O Solitário Caminhante

do Planalto”, título de uma entrevista

que fiz com ele para o “Suplemento Literário do

Minas Gerais” ( então dirigido pelo saudoso Wilson

Castelo Branco ) e que depois publiquei no

meu livro Escritores brasileiros ao vivo, entrevistas,

vol. 1, Ed.Comunicação/ INL, 1979. Essa

entrevista de 1976 está mencionada na bibliografia

sobre o escritor, no livro Contos e novelas

reunidos, de Samuel Rawet, editado e prefaciado

por André Seffrin, com “orelhas” de Flávio

Moreira da Costa.

Tive a honra de escrever um longo prefácio

para o volume Dez contos escolhidos de Samuel

Rawet, da Editora Horizonte, de Brasília,

por recomendação do crítico literário Almeida

Fischer. Esse volume é de 1982. Em 1997, Ézio

Flavio Bazzo publicou um livro sobre o autor

polaco-brasileiro, Rapsódia a Samel Rawet.

Samuel Rawet foi um escritor criativo,

inovador, sensível, culto, eu diria mesmo genial,

como o atestam os que se debruçaram sobre

sua sofrida obra de “judeu errante”, sempre exilado,

irrequieto. Flávio Moreira da Costa o incluiu

na antologia Os 100 melhores contos de

crime e mistério da literatura universal e Ronaldo

Cagiano deu-lhe destaque na sua Antologia

do conto brasiliense.

***

Conheci-o em Brasília quando aqui cheguei,

em março de 1975, vindo de Belo Horizonte.

Em 1976, meu filho mais velho, Rodrigo,

tinha quatro anos de idade e frequentava o jardim

de infância na SQS 303. Eu o levava à es-

48


Chicos

cola quando minha mulher não podia fazer isso.

Ali, nas imediações, algumas vezes me encontrei

com o escritor, naquelas claras manhãs, pois ele,

de bermuda, passeava pelas quadras próximas,

morador que era de uma delas, acho que a 105

Sul. Batíamos um rápido papo. Estava sempre

alegre, risonho. E passava a mão, num gesto paternal,

na cabeça do menino Rodrigo.

Eu encontrava Rawet também nas reuniões

da Associação Nacional de Escritores- ANE, então

sediada na 415 Sul. Ele era associado. Cordiais

conversas. Entrava na roda da cerveja. Em

geral, Rawet não demonstrava amargura, tristeza

aguda, isolamento. Ele tinha momentos de

alegria, confraternização, convivência.Mas nós o

sabíamos um prisioneiro da melancolia e mesmo

da revolta. Ele devia sentir-se, talvez, um “poète

maudit”, na sombria linha de Baudelaire, Mallarmé,

Verlaine, Rimbaud. Gostava, sim, da solidão.

No extinto caderno “Pensar”, do “Correio

Braziliense”, de quase 20 anos atrás, li um ótimo

ensaio que sobre o ficcionista escreveu Stefania

Chiarelli, então doutoranda em Estudos de Literatura

na PUC-Rio. Ela assim sintetizava a vida

do famoso prosador: “errância, exílio, isolamento.”

Num almoço na casa da escritora Branca

Bakaj e seu marido, o arquiteto Mário Bakaj, em

2004, o poeta Cassiano Nunes nos disse:

“Samuel Rawet foi uma figura trágica, vangoghiana.”

Os dois eram muito amigos. E já não

pertencem a este mundo.

Ele buscou a solidão para morrer. Nos últimos

anos de vida, apresentava sinais de distúrbios

mentais, acentuados desequilíbrios de comportamento,

mania de perseguição, procura de

imaginários culpados para umas tantas mazelas.

Entrou num mundo de paranoias. O “judeu errante”,

o ser humano cheio de conflitos, o autor

“maldito” e automarginalizado, rebelde, neurótico.

Morreu em 25 de agosto de 1984. Foi encontrado

depois de vários dias da ocorrência do

óbito, em Sobradinho, DF.

De sua bibliografia, constam estes livros:

Contos do imigrante, Diálogo, Abama, Os sete

sonhos, O terreno de uma polegada quadrada,

Consciência e valor, Viagens de Ahasverus à terra

alheia, Devaneios de um solitário aprendiz de

ironia, Alienação e realidade, Eu, tu e ele, Angústia

e conhecimento e, ainda, Que os mortos

enterrem seus mortos.

Prefiro me lembrar dele nas nossas animadas

conversas regadas a cerveja, na então sede

da ANE. Prefiro me lembrar dele de bermuda,

alegre sob o sol brasiliano, nas manhãs daquele

ano de 1976, afagando a cabeça do meu filho,

hoje com 49 anos. Carinho que ele talvez não

tivesse tido quando menino na sua Polônia natal.

E no Rio. O que talvez tenha ajudado a marcar

sua dolorosa angústia pela vida afora…

Brasília, junho de 2021.

* Danilo Gomes

Nasceu em Mariana MG, mora em Brasília DF. É jornalista e escritor. Autor,

dentre outros, de Uma Rua Chamada Ouvidor; Água do Catete; Antigos Cafés

do Rio de Janeiro e Em Torno de Rubem Braga.

49


Chicos

Eltânia André e a literatura vista pelo olhar feminino

*Adelto Gonçalves

I

Quem chamou a atenção deste resenhista

para o modo diferente como as mulheres escritoras

olham o mundo foi o escritor catalão Eduardo

Mendoza (1943), em entrevista que concedeu,

em janeiro de 1990, em Barcelona. E que

seria publicada à época na revista Linden Lane

Magazine, de Princeton, Nova Jersey/EUA, no

Jornal de Letras, de Lisboa, em O Estado de S.

Paulo, no Suplemento Literário Minas Gerais e

em A Tribuna, de Santos, e ainda pode ser lida

no site www.filologia.org.br.

Eis o que disse Mendoza: “Interesso-me,

entre os contemporâneos, pelas mulheres. Elas

interessam-me porque escrevem de uma maneira

distinta. É difícil que um homem, nestes momentos,

faça uma imagem que não seja conhecida.

Já as mulheres têm imagens próprias, completamente

novas. São uma janela para outro

mundo, outra sensibilidade e outra forma de ver

as coisas”.

Pois bem, o novo livro de Eltânia André

(1966), Terra dividida (São Paulo, Laranja Original

Editora, 2020), é uma confirmação das palavras

de Mendoza. E uma prova de como o olhar

feminino na literatura é diferente daquele feito

por homens, como sabe quem tem intimidade

com as obras de Clarice Lispector (1920-1977),

Cecília Meirelles (1901-1964), Nélida Piñon

(1937), Cora Coralina (1889-1985), Carolina de

Jesus (1914-1977), Lygia Fagundes Telles (1923)

e Hilda Hilst (1930-2004), só para ficarmos com

algumas autoras brasileiras. É um outro olhar.

II

O romance de Eltânia mostra como pano

de fundo Pirapetinga, cidade de 10 mil habitantes,

que fica na divisa dos Estados de Minas Gerais

e Rio de Janeiro, com o rio do mesmo nome

separando o território mineiro de Santo Antônio

de Pádua, no lado fluminense. Embora nascida

em Cataguases, cidade mineira que constituiu

extraordinário celeiro de artistas da mais alta relevância

para o País ao longo do século 20, desta

vez, a autora preferiu se inspirar em Pirapetinga,

terra de seus avós, que fica a 150 quilômetros

de distância, e, assim, construiu um mundo

imaginário cortado pelas águas de um rio e pelos

valores, dramas e contradições que circundam as

50


Chicos

relações pessoais.

Em linguagem extremamente criativa e pessoal,

Eltânia vai enumerando, numa prosa escorreita e

acessível a qualquer leitor, os acontecimentos na

vida de uma família, ao mesmo tempo em que

traça paralelos entre a frágil democracia brasileira

e as recentes tentativas para o seu enfraquecimento,

que vão até a um possível golpe de

mão armado antes das eleições previstas para

2022. Aliás, concluído em agosto de 2016, o

romance é premonitório, ao reproduzir em

sua penúltima página a fala de um esbirro da

ditadura militar (1964-1985) exaltando a figura

de um torturador, prenúncio dos maus

tempos que viriam com aquele que já é considerado

o pior governo da História republicana.

Em seu romance, a autora adota a técnica

do fluxo de consciência joyceano, ao percorrer

as trajetórias de figuras anônimas, como Naira,

Socorrinha, Eneida, Basílio, Nena e Almeidinha,

procurando desvendar os mistérios da mente de

cada personagem. Como exemplo, eis um trecho

do depoimento de Socorrinha:

“Muitas garotas não se previnem e engravidam

por descuido e de dão mal como eu. A

maioria dos homens que conheço não quer saber

de compromisso doméstico, ajuda a lavar as louças

e acha que está sendo moderno. O Laurindo,

ex-marido da Efigênia, fez tudo quanto é tipo de

falcatrua para enganar o juiz, no final deixou

uma pensão minguada para os quatro filhos. O

Aldo se mandou sem olhar para trás, a menina

dele teve que ir ao psicólogo, tão triste ficou

com o sumiço do pai de outrora. A carga bruta

sobra é pra gente (…)” (págs. 88-89).

Já Basílio é marcado pelo prenúncio de novos

tempos, pois nasce no dia 15 de março de

1985, data em que caiu a ditadura militar. O seu

depoimento vai até a época do impeachment da

presidente eleita Dilma Roussef, que, aliás, caiu

mais por ser a primeira mulher a ocupar a presidência

da República brasileira do que por qualquer

outra razão alegada.

Como se percebe, a ação do romance começa,

cronologicamente, na era pré-digital, em

que as indústrias e até as redações dos jornais e

revistas começavam a passar pelas transformações

ditadas pela informática, até chegar à época

atual em que muitas conversas são feitas através

de e-mails, messenger do facebook, instagram

ou whatsApp, imagens privadas são divulgadas

por youtube e os negócios já não exigem dinheiro

vivo para serem realizados, mas moedas virtuais,

como a bitcoin, criptomoeda criada para ser

um meio de pagamento totalmente eletrônico

que transfere créditos pela rede.

III

Como observa no prefácio a poeta Kátia

Bandeira de Mello Gerlach, neste livro de Eltânia,

“o inferno das aparências reina desde antes

da revolução digital e persegue e cria marca de

ferro nos seus habitantes em termos existenciais”.

Para a prefaciadora, o texto de Eltânia

lembra o da escritora portuguesa Agustina Bessa

51


Chicos

-Luís (1922-2019), principalmente em seu livro

A sibila (1954), palavra que, entre os antigos,

olhar diferente do mundo que não se vê na literatura

praticada por homens.

designava a mulher a quem se atribuíam o dom

da profecia e o conhecimento do futuro, ou seja,

a profetisa.

IV

De fato, tal como se dá em A sibila, o fio

condutor principal é bastante descontínuo e vai

mais além, pois, se no romance de Agustina é a

partir do relato da vida de Quina, a sibila, que se

sucedem episódios muito variados com numerosas

personagens, em Terra dividida as personagens

principais são pelo menos sete, além do

gato Getúlio, que acompanha a sucessão de fatos

com atenção, como se fosse um ser humano.

