Edição de Julho e Agosto 2021
Edição de Julho e Agosto 2021 Nºs 277 e 278
Edição de Julho e Agosto 2021
Nºs 277 e 278
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POSTAL DO DIA
Uma longa madrugada
LUÍS OSÓRIO
1.
No final do seu último discurso
no congresso do Chega, André
Ventura ameaçou limpar
o país.
Prender dirigentes políticos.
Perseguir quem não for
sério.
Despoluir o país da esquerda.
Ao longo do congresso disse
mais.
“Um bandido é um bandido e
não temos medo de o dizer”
E fez mais.
Ajoelhou-se em palco e fez uma saudação
fascista – dizendo que não é
uma saudação fascista.
E recebeu Salvini com centenas de
pessoas em apoteose – o mesmo Salvini
que irá a julgamento no seu país
por ter recusado ajuda a quase 200
seres humanos sedentos e esfomeados
às portas de Lampeduza – homens,
mulheres e crianças que ficaram
à mercê do mar durante quase
um mês.
2.
E citou Francisco Sá Carneiro
(imagine-se)
E Nossa Senhora de Fátima.
E tornou a falar da prisão perpétua,
da esterilização, dos bandidos a
quem se recusa a pedir desculpa mesmo
depois de saber que, afinal, não
eram bandidos, mesmo depois de ser
condenado pelo tribunal.
E o que ele ameaçou.
E gritou.
E o que ele prometeu.
Limpeza.
Ajuste de contas.
Justiça.
Revolução.
Tudo isso e muito mais quando atingir
o poder.
“Porque no próximo congresso espero
poder dirigir-me aos militantes
fazendo parte de um governo”.
3.
Se tal acontecesse, se um dia ele for
poder, também eu serei perseguido.
Os textos que escreveria deixariam
de ser possíveis.
O movimento seria implacável.
Primeiro uma limitação às liberdades,
depois mais limitações, depois
uma revisão constitucional, depois o
controle das Forças Armadas, umas
escaramuças, uns interrogatórios, a
limpeza.
E ninguém poderá dizer que não sabia.
Ninguém poderá dizer que Ventura
escondeu dos portugueses o que deseja,
ninguém poderá proclamar que
escondeu ao que ia.
Porque ele diz todos os dias ao que vai.
4.
André Ventura está longe de ser
parvo. Não o podemos ou devemos
desvalorizar. Não tanto
por aquilo que diz, mas por
aquilo que naturalmente
é. Se o olharmos vemos
que nada lhe assenta
bem. O fato não parece
à sua medida, a
cara é baça, o sorriso
desafia permanentemente.
Ele não acredita
em nada do que
diz (poderia dizer o
contrário com igual
convicção), mas é o
que os seus votantes esperam
que seja.
Não parece de lugar nenhum.
E se o que veste não lhe assenta,
ou se a sua cara é baça, é por ser um
homem que veio rebentar com o
que existe para construir um mundo
novo sem gananciosos, corruptos,
bem-vestidos ou caras bem-postas.
É este o seu principal trunfo.
5.
André Ventura fala para os desenraizados.
Como todos os ditadores
e populistas antes dele. Fala para os
que acham já não ter nada a perder.
Para os que estão desiludidos com
tudo (a começar com a sua própria
vida). Para os ressentidos para quem
a culpa está sempre nos outros. Para
os que só se sentem vivos se estiverem
a despejar desejos de vingança.
Para os que atiram a primeira pedra.
Para os que acham ser especiais e diferentes
da escumalha que nos trouxe
até aqui. Para os que acreditam
que tudo seria fácil de resolver, como
tantas e tantas vezes tenho ouvido
proclamar.
6.
André Ventura não será nunca poder.
Mas se o for, se os portugueses lhe
oferecerem tal possibilidade, por absurdo
que possa parecer, será uma
longa madrugada, um longo Inverno.
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Lusitano de Zurique - Julho/Agosto 2021 | www.cldz.eu