Dicionario-Paulo-Freire-versao-1

silvawander2016
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LIBERDADEJung Mo SungLiberdade é um conceito central na antropologia de Paulo Freire, emtorno do qual ele constrói a sua teoria pedagógica. Para ele, o que diferencia oser humano de outros animais é o fato de que os humanos são seres deintegração ao seu contexto, um ser situado cultural e historicamente, comcapacidade criativa e crítica; enquanto os animais são essencialmente seres daacomodação e do ajustamento. Essa característica específica que faz o serhumano se realizar como humano não é algo pronto. Os seres humanos têmlutado, através dos tempos, contra as forças de dominação e opressão, pois“toda vez que se suprime a liberdade, fica ele um ser meramente ajustado ouadaptado” (FREIRE, 1980, p. 42). Por isso, Freire entende a humanização nãocomo um dado ou um processo garantido, mas como uma vocação, que podeser negada na injustiça, opressão, exploração e na violência, mas que éafirmada “no anseio de liberdade, de justiça, de luta pela recuperação de suahumanidade roubada” (FREIRE, 1979, p. 30).Ao afirmar que sistemas e relações sociais injustas negam a humanizaçãoe a liberdade e propor a luta pela libertação dessas condições como umatarefa humanista, Freire apresenta uma dimensão da liberdade que AmartyaSen chamou de “liberdades substanciais”: as condições econômicas, sociais epolíticas que possibilitam escolhas e oportunidades das pessoas de exerceremponderadamente sua condição de agente (SEM, 2000).Essa luta pela libertação de situações sociais e políticas opressivas é umacondição fundamental para a realização da liberdade, mas não suficiente.Freire analisa também a dimensão subjetiva da liberdade. Para ele, aliberdade não é a possibilidade de realizar todos os desejos, no sentido dealmejar a liberdade acima de qualquer limite, como pensam muitos do mundomoderno e pós-moderno. A esse respeito, ele apresenta dois argumentosprincipais. Primeiro, “a vontade ilimitada é a vontade despótica, negadora deoutras vontades e, rigorosamente, de si mesma. É a vontade ilícita dos ‘donosdo mundo’ que, egoístas, só se vêem a si mesmos” (FREIRE, 2000, p. 34). Porisso, “a liberdade sem limite é tão negada quanto a liberdade asfixiada oucastrada” e ela “amadurece no confronto com outras liberdades, na defesa de

seus direitos em face da autoridade” (FREIRE, 2004, p. 105). Isto é, aliberdade não se opõe à liberdade alheia, como na vontade despótica, nemtermina onde começa a liberdade do outro, mas ela se realiza quando seencontra com outras pessoas na luta pela sua liberdade e pela das outras.Segundo, nem todos os desejos que desejamos são nossos desejosverdadeiros ou autênticos. Antecipando um tema que será bastante discutidono estudo da cultura de consumo no final do século XX e no início de XXI,Freire, em diálogo com as ideias de Erich Fromm e Celso Furtado, fala deuma irresistível atração por parte dos oprimidos e também dos “oprimidos declasse média” pelos padrões de vida do opressor. “Participar destes padrõesconstitui uma incontida aspiração. Na sua alienação, querem, a todo custo,parecer com o opressor. Imitá-lo. Segui-lo” (FREIRE, 1979, p. 53). A vocaçãoda humanização aparece nessa relação como o desejo de serem como aquelesque são o seu testemunho de humanidade: os seus opressores. Realizar essedesejo não conduz à liberdade, mas à alienação e a uma existênciainautêntica, pois no fundo são escravos dos desejos alheios e opressivos.No Ocidente, as ideias de liberdade como vocação humana e decontradição entre os desejos alienados e a verdadeira liberdade encontramsuas raízes no pensamento do apóstolo Paulo. Ele foi o grande anunciador daliberdade: “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gálatas, cap. 5).José Comblin (1998), um dos teólogos da libertação que mais tem trabalhadoo tema da liberdade, diz que para Paulo a liberdade não se alcançasatisfazendo os desejos imediatos e alienantes, mas no encontro com outraspessoas, no serviço da vida do próximo e da libertação. Esse paralelo nosmostra a influência de um cristianismo centrado na liberdade-libertação nopensamento de Freire, assim como podemos perceber também a influência dopensamento dele em diversos teólogos da libertação.No âmbito da economia, Celso Furtado (1974) mostrou que o desejo deimitar os padrões de consumo da elite dos países ricos por parte da elite dospaíses mais pobres (“consciência colonizada”) é uma das razões do dualismosocial e da exclusão social que marca a América Latina e muitos outrospaíses do Terceiro Mundo.Essa interiorização do opressor no oprimido e a “consciência colonizada”da nossa elite alienam e reproduzem o sistema econômico-social-políticoculturalque oprime e se contrapõe à realização da vocação humana parahumanização e liberdade. Por isso, para Freire a luta permanente pela

seus direitos em face da autoridade” (FREIRE, 2004, p. 105). Isto é, a

liberdade não se opõe à liberdade alheia, como na vontade despótica, nem

termina onde começa a liberdade do outro, mas ela se realiza quando se

encontra com outras pessoas na luta pela sua liberdade e pela das outras.

Segundo, nem todos os desejos que desejamos são nossos desejos

verdadeiros ou autênticos. Antecipando um tema que será bastante discutido

no estudo da cultura de consumo no final do século XX e no início de XXI,

Freire, em diálogo com as ideias de Erich Fromm e Celso Furtado, fala de

uma irresistível atração por parte dos oprimidos e também dos “oprimidos de

classe média” pelos padrões de vida do opressor. “Participar destes padrões

constitui uma incontida aspiração. Na sua alienação, querem, a todo custo,

parecer com o opressor. Imitá-lo. Segui-lo” (FREIRE, 1979, p. 53). A vocação

da humanização aparece nessa relação como o desejo de serem como aqueles

que são o seu testemunho de humanidade: os seus opressores. Realizar esse

desejo não conduz à liberdade, mas à alienação e a uma existência

inautêntica, pois no fundo são escravos dos desejos alheios e opressivos.

No Ocidente, as ideias de liberdade como vocação humana e de

contradição entre os desejos alienados e a verdadeira liberdade encontram

suas raízes no pensamento do apóstolo Paulo. Ele foi o grande anunciador da

liberdade: “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gálatas, cap. 5).

José Comblin (1998), um dos teólogos da libertação que mais tem trabalhado

o tema da liberdade, diz que para Paulo a liberdade não se alcança

satisfazendo os desejos imediatos e alienantes, mas no encontro com outras

pessoas, no serviço da vida do próximo e da libertação. Esse paralelo nos

mostra a influência de um cristianismo centrado na liberdade-libertação no

pensamento de Freire, assim como podemos perceber também a influência do

pensamento dele em diversos teólogos da libertação.

No âmbito da economia, Celso Furtado (1974) mostrou que o desejo de

imitar os padrões de consumo da elite dos países ricos por parte da elite dos

países mais pobres (“consciência colonizada”) é uma das razões do dualismo

social e da exclusão social que marca a América Latina e muitos outros

países do Terceiro Mundo.

Essa interiorização do opressor no oprimido e a “consciência colonizada”

da nossa elite alienam e reproduzem o sistema econômico-social-políticocultural

que oprime e se contrapõe à realização da vocação humana para

humanização e liberdade. Por isso, para Freire a luta permanente pela

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