Tal como Agustina, Eltânia André procura

mostrar a profunda dimensão humana que se

pode encontrar num espaço rural tradicional, onde

cabe à mulher um papel de primeira grandeza,

pois, geralmente, os homens fogem à responsabilidade

e acabam por buscar um possível

futuro melhor nas grandes cidades, deixando às

parceiras a responsabilidade maior de criar e

educar os filhos. Por aqui se vê que o livro de

Eltânia chega para merecer um lugar de destaque

na literatura de Língua Portuguesa. E vem

Depois de viver experiências traumáticas

com a violência urbana que marca a vida numa

cidade grande como São Paulo, Eltânia André

hoje mora em São Pedro do Estoril, aldeia da

freguesia de Cascais e Estoril, perto de Lisboa. É

formada em Administração e Psicologia, com

especialização em Psicopatologia e Saúde Pública.

Tem uma obra que já se destaca entre os

autores da Literatura Brasileira: Meu nome agora

é Jaque (contos, Belo Horizonte, Editora Rona,

2007), seu livro de estreia; Manhãs adiadas

(contos, São Paulo, Editora Dobra, 2012); Duelos

(contos, Editora Patuá, 2018), Para fugir dos

vivos (romance, São Paulo, Editora Patuá, 2015)

e Diolindas (romance, São Paulo, Editora Penalux,

2016), escrito em parceria com o marido, o

romancista Ronaldo Cagiano.

provar que as escritoras oferecem mesmo um

* Adelto Gonçalves

Doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela USP e autor de

Gonzaga, um poeta do Iluminismo (1999), Barcelona brasileira (Lisboa,

1999; São Paulo, 2002), Bocage, o perfil perdido (Lisboa, 2003; São Paulo,

2021), Tomás Antônio Gonzaga (2012), Direito e Justiça em terras d´el-rei

na São Paulo Colonial (2015), Os vira-latas da madrugada (2015) e O reino,

a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo –

1788-1797 (2019), entre outros.

52


Chicos

Dois novos escritores cataguasenses

*Antônio Jaime Soares

Um deles é Rosário François

Fusco, jornalista velho de (Souza)

guerra que estreia em livro com Histórias

de Tobias Mendes, publicadas em

vários periódicos de décadas passadas.

Crônicas de humor rascante como cachaça

recém-saída do alambique,

“pero sin perder la ternura jamás”*. O

outro é Eduardo Henriques, que morou

muito tempo fora, mais conhecido por

seu trabalho em música e filmagens.

Voltou à terrinha e agora acrescenta ao

seu currículo a atividade literária, na

qual estreia logo com um romance

chamado Forças Coeternas, a longa

jornada de um noviço rebelde até compreender

a superioridade do bem sobre

o mal. A seguir, apresentação de seu

livro, pelo homem de teatro Carlos

Sérgio Bittencourt. Do outro fala mais

adiante Antônio Jaime Soares.

*Frase de Ernesto Che Guevara

Forças Coeternas

Carlos Sérgio Bittencourt

O título não dá pistas ao leitor sobre a

história contada pelo autor Eduardo Henriques,

mas se torna perfeitamente compreensível

durante o desenrolar da incrível e fascinante

trama vivida pelo protagonista. Tratase

de um menino pobre e matuto que se vê

forçado a entrar para um seminário para ser

padre, única solução encontrada pelos pais

para salvá-lo da miséria.

Já nessa parte inicial da história, Eduardo

Henriques cativa o leitor ao narrar com

minúcias o cotidiano de um grotão de Minas,

reproduzindo o linguajar e os costumes

do interior mineiro. Com personagens e causos

que nos remetem à maestria de um Guimarães

Rosa, o autor mantém um olhar arguto

e carinhoso sobre o homem caipira

submetido aos desmandos dos coronéis de

antanho.

Para fugir desse destino miserável, alguns

pais conseguiam enviar seus filhos para

serem educados em seminários e seguirem

os dogmas da igreja católica. Foi o que

aconteceu com o menino José Antônio Asmodeus

de Jesus. A história, a partir daí, poderia

ser apenas sobre as aventuras e desventuras

de José Antônio no seminário, não

fosse Eduardo Henriques um artista de múltiplos

talentos que agora nos surpreende como

escritor.

O autor foi capaz de desenvolver uma

narrativa que se desdobra em várias camadas,

seduzindo o leitor com reviravoltas que

abrangem o sagrado, o sacrilégio, o amor, o

ódio, a fé, a traição e a ambição em cenários

que ressaltam a luta entre o Bem e o Mal.

Surgem novos personagens e novas tramas

que fascinam o leitor, agora absorvido pelas

guinadas de uma história que beira a litera-

53


Chicos

tura do gênero fantástico.

Nada mais posso revelar sobre a trajetória

de José Antônio para não prejudicar o

elemento “surpresa” que envolve o livro de

Eduardo Henriques. Mas preciso ressaltar a

coragem do autor ao questionar preceitos

sagrados e ousar mostrar com intrepidez as

entranhas de um seminário onde dogmas rígidos

formulados pela igreja católica eram

impostos a imberbes seminaristas.

Preceitos estes que felizmente sofreram

transformações através dos tempos.

Eduardo Henriques, em seu livro, conseguiu

expor, com enorme evidência, as forças

coeternas que traçam o destino da humanidade.

Prefácio-aperitivo

Antônio Jaime Soares

Finavam-se o século e o milênio, quando

apareceu um novo jornal nas bancas. A

folhas tantas, a cidade descobriu, surpresa,

um tal de Tobias Mendes a contar deliciosas

mentiras, com profundo fundo de verdade,

violando todas as regras do jornalismo. Pode?

Claro que pode e é fácil entender, basta

adentrar as páginas destas Histórias de Tobias

Mendes. Muitos leitores, “isclusive

eu” (como disse um edil no plenário da Câmara

de Cataguases, na qualidade de presidente

daquela egrégia instituição), ficaram

en­cucados: quem seria aquele voraz devorador

de engarrafados de vária procedência e

colesterosos tira-gostos, em sua “busca insaciável

de prazer” (grande sacada do humorista

Jaguar, outro pinguço, e dos mais respeitáveis),

então já a caminho das 11 arrobas,

165 quilos, numa idade, 75 anos, em

que com a metade desse peso já correria risco

de vida?

A alcunha Tobias Mendes dava a

entender que era pseudônimo e descobri tratar-se

de um sujeito que viera a conhecer

não fazia muito tempo e nesse período constatamos

sermos possuidores de um aparelhinho

infalível, chamado desconfiômetro. Daí

não ficarmos chorando o leite derramado,

por exemplo, lamentar o pouco que viveu

Ascânio Lopes. Alguns chegam a exageros:

“Se Ascânio tivesse atingido mais idade, não

tinha pra Drummond etc.”. Fato é que viveu

dois anos mais que Álvares de Azevedo e

Casimiro de Abreu, e um menos que Castro

Alves. Se não fulgura no lábaro estrelado da

poesia tupiniquim, não é, necessariamente,

por seu curto percurso-vida. Melhor ir caçar

outro muro de lamentações.

A

Cataguases

“monumental” (ponte, paço, praças, avenida,

estação, Hotel Villas, fábrica velha, Chácara

Dona Catarina, a modernidade trazida

por Francisco Inácio Peixoto, bem como o

modernoso que lhe sucedeu) ainda jaz de pé

e nela Tobias Mendes se refestela, talvez, no

fundo do coração apaixonado, cantarolando

o velho tango: “Já não te vejo deslumbrante

como outrora...”. Mas parece achar tudo bonito,

sob o manto diáfano da caxumbrina,

rebatida, entre outras mastigadas, por aquele

figadozinho de penosa que, aliado ao seu,

pode causar um considerável estrago, considerando-se

que “o fígado faz muito mal à

bebida”, como assegurou o Barão de Itararé.

Com autonomia de copo e estômago de

avestruz, Mister Mendes traça todas e repete

a dose.

Tive o prazer de ser seu colega por dois

curtos períodos no jornal oficial da cidade.

Períodos em que ele foi redator, repórter,

cronista e no segundo, também editor. Cobra

criada, ti­rava de letra, “isclusive” na arte

de atirar farpas. Por exemplo, contra certa

loura de farmácia que quase o atropelou,

sendo logo depois atropelada num cargo de

54


Chicos

deputância estadual. E frases espirituosas,

como “O calor de Cataguases, ó, bem o sabeis,

estava esturricando calango na sombra”.

Sobre certa moça que se chamava Pérola,

teve ímpetos de perguntar qual era a

graça da ostra-mãe. A um paquerador barato,

deu o nome de “A. Nuro”. Às vezes, deixa

no ar, como nesse trecho: “Solenes caminhadas

por esta terra de tão bons filhos...”.

Filhos de quem, cabe ao leitor decidir. E esta

tacada de mestre, sobre um amigo: “E de

tanto conjugar o verbo agradecer eu descobri

que há momentos em que é necessário

desenhar braços na palavra gratidão pra dar

a ela a dimensão exata de grandeza, que só

um abraço traduz”.

São muitas histórias e escolho todas,

especialmente aquela em que Tobias entra

em pânico, em vias de ter suas vias internas

invadidas por um dedão intruso, num exame

de próstata. Suas desventuras com o Viagra

e os efeitos colaterais, no caso, um desarranjo

em órgão vizinho daquele em que a droga

deveria atuar. E a do cara que ganhou uma

bolada no bicho e, como quem nunca comeu

melado, lambuzou-se na enxurrada. O

prêmio, não vou contar, tomou outro rumo

que não o seu bolso. E mais: o desfecho da

temporada praiana de família mineira, triste

de dar dó, ao mesmo tempo, cômica de dar

nó − nas tripas, de tanto rir. Fui o primeiro

leitor de várias delas, até inspirei uma, o não

-falecimento de Nazareth Tedesco, a mulher

má de uma novela, cuja razão o leitor descobrirá.

Piranha não morre afogada, eis uma

pista.

Ao contrário de outros jornalistas com

quem trabalhei (mesmo no Rio havia uns

bem bobinhos), ele estava sempre de olho

nos livros, “isclusive” sobre jornalismo, depois

duma vista d’olhos nos grandes diários,

via net. Os outros, porém, estavam nem aí e

cometiam gafes como escrever Mato Grosso

do Norte, até dizer que o clímax do concerto

da orquestra da CBA foi a Ave-Maria, de

Bach-Gounod, que não constava no programa.

O escriba deve ter confundido com a

Ária da Corda Sol, de Bach (sem Gounod),

talvez superior, o que não faz diferença no

rarefeito universo Disney World de seus conhecimentos,

adquiridos em grande parte

assistindo à TV Plim-Plim, como Tobias nomeia

a Globo.

No tempo que sobrava a gente ria a

bandeiras despregadas, posto que motivos

jamais faltarão, seja nas repartições públicas,

seja nas privadas. Entre mil disparates, os

comandantes do Paço Municipal naquela administração

aprovaram vídeo sobre a caça ao

mosquito da dengue, sem a menor cerimônia,

sob os heróicos acordes de A Cavalgada

das Valquírias, de Richard Wagner. A noção

do ridículo (se é que havia) passou longe.

