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Dicionario-Paulo-Freire-versao-1

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no saber-sobreviver; saber solidário que a protege da completa rendição a que

o opressor intenta submetê-la, garantindo o direito à insurgência. Ninguém lê

o mundo isolado. Os oprimidos, em comunhão, asseguraram-se de manhas,

para não se deixarem transformar em coisas. Do lugar onde estão, possuem

uma leitura singular, análogo àquele que, situado na periferia, vê também o

centro da cidade; moradores do centro, dificilmente, enxergam a periferia.

Há um lugar social, uma leitura corporal desde a janela do olhar datado e

sofrido, que permite uma visão menos falsa que a versão dominante. Ler a

palavra é lê-la como corpo consciente molhado por uma história vivida de um

mundo experimentado como real, de sorte que, as “palavras do Povo, [...]

grávidas de mundo” (FREIRE, 1982, p. 13) o partejam. Toda palavra é

palavra-mundo. Há uma cultura de sentidos, que Geertz (1989) chama de

“campo semântico comum compartilhado”, “caixa comum” de significados

acessíveis universalmente, no qual circulam interpretações estandardizadas

das palavras; repertório de conceitos inseminados por visões, ideologias

doadas como “prato-feito” de um mundo à ótica dos opressores. Clichês préfabricados,

manhoso embuste da dominação capitalista, perpetuam a

legitimação da cultura de violência real e simbólica. Cultura que naturaliza o

fatalismo nos processos sociais, de que as coisas estão assim por uma

destinação sobrenatural ou por culpa dos próprios oprimidos que, por

incompetência, escolheram a miséria ao trabalho. Essa semântica do mundo

ocupa o primeiro plano na “científica” explicação que legitima a lógica do

capital. Toda pedagogia na qual existam ensinadores do exato sentido das

palavras, explicadores da naturalidade do mundo, divulgadores da visão

científica do real, válida para todos, em qualquer tempo e lugar, está do lado

da continuidade da opressão e do genocídio real e simbólico. A leitura dos

opressores, entretanto, não pode tudo: será sempre alter-ada pelos sentidos

contra-hegemônicos dos excluídos, grávidos de sonhos e desejos. Dizer a

palavra não é pronunciar um signo exterior, sequer apossar-se de uma

significação pronta ou um objeto cognoscível. A libertação dos oprimidos

não é a livração de um contexto opressor, feito por outros; demandará

transformações no interior dos sujeitos e de sua simbólica. Ninguém precisa

de pão somente (libertação econômica de necessidade biológica), mas

também de Palavra (libertação emancipatória e autonomia política), partejada

na carne. Nenhuma libertação doada é benevolente, carecemos de parturição

de nós, por nós. Nesse contexto de dominação carecemos, diz Freire (1996, p.

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