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Publicação Mensal<br />
Vol. XXIV - Nº <strong>279</strong> Junho de 2021<br />
Auscultando o Sagrado<br />
Coração de Jesus e Maria
O grande<br />
ponteiro<br />
de Deus<br />
A<br />
Providência determinou, e es-<br />
tá na ordem do universo, que o<br />
calendário humano se marcasse<br />
pelo movimento dos astros; e que con-<br />
siderando esse movimento os homens<br />
tivessem o mais maravilhoso dos relógios<br />
feito pelo mais magnífico dos re-<br />
lojoeiros.<br />
O Sol, este grande ponteiro de Deus,<br />
quando faz seus raios atravessarem<br />
um vitral vermelho acende um rubi,<br />
ao incidir sobre um vitral verde<br />
fulgura uma esmeralda. No fundo o<br />
que é ele? É o Astro-Rei!<br />
O Sol nunca é tão lindo como quando<br />
ilumina uma igreja.<br />
(Extraído de conferência de 2/6/1984)
Sumário<br />
Publicação Mensal<br />
Vol. XXIV - Nº <strong>279</strong> Junho de 2021<br />
Vol. XXIV - Nº <strong>279</strong> Junho de 2021<br />
Auscultando o Sagrado<br />
Coração de Jesus e Maria<br />
Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
em 13 de dezembro<br />
de 1992.<br />
Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
ISSN - 2595-1599<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
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Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
editoraretornarei@gmail.com<br />
Segunda página<br />
2 O grande ponteiro de Deus<br />
Editorial<br />
4 “Quem tem ouvidos<br />
para ouvir, ouça!”<br />
Piedade pliniana<br />
5 Emendai-me e curai-me!<br />
Dona Lucilia<br />
6 Amou apaixonadamente o<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
11 Tipos humanos revolucionários<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
18 Hierarquia, esplendor,<br />
nobreza, sacralidade<br />
Calendário dos Santos<br />
22 Santos de Junho<br />
Hagiografia<br />
24 Santa Clotilde e a<br />
conversão do Rei Clóvis<br />
De Maria nunquam satis<br />
27 Que o Coração de Maria<br />
seja a nossa morada<br />
Apóstolo do pulchrum<br />
30 À procura do belo<br />
e do superbelo<br />
Última página<br />
36 Poema de Contra-Revolução<br />
3
Editorial<br />
“Quem tem ouvidos<br />
para ouvir, ouça!”<br />
Ultimamente, têm sido instilados nas fileiras católicas preconceitos tenazes contra certas devoções, entre<br />
as quais o culto ao Santíssimo Sacramento extra Missam e o Santo Rosário.<br />
Ora, ambas estas devoções são fortemente inculcadas em Fátima.<br />
Para Deus nada é impossível. Assim, se aprouvesse à Providência, os pequenos pastores poderiam ter sido<br />
transportados – por um fenômeno de bilocação, por exemplo – a algum lugar onde se celebrasse o Santo Sacrifício,<br />
para no decurso dele receberem a Sagrada Comunhão. Em última análise, isto seria tão extraordinário<br />
quanto confiar ao Anjo as Sagradas Espécies para que delas comungassem os pastorinhos. No entanto, foi este<br />
último o modo disposto pela Providência. Se houvesse no culto eucarístico extra Missam qualquer coisa de intrinsecamente<br />
contrário à verdadeira maneira de entender a Presença Real, seria impossível que a Providência<br />
determinasse que a adoração eucarística do Anjo e a Primeira Comunhão dos pastores se realizassem do modo<br />
pelo qual efetivamente se realizaram.<br />
Quanto ao Santo Rosário, seria difícil recomendá-lo com insistência maior. “Eu sou a Senhora do Rosário”,<br />
disse de Si mesma a Santa Virgem na última das aparições. E em quase todas elas inculcou explicitamente esta<br />