Nem Odorico Paraguaçu, o maquiavelento

juramentado e praticante prefeito de Sucupira,

ousaria tanto. Contra esses descompetentes

a gente tem é que rir e se vingar, na urna

eleitoral, pra que outros descompetentes os

substituam, com raras exceções, ficando tudo

na mesma, a passo de lesma. “A vida é

assim”, diz, desconsolado, Tobias, quando

sente esgotada sua capacidade de indignação.

Muito bem, arguto leitor: tu tens em

mãos uma obra que teu raciocínio vai assimilar

com o inenarrável prazer de uma taça

na medida certa, goela seca abaixo. Algo como

aquele licor oferecido pela mãe da namorada,

licor sabor beijo, lembra-se? Obra

escrita como que em mesa de bar, onde, se a

saudade apertar, é bom afogá-la nos copos,

tal qual aconselhou Ary Barroso. Se o cotovelo

doer, cantar Vingança, de Lupicínio Rodrigues:

“Você há de rolar como as pedras

que rolam na estrada...”. E, quando não tiver

mais jeito, “Só nas tabernas é que encontro

meu abrigo, cada colega de infortúnio é um

grande amigo...”, da canção O Ébrio, citada

por Tobias.

Sobre esta última, correu o boato de

que Vicente Celestino a repetiu tantas vezes

no Teatro Carlos Gomes, no Rio, que o con-

55


Chicos

trarregra morreu de cirrose. Convivi com o

livro algumas semanas a fazer a revisão e,

temendo chegar ao mesmo fim daquele pobre

serviçal, invoquei a bênção de San Juan

de los Porres (cultuado no Peru, tá no Google).

E olha que trabalhei sóbrio, ainda que

clamando por uma “especial” de Dona Euzébia

sorvida no Guarani, bar que Tobias não

homenageia, tendo pas­sado por lá inúmeras

vezes, no seu trajeto rumo à Vila e adjacências

biritais e quais. Talvez, um “lápis” de

memória, como diz um de seus personagens,

fruto da amnésia e um ou outro delirium tremens.

Estes também produziram histórias.

Embora eu me ajoelhe diante do vernáculo

irretorquível do citado Peixoto (vide seu

livro Passaporte Proibido), em diversos e justificáveis

trechos deixei a gramática correr

solta, um descontozinho, em se tratando do

seu afilhado errático (noite adentro), ainda

que não cometa erros crassos ao escrever – e

como escreve bem, o danado. Com a pena

da galhofa e a tinta fabricada com o mesmo

material, sem pretensões literárias, atinge a

boa literatura. Li outros livros sobre bares,

nenhum deles tão divertido, “isclusive” o de

Jaguar. E, feito Jaguar, não se limita a lugares

classe média, ao contrário, enfurna-se

por bibocas as mais distantes, daí a quantidade

de tipos pitorescos que descreve. Um

estreante em livro que o agudo senso crítico

de Rosário Fusco aprovaria, não pelo parentesco,

sim, por sentir-se em casa naquelas

páginas em que tudo vale a pena, menos

ressaca plena.

Melhor, só mais uma dose, ou seja, outro

livro e eu gostaria que fosse situado no

tempo das “casas de tolerância”, que começaram

ali pelo baixo centro (ou baixo ventre)

de uma Cataguases risonha e franca, no entorno

da Praça Doutor Lídio, vizinho do Rancho

Alegre e suas Mimosas Camélias. Adianto

que a dona da zona era Ernesta, quiçá a

mesma alcoviteira (dado histórico) de Dia do

Juízo, romance de Fusco. Dali, se mudaram

para a Ilha de Santa Helena, sob as ordens

de Zeli, discípula e ex-sócia da Ernesta. Depois,

outros endereços. Problema é que, envelhecido

em barris de carvalho, Tobias não

se dê conta, bem como seus contemporâneos,

estes em número cada vez menor, por

decorrência de prazo, no percurso-vida. Um

passado infelizmente pouco estudado.

Voltando ao livro de Tobias, em certos

momentos ele narra um mundo igualmente

em vias de extinção, longas caminhadas noturnas

sem o espectro da violência, hoje comum

a todas as cidades brasileiras, um tempo

de casas sem grades, pessoas conversando,

agora, falando sozinhas ao celular. Em

certas páginas, senti-me vendo Fernando da

Carcacena, Alvarenga, Bené sem-braço e outros

notívagos que se me escapam da memória.

Talvez por falta de sono, ficavam papeando

pelas ruas até altas horas. Pouco depois

ia o padeiro, de casa em casa, entregando o

pão. E um ou outro cachaceiro, claro e entre

eles poderia estar o incorrigível Tobias Mendes.

Tranquilo como a cidade ao redor.

* Antônio Jaime Soares

Nasceu em Cataguases MG, lá na Chave. Participou de um dos movimentos culturais

mais ativos dos anos 60 em Cataguases, o CAC. Depois de morar um

longo tempo no Rio de Janeiro, onde entre outras foi redator de publicidade.

Retornou a Cataguases direto para a Vila. Poeta e cronista publicou Pedra que

não quebra (2011)

56


Chicos

Marcos Vinícius Ferreira de Oliveira - As Mãos

Ásperas

* Alexandre Kovacs

Ao focar as narrativas de seus contos em

uma pequena cidade – Cataguases, no interior

de Minas Gerais – com personagens simples que

resistem à violência diária de uma vida sem perspectivas,

o autor nos ensina, assim como outros

exemplos na literatura que, quanto mais regional

e intimista o recorte, maior o caráter universal

da obra. O desafio é mostrar nesses protagonistas

de "mãos ásperas" os traços de uma humanidade

ainda possível, que não se deixa eliminar

apesar de tudo, seja pelo preconceito racial ou

pela exclusão social.

O escritor e crítico Ronaldo Cagiano resumiu

muito bem a força universal dos contos no

texto de apresentação do livro, pequenas jóias

sob a aspereza das vidas ordinárias: "[...] O que

temos aqui são protagonistas vivendo sua realidade

de limbo, de ruínas emocionais, enovelados

em camisas-de-força e conduzidos a becos-semsaídas.

Não há como escapar aos paradoxos nesse

tempo-lugar sem qualquer expectativa, metáfora

da própria condição individual. Ao comunicarem

embates e dilemas ancestrais, a universalidade

temática dessas histórias, com suas verdades,

tensões e apreensões, transforma-se tanto

em bússola quanto âncora para questionamentos

mais fundos acerca das injustiças e dos passivos

que enfrentamos."

É o caso do goleiro Capiva do primeiro

quadro, do Americano de Vista Alegre, "negro

retinto, esguio, bem feito do corpo" que aprendeu

desde cedo as mazelas da vida. Primeiro,

abandonado pelo pai por ocasião do seu nascimento

e, logo depois, morta a mãe que era uma

esponja para qualquer tipo de álcool "que compusesse

abstenção da razão ou das dores". Capiva

precisou superar muita coisa para encontrar o

lado certo da cerca que separa os mundos, "com

mãos imensas dando no fecho dos braços, que

perfazem longos, instrumentos guiados pelo

olhar esbugalhado, de muito concentrado e confiante

nas certezas sinuosas daquelas trajetórias,

das constantes, bolas em curvas ou em direção

certeira, carreadas, todas elas, pelos impulsos

dos efeitos, variados, pés em chuteiras nos domingos

à tarde."

Uma vez senhor dos seus domingos livres,

Capiva quis experimentar a cachaça do Monteiro,

a sinuca, a víspora a valer, dinheiro casado. E

ia se deixando ficar nesses aconchegos de um

lenga-lenga postergado, adiado para o vindouro,

quando ouviu do Melro, um especialista nos tratos

dos melindres, umas palavras dirigidas, no

específico, para ele: "As cercas separam mundos,

Capiva. É bom não esquecer o lado certo de

estar". Conhecia o Melro, tinha amizade, de re-

57


Chicos

Conhecia o Melro, tinha amizade, de recíproca

correspondência, que era quase um acontecimento,

pois "o Melro sabe selecionar bem os

seus". "Não era homem de abrir muito o leque

dos contatos". Não apreciava o convívio "da arraia"

dos frequentadores da mercearia do Monteiro.

Estava lá, todos os dias, mas não se misturava

em meio, nem com os pinguços, nem com

os peões do campo, nem com os desocupados

do Cambalacho, nem com os meeiros de roça de

milho. Também não apreciava tomar assento em

mesa "dos doutores da Companhia de Água e

Esgoto". Cultivava um exclusivo de estar sempre

sozinho, ainda que estivesse "no miolo das gentes

todas". - Trecho de "A História do Goleiro

Capiva" (p. 38).

Já em "Os Subterrâneos", o protagonista

vem "exilado" para Vista Alegre, distrito do município

de Cataguases, como diretor da Companhia

de Água e Esgoto para "manipular o material

indesejado das pessoas", nesta posição ele se

torna um observador ideal para, tomando uma

cerveja na mercearia do Monteiro, mostrar o

movimento dos trabalhadores do turno da noite

chegando até a Kombi que transporta a mão de

obra para alimentar a indústria têxtil local, assim

como as relações clandestinas que ocorrem na

cidade neste período. Logo o leitor percebe que

o narrador do conto é bem mais do que um mero

observador, ele já faz parte do inventário de

ruínas da cidade, enquanto aguarda a Kombi

contornar a praça.

Ainda que o álcool me fornecesse algum

impulso, minha mudança para Vista Alegre remexeu

minhas convicções. Em pouco tempo,

removi uma trava que não me permitia o sono

solto. Escavar entranhas, manipular o material

indesejado das pessoas, transformá-lo, tratar da

água que elas consomem para manterem-se vivas

fez-me imaginar poder definir a própria extensão

das minhas molduras. Que armadilhas

aguarda o homem que se enquadra nos limites

de uma vida ordinária? Que riscos apostam

aqueles, cujos espaços não comportam suas escuras

e estreitas lacunas? Há uma "alma" nesses

fotogramas? Ou emprestamos a nossa às suas

exigências de sentido? Insisto apenas em desejar

seguir pelo beco, um pouco trôpego, um pouco

descarnado das minhas máscaras, dessas que o

dia propõe em benefício próprio. E eu, que por

acaso me encontro nesta terra, disperso da vida

passada em outros lugares, como numa liturgia

profana, encaminhava meu desejo para um corpo.

No frio da noite, eu descobria, na inutilidade,

no tédio, as razões pelas quais não despimos

a alma de todas as ilusões. Porque elas, e só

elas, possuem, na sua insignificância, nos sentidos

que atribuímos ao ínfimo, o poder de nos

manterem vivos. - Trecho de "Os Subterrâneos"

(p. 72)

A cidade de Cataguases já foi cenário de

uma importante obra da literatura nacional,

Inferno Provisório, de Luiz Ruffato (ler resenha

no Mundo de K), uma responsabilidade ainda

maior para Marcos Vinícius que demonstra,

nesta antologia de contos, estilo próprio com

segurança e requinte narrativo, vale a pena conhecer

essas mãos ásperas.

