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Dicionario-Paulo-Freire-versao-1

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TRAMA

Luiz Augusto Passos

Se alguém encontrasse, perdidos, canudinhos de refrigerantes cruzados e

entrelaçados formando uma treliça saberia dela algumas informações

corretas: aquilo não era obra da natureza, alguém teria feito aquela tecedura

dominando procedimentos para trançá-las. Havia um conhecimento, uma

inteligência criadora por trás daquele “achado”. Os canudinhos dispostos lado

a lado apresentam uma resistência que antes não tinham. Saberia, ainda, que

aquela trama era ardilosa, um canudinho entra num lugar, costura por baixo

sem poder ser visto e ressurge de vez em quando, com certa regularidade,

formando uma rede difícil de ser desmontada. Streck (2006) alerta que a

trama em Freire é mais complexa e densa que a redinha acima esboçada.

Trama, em Freire, não é nunca um objeto inerte. Fugidia e dinâmica,

ultrapassa a malícia da rede de canudinhos.

Paulo Freire usa de forma surpreendente a palavra “trama”. Ela cresce nos

seus escritos como uma metáfora aplicada às relações cotidianas ou nas

amplas relações políticas e socioeconômicas. Há uma mente e, portanto, uma

intencionalidade, um ardil, uma malícia nesse mesmo arranjo, que empresta

resistência ao material frágil, via soldagem de fios pela rede tortuosa da vida,

no fluxo dos eventos, das surpresas, dos encontros e desencontros. Paulo

Freire lê os acontecimentos e a vida como trama, às vezes, no melhor sentido

expresso pelo existencialismo, o de facticidade: seres-no-mundo, estamos aí,

expostos, ou melhor, postos, inelutavelmente, como um ser-aí, numa

determinada história, inseridos num contexto complexo com determinações

que nos solicitam respostas e provocam a liberdade última de aceitá-las ou

rejeitá-las e, portanto, de decisões que modelarão nossos rostos. “Carregamos

conosco a memória de muitas tramas, o corpo molhado de nossa história, de

nossa cultura” (FREIRE, 1994, p. 17).

As tramas, em Freire, adquirem, também, a ideia de inesgotáveis sentidos

que emolduram experiências, coisas, acontecimentos e palavras num

determinado quadro de relações que lhes confere sentidos “outros”,

diferenciados. Recomenda que nunca nos prendamos às palavras,

isoladamente, mas às tramas às quais elas entretecidas estão submetidas.

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