devoção aos pastorinhos. Como pretender, pois, que o Rosário perdeu algo de sua atualidade?<br />
Apregoa-se ainda que a meditação do inferno é inadequada a nossos dias, e capaz apenas de incutir um temor<br />
servil. Esta afirmação cai por terra fragorosamente, à vista do que ocorreu em Fátima, pois a visão do inferno<br />
com que os três pastorinhos foram favorecidos destinava-se evidentemente a acrisolar seu amor e seu senso<br />
de apostolado.<br />
Em Fátima se inculca igualmente, com expressiva insistência, a devoção ao Sagrado Coração de Jesus que, ela<br />
também, tem sido posta na penumbra por certa tendência de espiritualidade muito em voga em nossos dias. O culto<br />
ao Sagrado Coração de Jesus foi considerado por todos os teólogos como uma das mais preciosas graças com<br />
que a Santa Igreja tem sido confortada nos últimos séculos. Destinava-se ela a reanimar nos homens o amor de<br />
Deus entorpecido pelo naturalismo da Renascença, pelos erros dos protestantes, jansenistas, deístas e racionalistas.<br />
No século passado, foi por meio desta devoção que o Apostolado da Oração produziu um admirável reflorescimento<br />
da vida religiosa em todo o mundo. E, como os males de que o Sagrado Coração de Jesus nos deve preservar<br />
crescem dia a dia, é evidente que dia a dia se acentua a atualidade desta incomparável devoção.<br />
Contudo, é preciso acrescentar que, com a agravação dos males contemporâneos, a Providência quis como<br />
que superar a Si própria apontando aos homens como alvo de sua piedade o Coração de Maria, cujo culto de<br />
certo modo requinta e leva à sua plenitude a devoção ao Sagrado Coração de Jesus.<br />
Os estudos e a devoção cordimarianos não são novos. Quer nos parecer, entretanto, que a simples leitura da<br />
Mensagem de Fátima demonstra com quanta insistência Nossa Senhora os quer para nossos dias. A missão que<br />
Ela confiou à Irmã Lúcia foi especialmente a de ficar na Terra para atrair os homens ao Coração Imaculado de<br />
Maria. Várias vezes esta devoção é recomendada durante as visões. Este Coração Santíssimo nos aparece mesmo,<br />
na segunda aparição, coroado de espinhos pelos nossos pecados, a pedir a oração reparadora dos homens.<br />
Parece-nos que este ponto compendia em si todos os tesouros das mensagens de Fátima.<br />
Em seu conjunto, pois, as aparições de Fátima, de um lado, nos instruem sobre a terrível gravidade da situação<br />
mundial e as verdadeiras causas de nossos males; e, de outro lado, nos ensinam os meios pelos quais devemos<br />
obviar os castigos terrenos e eternos que nos ameaçam.<br />
Aos antigos, Deus enviou profetas. Em nossos dias, falou-nos pela própria Rainha dos Profetas. Diante disso,<br />
o que dizer? As únicas palavras adequadas são as de Nosso Senhor no Santo Evangelho: “Quem tem ouvidos<br />
para ouvir, ouça!” (Lc 8, 8). *<br />
* Cf. A Devoção ao Coração de Maria salvará o mundo do Comunismo, in Catolicismo n. 30, junho de 1953.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Piedade pliniana<br />
Emendai-me e<br />
curai-me!<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Eis a confusão confiante, cheia de certeza de ser<br />
atendido com a qual devemos ir à Sagrada Eucaristia:<br />
Meu Senhor, não tenho o que Vos dizer... Vejo que andei<br />
mal, mas confio em Vós porque sois a solução de tudo. Vós<br />
sois o Caminho, a Verdade e a Vida. Com confiança prostro-me<br />
aos vossos pés com os meus pecados, como Santa<br />
Maria Madalena. Sei que não me repelireis, nem me abominareis.<br />
Com confiança Vos peço: emendai-me!<br />
Vós sois Aquele que a todos emendais e curais; curai e<br />
