Edição de Julho e Agosto 2021
Edição de Julho e Agosto 2021 Nºs 277 e 278
Edição de Julho e Agosto 2021
Nºs 277 e 278
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
CRÓNICA
A indústria de falsificações
do Estado Novo
PACHECO PEREIRA (*)
Numa altura em que a direita
radical tenta recuperar o conjunto
da sua história no século
XX, ou seja, os 48 anos
em que governou Portugal
em ditadura, porque precisa
de reforçar a sua legitimidade
limpando-se do seu passado,
para demonizar à vontade
o dos “outros”, vale a pena
olhar para o que foi esse período
negro da nossa vida
colectiva. Ou pensam que foi
a esquerda que governou de
1926 a 1974? Como se diz em
português plebeu, lata para
dizerem isso têm.
Uma das técnicas é dizer que o regime
da ditadura – a que não chamam
assim, como é obvio – foi “indefensável”.
De passagem, como se come um
peão no xadrez, brevemente e sem
consequências na economia do discurso,
para depois não dizerem uma
linha, uma palavra, um “mas”, mesmo
de circunstância, sem mencionar a ditadura,
as prisões e a repressão, a censura,
e os milhares de mortos da guerra
colonial durante a módica quantia
de 48 anos. Terra de leite e MEL, com
um pequeno problema, que é “indefensável
no plano político”, mas nem
sequer se diz porquê, porque estragava
o resto, o que é “defensável”. O que
está implícito é que em muitas outras
matérias é “defensável”. Foi isto que
fez um académico numa intervenção
estritamente política e com muito
pouco de académico, Nuno Palma,
no MEL. No sentido weberiano percebe-se
bem de mais o mecanismo da
empatia com aquilo que é eufemisticamente
classificado apenas como o
Estado Novo. E desafio o Polígrafo
a desmentir-me.O problema do contexto
é iludido e, neste caso, o contexto
é tudo. Não faltam exemplos do
contexto que, esse sim, falta aqui. Só
(Números falsos do Avante!, de O Jovem, da FPLN, e um
comunicado com falsas biografias de candidatos da oposição)
a Censura tinha uma história longa e
exemplar para contar, mas não havia
só Censura, havia falsificações, fake
news, com a publicação pela Legião
Portuguesa e pela PIDE de documentos
falsos, disfarçados de verdadeiros.
Era uma prática muito comum, que
abrangia panfletos com assinaturas
falsas, exemplares falsos de jornais
clandestinos e cartazes com imagens
manipuladas, de que os que aqui reproduzo
são meros exemplos. Desde
Salazar, mentindo publicamente sobre
o assassinato de Delgado, ao legionário
da esquina, a falsidade era o
corrente. A falsidade, a calúnia e a difamação
como instrumento de ataque
aos opositores.
Dos exemplares que reproduzo acima
um é particularmente repulsivo,
a “biografia” de Mário Sottomayor
Cardia. Cardia é acusado de roubar
dinheiro nos vestiários da Cidade
Universitária para ir cear ao restaurante
Mónaco, de onde saía embriagado,
e de ter sido protegido pela
PIDE por ter participado num atentado
à bomba. Tenho a certeza, mas
tenho mesmo a certeza, que haverá
quem leia isto hoje e pense: “Se calhar
era mesmo verdade.” Hoje, em 2021,
porque quando este papel imundo foi
feito quem o lia percebia que a PIDE
ou a Legião estava a fazer o seu trabalho
sujo. Do modo como as coisas
estão, era mais inócuo lê-lo em 1969
do que hoje.A coisa repugna-me em
particular, porque Sottomayor Cardia
foi nesta altura preso e espancado
pela PIDE, provocando-lhe um deslocamento
de retina. Cardia era um
homem tão franzino, como corajoso,
e a violência contra ele é por si só uma
“marca de água” da brutalidade da ditadura
“indefensável”. Aliás, a mesma
propensão dos valentes polícias e pides
para baterem em homens de constituição
frágil provou-a Urbano Tavares
Rodrigues. E, em bom rigor, muitas e
muitas centenas de comunistas, anarquistas,
oposicionistas, ou inocentes
apanhados por engano, como os primeiros
acusados do atentado a Salazar
que, como é óbvio, “confessaram”.
Eu, aos do MEL, do Observador, dos
novos think tanks e da galáxia comunicacional
cada vez mais vasta, percebo-os
bem de mais. Esmagados pela
ditadura férrea do PS, do PCP e do
BE, e pela inoperância da “direita fofinha”,
ou seja, o PSD, o que os irrita é
não poderem assumir uma inocência
que a sombra dos 48 anos de governo
da direita em ditadura lhes tira. Mas
em conclave estão cada vez mais à
vontade para louvar essa direita não
fofinha que nos protegeu do comunismo
durante quase todo o século XX.
Eles pensam que são muito corajosos
combatentes contra o ditador António
Costa, mas são apenas lampeiros.
Grandes palavras tem o português. E
ouçam-se as palmas – aliás, o padrão
das palmas no MEL é idêntico em todos
os oradores, de Ventura a Sérgio
Sousa Pinto –, que são o retrato da audiência
na sala, do que quer e do que
lhe interessa. E esse padrão é muito
mais sinistro do que tudo o resto.
Não se ponham a pau…
(*)Historiador - in Público
Lusitano de Zurique - Julho/Agosto 2021 | www.cldz.eu
27