58


Chicos

A cidade de Cataguases já foi cenário de

uma importante obra da literatura nacional,

Inferno Provisório, de Luiz Ruffato (ler resenha

no Mundo de K), uma responsabilidade ainda

maior para Marcos Vinícius que demonstra,

nesta antologia de contos, estilo próprio com

segurança e requinte narrativo, vale a pena conhecer

essas mãos ásperas.

Sobre o autor: Marcos Vinícius Ferreira de

Oliveira nasceu em Cataguases, em 1969. É professor

na Faculdade de Letras da Universidade

Federal de Juiz de Fora. Tem publicados os livros

Uma ou outra forma de tirania (contos) e E

se estivesse escuro? (novela), pela Editora 7 Letras,

e Tecido em ruínas – fabricação e corrosão

das Cataguases no Inferno Provisório de Luiz

Ruffato (ensaio), pela Editora Intermeios.

* Alexandre Kovacs

Alexandre Kovacs, um engenheiro que adora ler e acumular livros. Mantem

a página Mundo de K onde escreve sobre livros, literatura, música, arte e

cultura.

59


SUL

Chicos

*Emerson Teixeira Cardoso

Sul, de Guilhermino Cesar é um romance

que em cada detalhe reafirma a intenção do autor

de situar-se na tendência daquela literatura

professada, no conteúdo e na forma pelos escritores

da geração de trinta.

Na pequena comunidade de Morro Velho,

os trabalhadores de uma mina se expõem aos

mais variados riscos embalados por seus sonhos

modestos, ao mesmo tempo em que se submetem

ao império de um insensível capataz.

O sonho de Luciano é chegar a São Paulo,

onde, segundo um projeto pessoal iria fazer fortuna,

ou no mínimo, viver com mais conforto,

em vez de permanecer para sempre ali brocando

a pedra nos compartimentos perigosos da galeria,

respirando o ar empestado dos tubos de refrigeração.

Para aumentar sua agonia, convivia

ultimamente com a suspeita de que os patrões,

proprietários ingleses pretendiam substituir os

brocadores manuais por aparatos elétricos, opinião

compartilhada por Chico Perneta e negada

pela direção.

Nos diálogos que lembram o Machado de

Assis nos contos, impressão que se estende aos

romances, na concepção de alguns personagens.

Nas relações do cachorro Dragão com seu

novo dono nos remete ao Rubião com Quincas

Borba.

É evidente o destaque que passa a ter o

animal na história a partir do ponto em que se

dá a morte de Teodureto. Neste capítulo, o vigésimo

terceiro do livro, tal como o cachorro de

Rubião, o animal domina a cena, o que acontece

também ao longo dos últimos capítulos revelando

no seu aspecto decadente a própria decadência

da família de seu dono. Ou o que resta dela:

Dona Sinhá, a viúva e as duas filhas.

"...Os olhos do cão iam também perdendo

a cor, enquanto o pelo das patas ganhava um

aspecto terroso que era de desamparo e sujeira..."

E ainda como em Quincas Borba:

... Pela boca da viúva a revelação da intenção

do marido de resguardar o futuro do animal:

"... Se eu estourar de uma hora para outra

mande o Dragão para o Luciano.'"

Há outra ideia, ainda implícita no romance

que nos lembra a personagem de Prudêncio, o

negro alforriado de "Memórias póstumas de

Brás Cubas: Renzo, ascendendo ao posto de

60


Chicos

capataz passa de oprimido a opressor, desmerecendo

no final a confiança dos colegas trabalhadores

aos quais passa a maltratar exigindo deles

dolorosos sacrifícios no trabalho da mina. Para

experimentá-lo, a certa altura dos acontecimentos

Luciano lhe diz:

"...Capitão Renzo, estão dizendo que não

é possível, a veia está dura de roer. É uma parada

difícil. E ele: Não quero prosa, eh! Anda a

pegar nos ferros”

E a conclusão do narrador:

"Era agora igual aos outros."

Em outro momento o diálogo de Luciano

com Beatriz na casa do capitão Renzo nos lembra,

ligeiramente o conto, "Missa do galo."

...."Na parede, o retrato do Duce recortado

de uma revista, abaixo, um retrato de família,

ainda na Itália, no qual Beatriz aparecia com um

ramalhete de rosas na mão, pernas cruzadas. Os

– ­Quem é essa, Perguntou Luciano.

– Adivinha?

– Parece com sua irmã mais velha.

– Sou eu mesma, tiramos o retrato em Nápoles

antes do vapor sair para o Brasil. Não me

lembro de nada.”

Guilhermino Cesar escreveu este romance

aos 29 anos de idade, ocasião em que já merecerá

de Mário de Andrade, conforme nos informa

Maria do Carmo Campos nesta segunda edição

do livro de 2009 a seguinte observação:

" Já registra o bom hábito de interpretação

lírica das coisas."

Importante: O tema do romance já havia

sido explorado pelo autor dez anos antes no poema

"Campeiro de Minas Gerais". Um dos quinze

que escreveu para a sua metade do "Meia

Pataca" livro que publicou em parceria com

Francisco I. Peixoto.

cabelos fazendo tranças.

* Emerson Teixeira Cardoso

Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles (2001) poesia, coautor de A casa

da Rua Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O retorno do nativo de Thomas

Herdy. Sempre ativo em publicações literárias. Iniciou-se em Estilete (1967),

mimeografado, editor/fundador do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul

(1997).

61


Sobre “Todos os desertos: e depois?”

Chicos

* W. J. Solha

O romance “Todos os desertos: e depois?”

(Ed. Patuá, 2018), que o autor, Ronaldo

Cagiano, classificou de livro de contos.

Acabo de sentir, lendo esse volume, o

mesmo de 2007 quando li o “ABC de Ariano

Suassuna”: estar ante um romance, no caso passado

o de Bráulio Tavares, que ali colocara lances

da vida do autor do “Autor da Compadecida”

e de “A pedra do reino” em ordem alfabética,

tal qual “O Dicionário Cazar”, romance do

sérvio Milorad Pavić, de 84, permitindo-nos um

retrato ... cubista, por sua fragmentação temporal,

espacial e temática, do biografado.

Sem essa transição local, talvez eu jamais

percebesse isso em “Todos os desertos: e depois?”,

em que Cagiano – mineiro radicado em

Lisboa – nos põe ante um vasto retrato do Brasil

atual, através de 180 páginas de ... casos correlatos,

extremamente densos.

Tema geral?

“A vida é uma forma de estupidez” – diz a

epígrafe , citação de Fernando Cesário em

“Alma de violino”, apresentada no “capítulo”

Via-crúcis”.

Tudo começa com “Invasora” - narrativa

centrada numa barata. Por isso lá está, na página

10: “Ai, Kafka, ai Clarice”, lamento que vai ressoar

no “capítulo” Espectro dissonante, página

68: “Vejo-me diante da vida como aquela mosca

que acabei de entregar a uma morte tórrida num

aparelho de emboscada que não conhece metafísica

nem chocolates, nem distúrbios pessoais.

Kafka ou Clarice ririam de mim”.

E ... na página 91, em “Homem invisível:

cidade proibida”:

- Sísifo se repetindo. O fígado comido pelo

abutre renovando a sua dura e prometeica lida.

A permanente contingência de labirinto e fossa.

Condenação kafkiana em tribunal interior.

Coisas da literatura: Proust cria todo o universo

de memória do “Em Busca do Tempo Perdido”

a partir do momento em que se lembra de

ter comido um bolinho chamado Madeleine,

quando menino. Lispector faz G.H. viver algo

semelhante ao esmagar e comer uma barata.

Estabelecida a “suspensão de incredulidade”

– “suspension of disbelief” -, Cagiano cria

um segundo “capítulo”, esse especialmente realista,

em que um burocrata de Brasília não comparece

ao trabalho na segunda, o chefe lhe corta

o ponto, ele não aparece na terça, novo corte, na

quarta descobrem que o cara – ninguém menos

62


Chicos

do que o escritor Samuel Rawet (Klimontow,

Polônia, 1929 - Brasília. Distrito Federal, 1984)

fora encontrado “em estado de putrefação” na

casa em que vivia sozinho.

Ronaldo Cagiano Barbosa, advogado, escritor,

ensaísta e crítico, viveu em Brasília de

1979 até 2007, e em São Paulo de 2007 a 2017.

Trabalhou na Caixa Econômica Federal de 1982

a 2016.

“Viveu em Brasília de 1979 até 2007”.

1979, anoto.

É de Drummond Amorim – mineiro como

Cagiano – a epígrafe do terceiro “capítulo”, No

Banco:

- O diabo é que não topo banco. O tipo de

coisa chata é a gente ficar ali se transformando

em dinheiro sem gostar.

Começa-se a sentir que o lance kafkiano

da barata tem a ver. E se repete em “Paralelo

16: miragens”, página 95:

“O dia todo suportando a mesmice funcional”

(...) “Vinte anos lá dentro, uma geração

perdida, sonhos abandonados em nome de uma

patética estabilidade funcional e chegar em casa

é a mesma coisa, mulher, filhos, o cunhado desempregado

vivendo às nossas custas com sua

mulher grávida, ciumenta, medíocre e alienada”.

Página 25:

“Aquário sem água. Bolha sem ar.”

Na mesma época, 77, Buñuel lançou “Esse

Obscuro Objeto de Desejo”, em que Carole Bouquet

– que faz o papel de Conchita – sai para a

rua e algo estranho acontece: só depois percebemos

que, com a mesma roupa e penteado, a

atriz que comparece à calçada, no mesmo papel,

é Angela Molina.

O burocrata baratinado, de repente, “No

último Natal do milênio”, é a prostituta Madalena

Pécora. No primeiro capítulo, o padre está de

olho na barata. Aqui é a moça que decide deixar

“o pecado” e vai à Missa do Galo.

- buscava, sedenta, a transformação. “Deus

está no meio de nós”, disse, reverente, o pregador.

Ela sabia que sim. O novo milênio chegaria

em sete dias, novo como a criatura em que se

transformaria.

“Em que se transformaria”. Metamorfose.

Em “Isularidade”, página 61, a Madalena

arrependida tem um eco que abala o narrador:

- Eu não queria conversar com ninguém.

Desde a manhã, quando a cena da copeira pulando

do vigésimo oitavo andar das torres gêmeas

do edifício do Congresso inquinou o meu

dia com sua carga de espanto e horror, eu não

conseguia ver nem ouvir ninguém.

Em “homem invisível, cidade proibida”,

pág. 92 e 93, conta:

- Estava farto do homem politicamente correto

encubado em si. “Esses anos todos”, teria

pensado e não coube em si de tanta insatisfação

acordar ( tardio?). (...) Então ouvi o grito surdo

de um estopim metálico. (... ) Durante vários dias

vasculhei os jornais e nada encontrei.

Brasília: ”Cidade em que é preciso ter cabeça,

tronco e rodas”.

63


Chicos

Em “Via-crúcis”, a suicida do Congresso é

novamente vista na Raimunda, ”empregada terceirizada,

servindo o café, renovando a água em

gestos que se repetiam o dia inteiro, pilotando

aquela carrinhola barulhando pelos

corredores, cheia de pires, de xícaras,

de colherezinhas, de copos se atritando

uns nos outros, (...) a sensação de

que tudo é escuro, que Jesus passou

pelo Calvário e cada um peleja como

pode em sua hemorroidária lida quotidiana.”