emendai a mim também. Estou como o cego, o paralítico,<br />
o leproso do Evangelho. Curai-me das minhas doenças<br />
de alma, como curastes aqueles corpos!<br />
Por vossa Mãe, a Quem nunca negastes nada e a<br />
Qual nunca nega coisa alguma que se peça a Ela, eu<br />
Vos suplico: curai-me!<br />
(Composta em 5/1/1974)<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1992<br />
5
Dona Lucilia<br />
Amou apaixonadamente o<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
Luis C.R. Abreu<br />
Dona Lucilia era uma espécie de reflexo<br />
de uma beleza incomparável de Nosso<br />
Senhor, a Quem amava apaixonadamente.<br />
Olhando para ela e percebendo como<br />
adorava o Sagrado Coração de Jesus, se<br />
compreendia que Ele era digno de todo<br />
o amor, e se passava a participar da<br />
adoração dela para com o Redentor.<br />
Está no espírito do homem<br />
que ele, mesmo<br />
quando muito indolente,<br />
muito preguiçoso, muito sem<br />
paixão, seja apaixonado.<br />
Atitude do<br />
homem ao sentir<br />
que algo do<br />
qual ele gosta<br />
está ameaçado<br />
Por exemplo, um<br />
indivíduo muito preguiçoso<br />
que se levanta<br />
de manhã sem vontade,<br />
vai trabalhar com<br />
mais horror ainda, volta<br />
para almoçar e quereria<br />
passar o dia em casa<br />
dormindo. É um homem<br />
mole e, portanto,<br />
na aparência sem<br />
paixão, dir-se-ia não ser capaz de um<br />
amor apaixonado.<br />
Mas quando se examina a fundo<br />
essa situação, percebe-se que ele<br />
tem um amor apaixonado à inércia,<br />
à preguiça, e se alguém o procura<br />
para fazer trabalhar e sair da preguiça<br />
ele pode ficar uma fera.<br />
De onde se vê que até o homem,<br />
na aparência não apaixonado, tem a<br />
sua mente feita de tal maneira pelo<br />
Criador que ele de fato possui paixões.<br />
Nesse caso uma paixão péssima,<br />
a preguiça.<br />
Eu me lembro, no meu tempo de<br />
infância, de um companheiro muito<br />
preguiçoso. Mas quando se tocava<br />
em algum ponto que o melindrava, ele<br />
se apaixonava. E, apaixonando-se, naquela<br />
matéria revelava uma capacidade<br />
de reação, embora se julgasse não<br />
ser ele capaz de absolutamente nada.<br />
A paixão é algo de unitário existente<br />
no mais fundo da psicologia<br />
6<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
Convento da Luz, São Paulo
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
humana, o qual o homem ama mais<br />
do que todo o resto, porque todas<br />
as suas apetências se dirigem para<br />
aquilo. E o ama apaixonadamente<br />
quando tem clareza de noção de<br />
que aquilo de que ele gosta e, sobretudo,<br />
sente, está ameaçado. Aí a paixão<br />
pode pegar fogo e fazer um homem<br />
mole como uma arara ser capaz<br />
de voar como uma águia.<br />
Como amar a Deus<br />
apaixonadamente<br />
Como fazer com que nossas almas<br />
se voltem para Deus de modo a<br />
amá-Lo apaixonadamente?<br />
É da seguinte maneira:<br />
O homem, pelo princípio da semelhança,<br />
tem o desejo de conhecer<br />
e entrar em contato com pessoas<br />
que possuam uma alma semelhante<br />
à dele. E quanto mais a alma é semelhante,<br />
tanto mais ele gosta<br />
daquela pessoa. E se essa<br />
semelhança é notável, pode<br />
dar num verdadeiro entusiasmo,<br />
numa amizade modelar, de<br />
modo que um encontra no outro<br />
uma espécie de identidade<br />
com o ideal que ele mesmo tem.<br />
Então, ambos se estimam.<br />
A pessoa que tem a noção do<br />
ensinamento da Igreja Católica<br />
sobre o Sagrado Coração de Jesus,<br />