A barata, Samuel Rawet, a suicida,

vê-se – em “Litania do cão”, página

111 – ser o vira-lata estraçalhado à

beira-linha, “uma carne esmiuçada ( que ninguém

olhava ) sobre os dormentes, manchados

com o sangue que se confundia com os resquícios

de óleo impregnados no caminho de pedras

que cobria o leito ferroviário.”

Em “Constantinopla”, página 120, a cidade

do interior - Santa Rita, “repetitiva e enfadonha”

– toma o lugar de Brasília, pois Todos os dezertos

– como insinua o título livro, remetendo ao

“Sou um rebanho unitário povoado de animais

estranhos” e, em “Roda viva”, pág. 137:

“numa caverna de muitos labirintos eu perdido

sem o fio de Ariadne. (...) Ao invés de um homem

são vários homens expatriados

dentro de mim".

Na raiz de toda essa angústia, “Entre

dois séculos: ruínas” conta, na página

162, o resultado de duas décadas de ditadura

e do que houve depois, no plano

internacional.

- "O que há, hoje, senão passividade,

alienação, certo conformismo, as pessoas

estão aí como rebanhos, tudo parece

difuso, patético. (...) Mais tarde Gorbachev

tiraria o tapete e daria a primeira marretada

no muro de Berlim, antes da pá de cal definitiva

sobre o socialismo e depois o que sobraria senão

os melancólicos souvenires do velho regime,

lembranças patéticas de um mundo que ruiu e

que está levando de roldão os nossos sonhos."

Bom. Isso não é só literatura. Cagiano se

exilou em Lisboa há já alguns anos, ao não suportar

os rumos do Brasil.

Cortázar de “Todos os fogos o fogo” – é O DE-

SERTO. O narrador diz, na página 123:

* W. J. Solha

Waldemar José Solha, nascido em Sorocaba e radicado em João Pessoa, é premiado

escritor, crítico, ensaísta, pintor, ator e autor teatral, publicou, dentre

outros, Relato de Prócula, História Universal da Angústia, Deus e outros 40

problemas e Trigal com corvos.

64


Chicos

Mudança digital

*Hugo Pontes

Saídos da prática em que a datilografia era

o mais ágil dos mecanismos para escrever um

bilhete, conto, crônica ou romance, chegamos a

Era Digital.

O computador chegou para mudar o mundo

e com ele todo o sistema de informação e

comunicação.

Voltamos ao início dos anos de 1990

quando iniciamos a fase de comunicação on line

enviando as nossas primeiras mensagens via e-

mail. Dividíamos o mesmo espaço com milhares

de usuários e um e-mail levava horas para chegar

e ser respondido.

Hoje ainda dividimos espaço, mas a lentidão

está a nossa frente e, tendo um pouco de

paciência, fazemos o dowload ou o upload. Enviamos

e recebemos – sem dificuldades - mensagens,

textos, livros e imagens.

Mas a verdadeira transformação digital

passou a acontecer à sombra de um inimigo poderoso:

a Covid-19 que nos trouxe o grande

acontecimento do século XXI que é a pandemia.

Trouxe-nos pânico e não sem razão, pois atinge

não uma comunidade, um povo ou um país, mas

toda a população da Terra.

Se usávamos o sistema digital para o trabalho,

para a recreação e para as relações pessoas,

isso tudo mudou e chegamos a um momento em

que a relação social é essencialmente virtual.

Fazemos encontros, reuniões, palestras,

seminários e aulas on line. Nossas festas comemorativas

como batizado, casamento, aniversário,

obrigatoriamente, são on line. Até aulas de

violão.

Por outro lado, as nossas relações com

nossos médicos – nas suas diversas especialidades

– tornaram-se remotas.

- Doutor, estou com uma dor aqui do lado

e não sei o que pode ser. O senhor tem alguma

ideia do que seja?

O médico, por sua vez, que tem a ficha do

paciente, recomenda ou um exame, ou a troca

do remédio. Isso até que a Covid-19 vá embora.

Embora isso seja imprevisível.

Mas, voltado às atividades on line, podemos

dizer que as nossas relações futuras não serão

as mesmas. Seremos mais ágeis e mais lógicos

no trato seja com as nossas relações pessoais

ou públicas. Ganharão com isso os nossos filhos

e netos.

A burocracia da máquina pública seja no

setor executivo, legislativo e judiciário ganhará

mais agilidade. E isso tudo não por vontade ou

decisão pessoal, mas por episódios como os que

estamos enfrentando, que nos levarão à uma

mudança de nossas vidadas exigindo de todos

agilidade nos movimentos e menos preconceito

em relação ao conjunto dos afazeres da sociedade.

* Hugo Pontes

Nasceu em Três Corações MG e mora em Poços de Caldas (MG). Poeta e professor, fundou o Grupo

VIX de poesia de vanguarda junto com Márcio Almeida, Márcio Vicente Silveira Santos e Waldemar

de Oliveira. Fez parte do movimento de Poema/ Processo com o grupo de poetas de Cataguases.

Sua produção está ligada à poesia, ao poema visual, à arte postal e arte-xerox. Nos anos

1990, participa de exposições no Canadá, Hungria, Rússia e Austrália com a temática do poema

visual. Desde 1996, mantém o site Poema Visual, que divulga poemas visuais e arte postal.

65


Chicos

Tudo muda, nada muda na cabeça e no coração

*Ronaldo Werneck

Em homenagem ao poeta norte-americano

Lawrence Ferlingetti, morto em fevereiro, aos

101 anos, reproduzo crônica de 2006, escrita em

Roma.

Ronaldo Werneck

Não, não é bala não. Nem perdida, nem

bem/mal endereçada. É apenas o poeta-beat Ferlinghetti

e seus parques de diversão, A Coney

Island of the Mind (City Lights, EUA, 1958) e A

Far Rockaway of the Heart (City Lights, EUA,

1997). Ainda em Roma, e na livraria Bibli/

Trastevere, agora viajamos (literalmente) com

Un luna park del cuore (Mondadori, 2000), a

versão bilíngue, inglês/italiano, do “parque do

coração” desse surpreendente Ferlinghetti, que

chega velhonovíssimo aos oitenta e oito anos.

Lawrence é de 1919 (Yonkers, Estado de Nova

York), filho de uma francesa, Clemence Albertine

Mendes-Monsanto – e veio ao mundo pouco

depois da morte de seu pai, o italiano e anarquista

Carlo Ferlinghetti.

Com menos de dois meses, o menino é

levado para a França, onde mora com um tia até

os seis anos. De volta aos EUA, estuda na University

of North Carolina, em Chapel Hill, e serve

na marinha norte-americana durante a Segunda

Guerra (“mas já era pacifista, a ponto de não

disparar um tiro”). O poeta termina seu mestrado

pela Columbia University, em 1947. Completado

em 1950, o doutorado é feito na Université

de Paris (Sorbonne). De 1951 a 1953, quando se

fixa em San Francisco, Ferlinghetti passa a pintar

e torna-se crítico de arte. Em 1953, abre com

Peter D. Martin a Livraria City Lights, que em

1955 passa também a publicar livros, com o nome

de City Lights Books. Durante mais de meio

século a City Lights serve como ponto de encontro

de intelectuais, escritores e artistas.

Ferlinghetti com Ginsberg, de quem editou o famoso Uivo.

66


Chicos

A Editora começa com a publicação de

uma série de poetas sob o formato de livros de

bolso, com a qual Ferlinghetti criaria um fermento

de dissidência de nível internacional. Em

1957, o lançamento de Howl, do poeta Allen

Gisberg, causa um quiproquó dos diabos. Apreendido

sob acusação de obra obscena, o livro

acaba liberado e vende num só uivo 360 mil

exemplares, além de atrair a atenção para San

Francisco e para a explosão do movimento dos

escritores da geração beat. O chileno Neruda, o

russo Levtuchenko, o italiano Pasolini, o inglês

Malcolm Lowry: são muitos e célebres os poetas

editados pela City Lights.

Em 1984, a editora publica também os poemas

do próprio Ferlinghetti, reunidos em A Coney

Island of the Mind, carro-chefe da City

Lights e até hoje o livro de poemas mais popular

na América, editado em nove línguas, com mais

de dois milhões de exemplares vendidos. Há um

tradução brasileira de ótima fatura, feita por

Eduardo Bueno e pelo poeta Leonardo Froés,

Um Parque de Diversões na Cabeça (L&PM,

1984). A Far Rockaway of the Heart, de 1997, é

seu mais recente livro de poemas, este que tenho

agora em minhas mãos na versão italiana,

Un luna park del cuore (Mondadori, 2000). Só

para nos situarmos: Coney Island é um parque

de diversões na cercanias de Nova York. Far

Rockaway, no Estado de Nova York, é uma localidade

onde existe um também famoso parque

de diversões.

Em 1980, o hoje historiador brasileiro Eduardo

Bueno esteve com o poeta em San Francisco:

“De jeans, camisa de flanela xadrez de lenhador

canadense, botas rústicas, ali estava ele,

Ferlinghetti – sorridente ao lado de três garotas

lindas, olhar safado beatífico, rosto queimado

pelo sol, barba grisalha. Sabedoria e vigor aos

60 anos. Apesar da origem italiana, mais parecia

um irlandês ativo e empreendedor – daqueles

que bebe uísque no gargalo e aparece trabalhando

na construção das estradas de ferro em filmes

classe B sobre o Oeste selvagem”. Mas, na

verdade, não era bem assim: estava ali também,

à frente de Bueno, um poeta de extração super

sofisticada, na linhagem de Appolinaire, ee.

cummings, Ezra Pound, T.S. Eliot e William Carlos

Williams.

Ferlinghetti tem o poder de transformar em

poesia os objetos mais banais, as coisas corriqueiras

do cotidiano. São poemas coloquiais, os

seus, carregados por profundo poder de empatia

e comunicação. Poesia altamente cantábile – e

não é à toa que o octagenário poeta circula ainda

hoje pelo mundo lendo seus poemas para um

público cada vez mais numeroso. “O bardo da

geração beat, o cronista mais extremo e corrosivo

de nossos tempos, o sarcástico ´cabaretista

trágico´, diz o texto da contracapa desta edição

italiana. Que complementa: “Se A Coney Island

of the Mind contribuiu em 1958 para abrir os

olhos de toda uma geração e para construir uma

aura política, A Far Rockaway of the Heart surge

como um vibrante e novo apelo ético à tomada

de consciência da geração que transita passivamente

pelo novo século”.