conhece boas imagens que lhe proporcionam<br />
uma ideia de como Ele<br />
possa ter sido, percebe ser o Coração<br />
de Jesus feito para que todos se<br />
apaixonem por Ele. Porque, como<br />
Nosso Senhor possui todas as perfeições,<br />
todos os homens podem encontrar<br />
n’Ele o seu modelo divino e<br />
a perfeição que gostariam de ter, e de<br />
manter com Ele relações cotidianas.<br />
Então, a pessoa que tem a felicidade<br />
de conhecer a Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo, o Qual no trato com<br />
ela a faz notar quanto Ele é o<br />
seu arquétipo, a sua plenitude,<br />
e como o indivíduo que não<br />
O conhece é nada, uma poeira,<br />
aquela pessoa naturalmente<br />
se volta para o Coração<br />
de Jesus com amor<br />
apaixonado.<br />
“O Coração que tanto<br />
amou os homens e por<br />
eles foi tão pouco amado”<br />
Foi o que eu conheci em Dona<br />
Lucilia.<br />
No teto da Igreja do Coração<br />
de Jesus, em São Paulo, está<br />
pintada uma cena de Nosso<br />
Senhor dentro de uma<br />
capelinha, aparecendo<br />
em meio a umas nuvens<br />
sobre o altar, e dirigindo-<br />
-Se para uma freira ajoelhada<br />
aos seus pés, Santa<br />
Margarida Alacoque,<br />
uma camponesa francesa<br />
a qual se fez religiosa e que,<br />
em consequência, tinha uma cultura<br />
e uma inteligência maiores do que<br />
uma camponesa comum.<br />
O Divino Salvador lhe mostra, no<br />
seu peito aberto, o Coração d’Ele,<br />
com um gesto muito bonito, de um<br />
rei ostentando a sua condecoração,<br />
e diz: “Minha filha, eis aí o Coração<br />
que tanto amou os homens e por<br />
eles foi tão pouco amado!”<br />
É a censura que Nosso Senhor<br />
faz, porque Ele ama os homens com<br />
amor infinito, e os homens O amam<br />
tão pouco.<br />
Ao fitar a freira, Ele olha o gênero<br />
humano; Jesus tem pena dela como<br />
tem pena de todos os homens. E<br />
cada pessoa que olhasse para Nosso<br />
Senhor, contemplasse a Alma d’Ele,<br />
teria uma compreensão perfeita de<br />
que o Redentor a ama de tal maneira<br />
a esgotar todo o desejo de ser amado<br />
que num homem possa haver.<br />
Naturalmente isso não é assim<br />
com a amizade terrena, na qual há<br />
Luis C.R. Abreu<br />
7
Dona Lucilia<br />
apenas uma magra analogia com isso.<br />
Mas na amizade entre Deus e os<br />
homens isto é assim. O Criador olha<br />
para os homens com esse transbordamento<br />
de afeto, que eles queriam<br />
receber da parte de todas as pessoas<br />
que os conhecem, e viver inundados<br />
desse afeto.<br />
Assim é que eu via como Dona<br />
Lucilia amava o Sagrado Coração de<br />
Jesus.<br />
Muitas vezes eu ia assistir com ela<br />
à Missa na Igreja do Coração de Jesus;<br />
ajoelhava-me ao seu lado, é natural.<br />
Eu percebia que mamãe rezava<br />
para Ele sem estar olhando para<br />
cima, pois seria uma coisa sem muito<br />
propósito, mas tendo em mente<br />
aquele quadro e a realidade representada<br />
por ele.<br />
Quer dizer, a serenidade, a elevação,<br />
a tranquilidade, a santidade superior<br />
a qualquer louvor, mas também<br />
a compaixão, a paciência, o desejo<br />
de favorecer, de afagar a cada<br />
pessoa, que havia em Nosso Senhor,<br />
fazendo com que Ele, por assim dizer,<br />
absorvesse cada criatura humana.<br />
Tocante comparação empregada<br />
por Nosso Senhor<br />
Vemos no Evangelho uma expressão<br />
disso que considero lindíssima.<br />
Nosso Senhor, acompanhado pelos<br />
Apóstolos, caminha ao Horto das<br />
Oliveiras, onde Ele ia iniciar a sua<br />
Paixão que O conduziria até à Morte.<br />