67


Chicos

mescladas ao grito das prostitutas

na velha Mannahatta (*)

ou na Paris de Beaudelaire

chamados de pássaros ecoam

nas ruelas da história

renomeados

E agora são os Novecentos

e a Bolsa quebrou de novo

E meu pai vagabundeia aqui perto com toda a sua

coragem

Não têm títulos os poemas de A Far

Rockaway of the Heart, apenas numerados em

sequência. Não querendo absolutamente concorrer

com meu poetamigo e excelente tradutor Leornardo

Fróes, passo às pressas para a língua

pátria um exemplo da poética de fina estampa

de Lawrence Ferlinghetti, exatamente o primeiro

poema do livro:

Tudo muda e nada muda

Séculos findam

e tudo continua

Como nuvens estáticas a meio-voo

como se nada findasse

Como dirigíveis presos contra o vento

E a urbana febre das feras do cotidiano

ainda domina as ruas

os olhos na calçada

uma única lira italiana

e um penny com a figura da cabeça

de um indiano

no bolso

Traficantes de bebidas e carros fúnebres passam

em câmera lenta

Enquanto ternos novos correm para o trabalho

em arranha-céus

que oscilam.

(*) Mannahatta: antigo nome dado pelos índios americanos

ao lugar onde hoje se encontra Nova York.

Mas ouço cantarem

ainda agora as vozes dos poetas

* Ronaldo Werneck

Nasceu em Cataguases MG. Poeta e jornalista, colaborou em vários jornais e

revistas cariocas. Publicou entre outros os livros: Poesia - Selva Selvaggia (1976),

Pomba Poema (1977), Minas em mim e o mar este trem azul (1999) Minerar o

Branco (2008), Cataminas Pomba e outros Rios (2012) e O Mar de Outrora e

Poemas de Agora (2014). Prosa - Há Controvérsias 2 (2011), Rosário Fusco por

Ronaldo Werneck/ Sob o signo do imprevisto (2017) e o ensaio biográfico

“Kiryrí Rendáua Toribóca Opé” Humberto Mauro Revisto por Ronaldo Werneck

68


Chicos

Lendo os Clássicos

*Luiz Ruffato

Tom Jones (1749)

Este é o que podemos chamar de romancepadrão,

no sentido mais literal do termo. A ascensão

econômica e política da burguesia trouxe a

necessidade de criar uma variante estética para

representar a classe social emergente. E o esforço

de criar um novo gênero narrativo - o único, aliás,

surgido desde a Antiguidade - levou à invenção do

romance, que é uma espécie de coroamento literário

do capitalismo. Porque, assim como o capitalismo,

o romance tem uma capacidade inacreditável

de se transformar, incorporando as próprias falhas

e fortalecendo-se a partir de suas contradições.

Assim, no começo, todo romance é biográfico, ou

seja, tem como objetivo contar a vida do protagonista

do nascimento à morte, ou, do nascimento

ao fim da juventude (os chamados "romances de

formação"). Trata-se, portanto, da tentativa de

conquistar uma identidade singular, uma subjetividade,

algo totalmente ausente até então. As pessoas

não possuíam uma individualidade - nem mesmo

os aristocratas, que respondiam por um título

genérico -, algo que o capitalismo inaugura. Tanto

é que o título dos primeiros romances é uma demonstração

de distinção: traz estampado o nome e

o sobrenome do herói. No caso deste romance

específico, o Autor faz uma coisa extraordinária:

ao mesmo tempo em que conta a história de Tom

Jones, ele faz a teorização do gênero romance.

Dividido em dezoito livros, todos os primeiros capítulos

de cada um desses livros é uma exposição,

clara e muito bem fundamentada, desse gênero até

então desconhecido - o Autor o justifica, preparando

o leitor para as páginas que virão em seguida,

numa simbiose perfeita*. A história de Tom Jones

tem todos os componentes da narrativa romântica:

impedimentos, sofrimentos, enganos, acasos, descobertas,

heroísmos de uns, canalhices de outros,

para tudo terminar com um final feliz, em que os

que penaram são recompensados e os que se portaram

mal são punidos. Mas não pense que isso é

fortuito: há uma arquitetura bem urdida e principalmente

há um narrador que é, ao mesmo tempo,

irônico, sarcástico e benevolente... O que faz com

que acompanhemos a história que está sendo

contada como, acredito, uma telenovela contemporânea

(diga-se de passagem que as telenovelas e

mesmo as séries televisivas são filhas diletas do

folhetim romântico e praticamente nada acrescentaram

à fórmula vitoriosa há mais de dois séculos).

Tom Jones aparece na cama do nobre sr. Alworthy,

que encantado com o bebê, resolve criá-lo

como uma espécie de filho bastardo. Tempos depois,

a irmã do Sr. Alworthy casa-se, tem um filho,

Sr. Blifil, mas morre em seguida. Tom Jones e

o jovem Sr. Blifil vão crescer juntos, tendo acesso

à mesma educação e à mesma vida ociosa proporcionada

pelo dinheiro da aristocracia. Só que,

69


Chicos

enquanto Jones cresce alimentando princípios de

honra e honestidade, Blifil pouco a pouco vai se

mostrando mesquinho, hipócrita e interesseiro.

Esses sentimentos, em ambos, só tendem a tornálos

inimigos e, após a descoberta da paixão correspondida

de Jones por Sofia Western, filha do rico

vizinho do Sr. Alworthy, união impossível, devido

à diferença de classe, a situação se torna insustentável

e Jones é expulso da propriedade pelo pai.

Jones então passa a vagar pelas estradas da Inglaterra,

procurando esquecer de Sofia, enquanto,

sem saber, Sofia, prometida a Blifil, foge de casa

para Londres. Depois de muitas peripécias, que,

aliás, sugerem até mesmo a possibilidade de um

incesto de Jones - depois, claro, devidamente esclarecido

e negado -, tudo se conforma. Jones,

injustamente acusado de um assassinato, induzido

por Blifil, é absolvido; revela-se que ele é filho da

irmã de Alworthy, e portanto tem sangue nobre,

herdeiro de uma grande riqueza, podendo casar

com Sofia, para felicidade de seu pai, Sr. Western;

e Blifil é afastado do convívio, vivendo de uma

mesada do Sr. Alworthy, complementada pelo

bom coração de Jones. É interessante observar

que, embora herói da história, e investido de bons

sentimentos, Jones não é um sujeito perfeito, principalmente

no que diz respeito à moral, já que, em

vários momentos, mostra-se infiel à sua paixão por

Sofia. Outro ponto importante a destacar é que, ao

fim e ao cabo, o romance é um libelo feminista,

pois defende com veemência a liberdade de escolha

da mulher, não só em relação ao casamento,

como também ao modo de vida, conforme se lê

aqui: "O matrimônio proporciona uma oportunidade

igual para satisfazer assim o ódio como o amor;

teoria que é, provavelmente, assaz corroborada

pela experiência. Para falar a verdade, a julgarmos

pelo procedimento das pessoas casadas, propendemos

a concluir que quase todos buscam somente a

satisfação da primeira paixao, ao juntarem o que

têm, exceto os corações" (p. 529-530). E também:

"(...) forçar uma mulher a um casamento

contrário à sua anuência ou à sua aprovação é um

ato tão injusto e opressivo que eu quisera que o

proibissem as leis do nosso país (...)" (p. 549).

Tom Jones (1749)

Henry Fielding (1707-1754) - INGLATERRA

Tradução: Octávio Mendes Cajado

São Paulo: Abril, 1971, 614 páginas

Avaliação: Muito bom

Entre aspas:

* "(...) a calúnia é uma arma ainda mais cruel que a espada, de vez que os ferimentos que produz são sempre

incuráveis" (pág. 340)

* O Autor tem plena consciência de que está de certa forma inaugurando uma nova forma de narrativa:

"Julgo, da mesma forma, que algum historiador futuro (se alguém me fizer a honra de imitar o meu estilo)

(...) haverá de louvar-me a memória, por haver estabelecido, pela primeira vez, estes vários capítulos iniciais: a

maioria dos quais, a feição dos prólogos modernos, pode prefaciar, com a mesma propriedade, qualquer outro

livro desta história, ou, na verdade, qualquer outra história" (p. 513).

* Luiz Ruffato

Nasceu em Cataguases MG, reside em São Paulo SP.

70

Entre tantas obras de sua autoria

destacam-se: Eles eram muitos cavalos, de 2001, ganhou o Troféu

APCA oferecido pela Associação Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio Machado de

Assis da Fundação Biblioteca Nacional. Esse livro o tornou um escritor reconhecido no

país. Em 2011 concluiu o projeto Inferno Provisório, com a publicação do romance

Domingos Sem Deus, iniciado com Mamma, son tanto Felice em 2005, composto

por cinco livros sobre o operariado brasileiro.


Chicos

A Literatura Portuguesa que Portugal Ignora

*Graça Capinha

numa primeira abordagem, a sua reacção ao

meu trabalho e à divulgação desta escrita não

foram das melhores.

Curiosamente, o ano de 2021 trouxe-nos,

logo no seu início, duas publicações de poesia

escrita por imigrantes em Portugal: Volta Pra

Tua Terra. Uma Antologia Antiracista/

Antifascista de Poetas Estrangeiros em Portugal

(organizada por Manuella Bezerra de Melo e

Wladimir Vaz para a Editora Urutau, que se desdobra

por Portugal, Galiza e Brasil) e Antologia

Poética da Imigração Lusófona (organizada por

Lucas Augusto Silva para a Kotter editorial de

Curitiba, no Brasil).

Digo curiosamente, porque não tem sido

comum encontrar espaços de escuta para estas

vozes, muito menos no campo literário português.

E se, em vez de imigração, se tratasse de

emigração, seria igualmente verdade. Quando,

em 1993, publiquei um artigo sobre poetas da

emigração portuguesa nos estados de Rhode Island

e Massachussetts, nos EUA, artigo resultante

de um projecto de investigação de cerca de 4

anos, não só a comunidade académica portuguesa

desconhecia este tipo de poesia (tal como eu,

de resto, não fora a indicação de Onésimo Teotónio

de Almeida a abrir-me os olhos), como,

Estudava-se já por cá a poesia de índole

multicultural e multiétnica dos EUA (destacando

-se o trabalho pioneiro da professora da Universidade

de Coimbra Maria Isabel Caldeira), mas

parecia estranho e até fútil, para uma certa intelligentsia

literária, que se estudassem textos da

mesma natureza escritos por autores e autoras

portuguesas. Chamar-lhes “poetas”, então, era

quase um sacrilégio! Não esmoreci e continuei

na senda dessa investigação, desta feita, no Brasil

— e financiada pela Fundação para a Ciência

e Tecnologia, o que, desde logo, a tornou, pelo

menos a alguns olhos, mais respeitavelmente

científica.

A verdade é que, felizmente, passados uns

anos, muitos outros investigadores e investigadoras

se vieram a interessar pelo assunto, cientes,

tal como eu, de que os critérios de análise

literária têm de se adequar aos contextos e de

que as variáveis em observação nos revelam dimensões

múltiplas e diversas do texto literário.

No que respeita à escrita da e/imigração,

por exemplo, variáveis como os processos de

subalternização, da classe e da identidade, irão

de imediato chamar a nossa atenção, mas também

os aspectos traumáticos decorrentes do processo

de deslocação, de si e da linguagem; e talvez

menos, os processos relacionados com o estar

mais dentro ou mais fora da grande tradição

ou do experimentalismo vanguardístico com que

abordamos poetas da cultura dominante ou, como

lhe chama o poeta e teórico Charles Berns-

71


Chicos

tein, da “cultura oficial”.