Em certo ponto, onde se via muito<br />
bem a cidade e o Templo de Jerusalém,<br />
pararam e os discípulos começaram<br />
a comentar entre si como<br />
era bonito o Templo. Jesus Se pôs a<br />
chorar e eles perguntaram por quê.<br />
E aí vem a expressão tocante.<br />
Ele disse: “Jerusalém, Jerusalém,<br />
quantas vezes Eu quis reunir os teus<br />
filhos como a galinha faz com seus<br />
pintainhos, mas tu não o quiseste!<br />
Agora vai cair sobre ti a desgraça, o<br />
castigo” (cf. Lc 13, 34).<br />
Essa comparação empregada por<br />
Nosso Senhor, mostrando que Ele<br />
nos ama como uma galinha preza os<br />
seus pintainhos e os quer receber debaixo<br />
de suas asas, é tocante.<br />
Não há amizade humana que se<br />
exprima nesses termos; nela não<br />
acreditaríamos. É grande demais para<br />
o coração do homem, mas não para<br />
o Coração de Jesus.<br />
Então, o mais vil, o mais pecador,<br />
o mais inferior dos homens, sabendo<br />
que ele é amado assim por Nosso Senhor,<br />
fica agradecidíssimo, com vontade<br />
de estar junto com Ele o tempo<br />
inteiro para se regenerar, para se<br />
tornar como Jesus e amá-Lo como<br />
um reflexo do amor com que o Redentor<br />
o ama.<br />
Aí se dá aquela junção de almas<br />
propriamente ideal, a qual faz com<br />
que os homens possam sentir tranquilidade<br />
e esperança.<br />
Juan R. Cuadra (CC3.0)<br />
Maquete do Templo de Jerusalém - Museu de Israel<br />
8
A alma de Dona Lucilia<br />
era uma espécie de reflexo<br />
de Nosso Senhor<br />
Eu via que Dona Lucilia tinha isso<br />
em alto grau. Pela Revelação, mamãe<br />
conhecia com perfeição como<br />
era o amor de Nosso Senhor a ela,<br />
e o retribuía com um amor parecido<br />
com o amor d’Ele. De maneira tal<br />
que ela possuía uma confiança sem<br />
limites na misericórdia d’Ele, pedia-<br />
-Lhe perdão por si mesma, porque<br />
toda criatura humana tem defeitos,<br />
e também por aqueles a quem ela<br />
amava, e até por aqueles que não a<br />
amavam, mas a quem ela queria fazer<br />
bem.<br />
Isto tudo fazia da alma dela uma<br />
espécie de reflexo de Nosso Senhor<br />
de uma beleza incomparável, propiciando<br />
amar a Jesus apaixonadamente,<br />
quer dizer, acima de tudo,<br />
sem comparação com nada, mas de<br />
um modo a absorver por inteiro a<br />
nossa capacidade de adorar.<br />
Isto se dava em Dona Lucilia de<br />
tal maneira que, olhando para ela<br />
e percebendo como adorava Nosso<br />
Senhor, se compreendia como Ele<br />
era digno de toda a adoração, e se<br />
passava a participar da adoração dela<br />
para com Ele.<br />
Daí vinha também o fato de que<br />
ela O amava mais do que tudo no<br />
mundo, e O colocava acima de qualquer<br />
coisa a que pudesse querer bem.<br />
Se fosse para uma<br />
Cruzada, <strong>Plinio</strong> seria<br />
o primeiro a partir<br />
Mamãe tinha um irmão que, em<br />
certo momento da carreira política<br />
dele, ocupou o cargo de Secretário<br />
de Estado em São Paulo. Era o primeiro<br />
cargo depois do Governador<br />
do Estado.<br />
Quando ele era Secretário de Estado,<br />
arrebentou uma Revolução no<br />
Brasil e o Governo começou a convocar<br />
os jovens para se inscreverem,<br />
Divino Cativo - Santuário de Nossa Senhora da Cabeça, Andújar, Espanha<br />
a fim de lutar contra os revolucionários.<br />
Nesse período ele foi à casa da<br />
mãe dele, onde nós morávamos, para<br />
o efeito comum de ver a mãe e a<br />
irmã. Terminada a visita, ele saiu e<br />
minha mãe e eu fomos acompanhá-<br />
-lo até à porta da casa.<br />
Quando chegamos junto à porta,<br />