O que sempre me interessou foi escutar as

vozes que estão, quase sempre, silenciadas, porque

estas vozes estão entre nós, fazem parte da

urdidura da língua e da cultura de Portugal — e

esquecemo-nos demasiadas vezes dessa participação

e desse contributo para aquilo a que chamamos

“a realidade portuguesa”.

Contudo, apesar de tantos estudos já existentes,

ficam algumas perguntas: fora das suas

comunidades ou fora do grupo de investigadores

e investigadoras que sobre eles se debruçam,

alguém conhece o nome de algum ou alguma

destes poetas emigrantes portugueses? Alguém

ouviu falar destes nomes nas escolas? Ou nos

meios de comunicação social? Ou nos representantes

do Ministério da Cultura? Ou nos prémios

literários?

Do outro lado, a situação não se altera.

Lembro-me de um dos meus entrevistados no

Brasil, que me dizia: “Quando pedimos apoio

para a cultura portuguesa aqui, mandam-nos uns

artistas ou escritores lá de Lisboa. Mas, sabe,

somos nós, aqui, que fazemos a cultura portuguesa:

com a escrita, com o teatro, com o folclore,

com o fado, com as nossas tradições!” Talvez

fosse tempo de começarmos a escutar estas vozes...

Quanto aos imigrantes em Portugal, a que

estas antologias procuram dar voz, vejamos apenas

dois curtos excertos para nos darmos conta

do que o processo de desterritorialização acarreta:

HOMEM DE CÔR

Sou balanta, sou kimbundo

Sou badio, marronga ou angular

Continental ou insular

Há quem me chame homem de côr

Tenho nome e apelido

Sou do norte, sou do sul

E como tu, gerado no centro

Bendito esse teu ventre Mamãe

Sou exótico p’ra a folia

Sou selvagem quando incomodo

Sou dos teus quando convém

Sou o tal homem de côr

Dizem que sou do terceiro mundo

E, segundo bocas infames

Neste universo sem primeiro

Nem civilizado sou

Sou maconde, sou forro

Sampadjudo, mandjáku, kinkôngo

Operário e intelecto

Mas só me chamam homem de côr

Costa Neto

Sou de lá já sou de cá

Vou, não sei p’ra onde

Com o vento que já sopra

Ora p’ra lá, ora p’ra cá

Sou filho disto

Sou filho daquilo…

Sou filho do vento

Sou filho deste mundo.

Natural de Moçambique. Residente em Portugal

(in Volta Pra Tua Terra)

Esse estar entre cá e lá e os mecanismos de

desidentificação, aqui claramente permeados por

uma linguagem racista, são ironicamente apropriados

pelo poeta que, em vez de se deixar menorizar

e/ou invisibilizar, os utiliza como celebração

da sua multiplicidade num não-lugar, que é

72


Chicos

todo o lugar, o mundo.

O mesmo tipo de vivência deste poeta moçambicano,

Costa Neto, aproxima-se daquela

que encontramos no poema “Estrangeiro”, de

um poeta brasileiro também a viver em Portugal,

isolado na sua “selva digital”:

Não tem lugar

o homem de corpo e alma

nessa inexpugnável

selva digital

Cada ser deixou de ter

coração e linguagem

Woutar Naert, Unsplash

Entro no supermercado e ouço as empregadas

brasileiras, mas também o inglês e o holandês

dos novos hippies que, após conhecerem

a zona através do Festival Boom, compraram

terras e vieram morar para algumas das aldeias

já quase desertas; ou ainda o ucraniano ou o

moldavo dos que vieram antes, para trabalhar na

campina ou na construção civil.

e perdeu-se nessa

imensa teia

devorado pela escuridão do não-ser.

Insular geografia,

Fábrica de tantos exílios.

Tim Mossholder, Unsplash

Passo pelo café mais popular e ouço flamenco,

música de eleição da família Romani que

agora é dona do lugar.

Ronaldo Cagiano

Natural do Brasil. Residente em Portugal

(in Antologia Poética da Imigração Lusófona)

De vez em quando vou à Beira Baixa e,

ultimamente, encanto-me a ver a transformação

das ruas. Pelo meio dos poucos idosos e idosas

que ainda por lá sobrevivem, vejo passar de vez

em quando famílias Sikh, eles de turbante amarelo

majestoso, elas de saris lindíssimos e brincos

no nariz, as crianças à frente, os rapazes

com o cabelo apanhado ao alto, amarrado numa

pequena bola branca — e a falar português entre

si.

Kazuo Ota, Unsplash

No pátio da escola, vejo os filhos dos bolseiros

e bolseiras S. Tomenses, que vieram para

estudar no Instituto Politécnico e que acabaram

por criar a sua família na vila raiana.

73


Chicos

Wayne Lee-Sing, Unsplash

E, se precisar de alguma bugiganga prática,

vou a uma das duas lojas chinesas, onde as

crianças só andam por ali até chegar à idade escolar,

altura em que são enviadas para os avós,

na China.

Transportando este pequeno exemplo para

o todo de Portugal, as perguntas voltam: que

sabemos nós da vida e da cultura destas pessoas

que vivem entre nós? Como estão elas representadas

na cultura portuguesa? As suas diferentes

culturas portuguesas também são ensinadas nas

escolas? Qual a sua presença nos meios de comunicação

social?

Na música, parece que estamos, finalmente,

a dar os primeiros passos, com várias vozes

africanas a tornarem-se audíveis e a falarem da

sua realidade, que é também a portuguesa.

Yu Kato, Unsplash

Sinto uma enorme alegria por ver toda esta

diversidade étnica, linguística e cultural dentro

da minha terra, agora tão cosmopolita. Mas percebo

tratar-se de uma ilusão, pois me dou conta

de que, apesar da dimensão exígua do espaço,

as culturas destas pessoas não têm voz, nem estas

pessoas interagem entre si e, pior, nada é

feito por quem de direito — o poder local, a escola

ou a própria igreja — para alterar esta situação.

As consequências serão fatais, porque, não

havendo qualquer dinâmica social, não havendo

qualquer possibilidade de encontro e de enriquecimento

com a cultura do outro, não há vida —

e a terra acabará por definhar definitivamente.

media.rtp.pt

Mas, com essa excepção, talvez pouco

mais pudéssemos acrescentar acerca do panorama

inter-e multicultural português. O que me faz

sempre querer “transmutar” o título de uma obra

de 1976, já clássica na Inglaterra, The Arts Britain

Ignores, de Naseem Khan: As Artes Portuguesas

que Portugal Ignora.

É por isso que considero tão vital para a

sobrevivência e para o enriquecimento da cultura

portuguesa que antologias como as que comecei

por referir sejam publicadas em Portugal. É tempo

de escutarmos estas vozes portuguesas, que

não serão apenas portuguesas e que, por isso

mesmo, tanto enriquecerão a cultura do nosso

país.

* Graça Capinha

Graça Capinha é Professora Auxiliar do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas

(DLLC), Secção de Anglo-Americanos, na Faculdade de Letras da Universidade de

Coimbra (FLUC), e Investigadora do Centro de Estudos Sociais-Laboratório Associado

(CES). É doutorada em Literatura Norte-Americana pela Universidade de Coimbra. As

suas publicações, dentro e fora de Portugal, centram-se na temática da poética contemporânea

(sobretudo norte-americana e portuguesa), na sua relação com questões

de âmbito social e político, por exemplo, as relacionadas com as identidades e a emigração.

74


Chicos

O escritor, a profissão e a

previdência

Requerimento de inscrição de autônomo

MG, à rua Major Vieira, 154, inconformado com

a v. decisão da chefia do INSTITUTO NACIO-

NAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL, denegandolhe

a filiação ao órgão previdenciário, conforme

memorando nº 11-023/245, de 22 de fevereiro

de 1972, em seu poder, recorre a essa C. JUN-

TA, com apoio no texto do artigo 278 e seu parágrafo

único, do Decreto 60.501, de 14 de março

de 1967, contendo o REGULAMENTO GE-

RAL DA PREVIDÊNCIA SOCIAL, CONFIANTE

EM QUE v. Exas., sopesando e analisando a espécie,

se dignem de fazer reformar a v. decisão,

para deferir ao suplicante a sua pretensão.

PRELIMINARMENTE

RAZÕES DE RECURSO

à JUNTA DE RECURSO DA PREVIDÊNCIA

SOCIAL,

pelo recorrente FRANCISCO INÁCIO PEIXOTO,

no Proc. Prot. 001.626, de 25.01.72.

EGRÉGIA JUNTA

DOUTOS JULGADORES

FRANCISCO INÁCIO PEIXOTO, brasileiro,

casado, escritor, residente em Cataguases,

A r. decisão, ora recorrida, baseia-se na questão

do requisito da habilidade do exercício profissional

alegado, indeferindo lhe, sem maiores considerações

e mesmo sem detida análise, o seu pedido

de inscrição.

Entretanto, “data vênia”, o requisito da habitualidade

não pode nem deve ser tomado ao pé da

letra para uma aplicação uniforme para todos os

casos profissionais, a todos os tipos catalogados

pela Previdência Social. Ora, há profissionais liberais

que permanecem dias a fio à espera de

seus clientes; há comerciantes que passam semanas

inteiras sem vender mesmo uma agulha;

quantos são, e nós o sabemos, os motoristas que

ficam sem corridas dias seguidos?; quantos são

75


Chicos

enfim, os escritores que, mais férteis, escrevem

durante o ano inteiro e quantos que, durante toda

uma vida, com uma obra só, se inscreveram

definitivamente na literatura universal?

A PROVA

A simples menção dos precedentes

que a literatura nacional e estrangeira nos

oferece bastará para nos advertir que o requisito

da habitualidade não é o que confere a alguém a

categoria de escritor, não devendo nem podendo,

pois, ser levado ao seu fim último em casos

como o presente. Vejamos, entre inúmeros, alguns

exemplos:

Bastou a EMILY BRONTE o

seu “Wuthering Heights” (“O morro dos ventos

uivantes”) para consagrá-la como a maior escritora

romântica da literatura inglesa;

CHODERLOS DE LACLOS deixou

seu nome para a posteridade não pelos seus

feitos como general de Napoleão, mas por haver

escrito uma única obra, o extraordinário romance

“As ligações perigosas”;

TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA

e MATIAS AIRES sobrevivem: aquele, como o

grande lírico de “Marília de Dirceu” e este, como

o vigoroso autor de “Reflexões sobre a vaidade

dos homens”;

MANUEL ANTÔNIO DE AL-

MEIDA teria negada sua condição de escritor

por só nos haver legado esta obra-prima do romance

brasileiro – “memórias de um sargento

de milícias”?

E AUGUSTO DOS ANJOS,

com o seu singular “EU”?

MACIEL MONTEIRO, patrono

de Joaquim Nabuco na Academia Brasileira de

Letras, teria recusada sua entrada no parnaso

brasileiro, em virtude de sua obra escassa – o

volume “Poesias” –, da qual um soneto apenas

(“Formosa qual pintor em tela fina”) lhe daria o

renome maior?

76

Assim como há médicos que

trabalham mais que outros, assim como há advogados

com maior número de causas, assim há

também escritores que publicam menos livros

que outros, mas nem por isso devem ser relegados

de sua condição de escritores, vivendo ou

não da renda de suas obras, coisa rara – no primeiro

caso – aqui ou alhures, tanto ela depende,

universalmente, de fatores alheios à vontade de

quem escreve: editor, consumidor, possibilidade

de exprimir-se livremente, etc.

Não se considere o signatário

deste recurso tão imodesto, a ponto de se equiparar

com os nomes acima citados. Vieram ele à

coleção, entre tantos e tantos outros que nos

deixaram obra exígua, apenas para exemplificar.

O recorrente reconhece em si um escritor de

apoucados méritos, mas, ao invocar essa qualidade,

o faz em decorrência da necessidade e do

desejo de filiar-se à Previdência Social, amparado

em texto legal, depois de haver publicado

alguns livros e de ter escrito outros trabalhos,

ainda inéditos, e de vir continuando a escrever,

por força de uma certa fatalidade. A Academia

Brasileira de Letras (doc. Apenso ao processo

original, exibido à consideração da agência local


Chicos

do I.N.P.S.) considera-o um escritor e assim o

consideram também seus contemporâneos e como

tal é citado em revistas, jornais, e livros de

crítica literária. A página do “Estado de Minas”

de 8 deste mês serve para exemplificar o alegado

(doc. junto).

Por isso mesmo, conclui-se que

o requisito da “habitualidade” é termo que não

se pode tomar ao pé da letra, em se falando da

profissão de escritor.

“O que exerce, habitualmente

e por conta própria, atividade profissional

remunerada” (cf, art.4, “d” na Lei, e art. 5, IV,

no Regulamento).

Justamente essa conceituação é

que tem sido o ponto de desencontro entre os

aspirantes à filiação e os agentes previdenciários,

pois é seu costume tomar o advérbio

“habitualmente” (que os dicionários identificam

como “de um modo habitual”) como sinônimo

de diariamente ou até diuturnamente. No caso

de escritores, então, não procuram saber se os

mesmos trabalham constantemente, mas desejam

que as publicações saiam à luz profusamente,

esquecendo-se de que o escritor trabalha todos

os dias, quando pensa, anota fatos, refunde

casos, imagina situações, no minucioso e exaustivo

processo da produção literária.

Além disso, o hábito, como

função da vida psíquica, está catalogado pela

Psicologia como sendo’

O DIREITO

Dispõe a Lei Orgânica da Previdência

Social (Lei nº 3807) que são obrigatoriamente

segurados:

(art. 5º, IV) os trabalhadores

avulsos e os autônomos.

No mesmo sentido admite o

Regulamento Geral da Previdência Social (Dec.

60.501, de 14 de março de 1967) em seu artigo

6°, inciso V.

É certo que, tanto na Lei 3.807,

como no seu Regulamento, o Decreto 60.501, a

definição de autônomo está explícita:

“Uma disposição adquirida pela

repetição, para conservar ou reproduzir, com facilidade

crescente, atividades exercidas anteriormente”.

O hábito é um instrumento de processo.

É graças a ele que o indivíduo aprende a falar,

escrever, estudar, trabalhar, Ele fortalece e desenvolve

todas as funções e todas as capacidades.

Permite evitar recomeços perpétuos, como

ensina JOLIVET, que seriam necessários se o

fruto de nossos esforços se perdesse à proporção

de sua realização.

A HERMENÊUTICA

quando o texto legal invocado

dispõe de um modo amplo, sem limitações maiores,

é dever do intérprete aplicá-lo a todos os

casos particulares que se possam enquadra na

hipótese geral prevista explicitamente: não se

77


Chicos

deve tentar distinguir entre as circunstâncias da

questão e as outras, pois é princípio de interpretação

das leis que “onde a lei não distingue, não

pode o intérprete distinguir;

“Ubi lex no distinguit nec nos

distinguere debemus” (in CARLOS MAXIMILIA-

NO, “Hermenêutica e aplicação do Direito”,

pág.300, ed. De 1951, “Freitas Bastos”).

A raciocinarmos com o ilustre

agente do I.N.P.S., em Cataguases, não só teríamos

que refugar como escritores todos os vultos

citados anteriormente, impedindo-os (se fôssemos

ressuscitá-los) de qualquer filiação à Previdência

Social, como seu enquadramento na definição

pretendida.

Ora, se o trabalho do escritor

não se restringe à publicação de um livro, pois

um processo inteiro de elaboração precede aquele

ato, também não podemos privar do título e

da qualificação os que editam em menor escala.

Se assim, como pretende que

fosse a decisão recorrida, estaríamos ante a inutilidade

do texto previdenciário, frente a um dispositivo

de lei inócuo, contrariando os princípios

de Direito contidos numa regra que nos vem,

aplicada ao Direito Universal, desde JULIANO

(apud Digesto, liv.34, tít.5, frag12), e que bisca

dar à lei um sentido de que resulta a validade,

ao invés da nulidade:

“Prefira-se a inteligência dos

textos que torne viável o seu objetivo, ao invés

da que os reduza à inutilidade”.

(in CARLOS MAXIMILIANO,

ob. E ed. Citadas, pág.303).

O PEDIDO

Isto posto, confiante

o recorrente em que V. Exas., analisando detidamente

a espécie, sopesando os casos análogos (e

os há em abundância), buscando, antes, o espírito

da lei, em lugar de uma interpretação fria e

rígida, reformarão a r. decisão da Agência de

Cataguases, para deferir-lhe a pretensão de filiação

ao INSTITUTO NACIONAL DE PREVIDÊN-

CIA SOCIAL, pelo que espera

deferimento e justiça.

Cataguases, 11 de março de 1972

Francisco Inácio Peixoto

Nota dos editores: Trata-se a presente transcrição, de um recurso administrativo de Francisco Inácio Peixoto ao

ter seu requerimento de inscrição de segurado autônomo indeferido pela Agencia do antigo INPS em Cataguases

em 22.02.1972.

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Chicos

Clips

As Galerias Municipais têm o prazer de apresentar

Redes, colaboração e resistência em/

entre Portugal e Brasil, 1962-1982, uma exposição

com publicações coletivas do Arquivo

Fernando Aguiar e da Coleção Moraes-

Barbosa.

O Arquivo Fernando Aguiar (Lisboa, Portugal)

contém cerca de 50.000 itens relacionados

com a poesia experimental e visual, performance,

arte postal, livros e edições de artista,

Fluxus e arte conceptual, com destaque

para a componente da poesia experimental

portuguesa.

A Coleção Moraes-Barbosa (São Paulo, Brasil)

é um repositório de arte conceptual e videoarte

além de um arquivo de 15.000 objetos

de dança e performance, música experimental,

poesia visual, revistas e publicações

de arte.

Redes, colaboração e resistência em/

entre Portugal e Brasil, 1962-1982

Abílio-José Santos, Álvaro de Sá, Ana Hatherly,

Ânima, António Aragão, António

Dantas, António de Campos Rosado, António

Nelos, Ariel Tacla, Augusto de Campos, Décio

Pignatari, Edgard Braga, E. M. de Melo e Castro,

Erthos Albino de Souza, Haroldo de

Campos, Iberê, José-Alberto Marques, José

Lino Grünewald, Julio Plaza, Leonhard Frank

Duch, Liberto Cruz, Manuel de Seabra, Neide

Sá, Nei Leandro de Castro, Nenn, Omar

Khouri, Paulo Miranda, Pedro Osmar, Pedro

Tavares de Lima, Pedro Xisto, Peo, Quirinus

Kuhlmann, Regina Silveira, Régis Bonvicino,

Ronaldo Azeredo, Salette Tavares, Silvestre

Pestana, Sílvio Antonio Spada, Ubirajara Ribeiro,

Willy Corrêa de Oliveira e Wlademir

Dias-Pino.

Curadoria

Rui Torres

data

26.06.2021 – 05.09.2021

horário

Terça a domingo: 10h-13h e 14h-18h

local

Galerias Municipais de Lisboa

Galeria Avenida da Índia

Av. da Índia 170, 1400-038 Lisboa

T: 351 211941466

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Chicos

Partilhando a língua portuguesa mas atuando em

rede e circulando internacionalmente, estas

obras permitem-nos entender uma variedade de

coordenadas e práticas estéticas situadas na confluência

de rede, colaboração e resistência. Por

outro lado, os formatos e canais alternativos usados

parecem prenunciar o modo como diferentes

códigos e processos artísticos se misturam e agitam

na atual sociedade em rede.

Ao identificar formas análogas de expressão que

constituem atos comuns de resistência em Portugal

e no Brasil, ainda que em tempos diferentes

e em diálogo com comunidades distintas, tornase

possível observar uma intervenção social vital,

promovendo uma ação poética e política, acionada

por operações críticas de reinvenção da leitura

e da escrita, da participação e da produção,

da liberdade e da resistência.

As publicações escolhidas para esta exposição

estão associadas a grupos ou movimentos mais

ou menos locais (Poesia Experimental, Noigandres,

Invenção, Poema/processo, Código, Arte

postal, etc.). Porém, ao invés de abordar esses

movimentos como eventos sincrónicos depositários

de uma identidade local, examina-se a forma

como a sua atividade cooperativa despoletou

formas radicais de inovação que sobreviveram

aos seus próprios movimentos.

Para expor estas permutas e diálogos, propõe-se

um conjunto de agregadores que caracterizam a

diversidade material em exibição:

#resistência mobiliza obras marcadas pela ação,

subversão e engajamento;

#método aciona experimentação, interseção e

estrutura;

#colaboração sinaliza atos de cooperação, intercâmbio

e diálogo;

#apropriação envolve operações de intermedialidade,

tradução e adaptação;

#rede potencia formas alternativas de comunicação,

difusão e circulação;

#pesquisa propõe releituras da tradição através

da investigação e da invenção.

A exposição esteve patente no John Young Museum

of Art, University of Hawai’i em Mānoa

entre 26 de Outubro de 2020 – 28 de Janeiro de

2021, onde foi organizada por Maika Pollack e

Rui Torres, com base num ensaio de Rui Torres.

⠀ ⠀ ⠀ ⠀ ⠀ ⠀

Iniciada em 1999, a Coleção Moraes-

Barbosa (São Paulo, Brasil) é um repositório de

arte conceptual e videoarte além de um arquivo

de 15.000 objetos de dança e performance, música

experimental, poesia visual, revistas e publicações

de arte. Atualmente, encontram-se em

curso vários projetos com artistas, investigadores

e críticos de arte que exploram o arquivo, bem

como um projeto com a Universidade de São

Paulo dedicado ao estudo da arte e inteligência

artificial.

O Arquivo Fernando Aguiar (Lisboa, Portugal)

contém cerca de 50.000 itens relacionados com

a poesia experimental e visual, performance, arte

postal, livros e edições de artista, Fluxus e arte

conceptual, desde os anos 1960, com destaque

para a componente da poesia experimental portuguesa.

O acervo documental é constituído por

livros, catálogos, revistas, revistas de artista, cartazes,

desdobráveis, fotografias, slides e negativos,

provas de contato, vídeos, poesia digital,

cassetes, discos e CDs de poesia sonora e postais,

entre outros.

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