ele – um homem de boa altura, enquanto<br />
ela era baixa – serviu-se disso<br />
e, notando que ela não estava percebendo,<br />
deu-me uma piscada como<br />
quem diz: “Eu vou me divertir gracejando<br />
um pouco com ela, e vamos<br />
ver o que ela vai fazer.”<br />
Disse a ela:<br />
— Lucilia, você agora precisa preparar-se<br />
para um grande sacrifício,<br />
porque o Governo está convocando<br />
todos os jovens para irem à luta,<br />
visando a manutenção do Governo<br />
contra os revolucionários; portanto,<br />
o <strong>Plinio</strong> terá que ir também. Você vai<br />
ter muito sofrimento com isso, mas<br />
não tem remédio.<br />
Flávio Lourenço<br />
9
Dona Lucilia<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
<strong>Dr</strong>. Gabriel Ribeiro dos Santos<br />
No que ele dizia havia uma espécie<br />
de provocação jocosa, de brincadeira,<br />
porque ela possuía um filho<br />
só e ele tinha uns cinco ou seis. Ele<br />
não falava em mandar os filhos dele,<br />
mas em mandar o dela.<br />
Era para agastá-la. Depois, ele<br />
era membro do Governo e os seus filhos<br />
tinham mais obrigação do que<br />
um simples sobrinho.<br />
Ele acrescentou:<br />
— <strong>Plinio</strong> vai ter que partir e você<br />
se prepare para fazer o sacrifício de<br />
seu filho.<br />
Ela não percebeu que ele estivesse<br />
gracejando. Então, levantou a cabeça<br />
e disse:<br />
— Gabriel, isto nunca. Sacrificar<br />
meu filho por essas revoluções de<br />
políticos em que não há nenhum interesse<br />
para ninguém, só para vocês<br />
políticos, isto eu não faço.<br />
Eu quieto porque sabia que ele<br />
estava brincando com ela e depois ia<br />
desfazer a brincadeira.<br />
Mamãe ficou toda entesada, quase<br />
até mais alta, e afirmou:<br />
— Você esteja certo de que não<br />
farei.<br />
— Olhe, eu estou brincando, falando<br />
isso só para amolar você. Mas<br />
agora me responda o seguinte: se o<br />
Papa convocasse o <strong>Plinio</strong> para ir para<br />
uma Cruzada você o mandaria?<br />
— Aí é tudo diferente, o primeiro<br />
a partir tinha que ser ele.<br />
Meio entredentes, para ela não<br />
ouvir, ele – que não era católico praticante<br />
– disse-me:<br />
— Veja a força da Religião! O que<br />
a política não consegue de uma mãe<br />
de nenhum modo, a Religião querendo<br />
obtém.<br />
Aí ele agradou um pouquinho a<br />
ela, todos demos risada e ele foi embora.<br />
Mas o espírito dela se mostrou<br />
bem claro. Se era para o Sagrado<br />
Coração de Jesus, para Nossa Senhora,<br />
para a Santa Igreja Católica,<br />
Esposa Mística de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, tudo. Inclusive um filho a<br />
quem ela queria muito bem: vá para<br />
a luta! Isto é amar apaixonadamente.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
5/3/1994)<br />
10
Gabriel K.<br />
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Tipos humanos<br />
revolucionários<br />
No cerne da metamorfose do processo revolucionário encontrase<br />
a revolução nas tendências que, desordenadas, começam por<br />
modificar os costumes. Fazendo clarividentes explicitações sobre<br />
os tipos humanos produzidos pela Revolução, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> estabelece<br />
um nexo entre o indivíduo e a sociedade, e demonstra como toda<br />
uma civilização agiu como se fosse uma imensa cabeça humana.<br />
Estudemos, agora, a época<br />
que poderíamos chamar<br />
“era mística” da Revolução.<br />
Os pragmáticos do fim da Idade<br />
Média começaram a gostar demais<br />
dos prazeres lícitos: muitas comedorias,<br />
bailados regionais, enfei-<br />
tes em todas as coisas. O próprio estilo<br />
gótico, que era muito austero,<br />
começou a se tornar florido. Tudo<br />
principia a sorrir e um desejo imoderado<br />
de prazer, embora ainda honesto,<br />
começa a dominar o Ocidente<br />
cristão.<br />
Sentimentalismo psíquico<br />
Vemos, assim, como este processo<br />
é exatamente o que se dá com<br />
uma pessoa humana. Uma vez dado<br />
o primeiro passo, a Revolução logo<br />
atinge o segundo grau de corrup-<br />
11
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Gabriel K.<br />
ção, em que os espíritos, abandonando<br />
um pouco a ideia do Céu, começam<br />
a conceber de um modo mais ou<br />
menos laico certas ideias em voga na<br />
Idade Média.<br />
Assim, por exemplo, a ideia de<br />
honra. É a época em que o cavaleiro,<br />
pela honra de sua dama, faz um duelo,<br />
em oposição ao cavaleiro medieval<br />
antigo, bastante sagaz para não<br />
duelar pela honra de uma dama.<br />
Começam também os torneios;<br />
os menestréis e os trovadores dão<br />
um ar de amor e de honra à sociedade,<br />
cheia ainda de misticismo, mas<br />
de um misticismo laico. A dama medieval<br />
desta época ainda estava muito<br />
longe da dama frívola dos séculos<br />
que se seguiram; era quase régia. À<br />
noite, quando a Lua iluminava a torre<br />
do castelo, ela se dirigia a uma pequena<br />
sacada para ouvir, vinda de<br />
longe, uma canção interpretada ao<br />
som de um alaúde; terminado o canto,<br />
ela, com suas tranças louras, sorri<br />
e joga uma flor.<br />
Tudo isto termina numa explosão<br />
de sentimentalismo psíquico. Não<br />
aparece ainda o sentimentalismo físico:<br />
a sensualidade está em gestação,<br />
já contida neste estado de espírito,<br />
mas não aflorou à superfície.<br />
Ódio à lógica<br />
Neste período fala-se ainda no<br />
amor inspirado nas virtudes. A minha<br />
dama, dizem, é a mais pura, a<br />
mais bondosa, a mais caritativa, a<br />
mais piedosa. Aparece,<br />
por outro lado,<br />
a ideia da beleza,<br />
mas de uma beleza<br />
que é mais harmonia<br />
dos traços físicos,<br />
espelho apenas, e<br />
em certos casos, da beleza<br />
moral.<br />
Entretanto, como não poderia<br />
deixar de ocorrer, a sensualidade<br />
começa a se fazer notar.<br />
As canções trovadorescas do<br />
tempo, sob o pretexto de detalhar<br />
a beleza, fazem o elogio<br />
dos olhos, da tez, dos cabelos,<br />
e, finalmente, do aspecto<br />
físico. Compreende-<br />
-se facilmente a que abismos<br />
isto conduz. É a sensualidade<br />
que principia<br />
a nascer dentro dos invólucros<br />
do sentimentalismo.<br />
Com isto a Revolução A começa<br />
a afastar-se do plano lógico. O<br />
homem sentimental, e muito mais<br />
do que ele o homem sensual, não<br />
gosta da lógica. Esta lhe parece fria,<br />
dura, inclemente. Cada palavra sentimental<br />
é para ele como um acorde<br />
musical; cada argumento lógico uma<br />
pancada de martelo dada num prego<br />
que penetra em sua cabeça. Ele<br />
detesta a lógica e, consequentemente,<br />
começa a engendrar sistemas filosóficos<br />
que a deturpam e corrompem.<br />
É o início da decadência da Escolástica<br />
e do aparecimento de uma<br />
filosofia pseudoescolástica. Inicia-se<br />
a revolta e com ela a preparação do<br />
terreno para outra era da revolução<br />
tendenciosa.<br />
O fidalgo da Renascença<br />
Passamos, então, da era mística<br />
para a era heroica da Revolução, onde<br />
vamos encontrar o fidalgo da Renascença,<br />
tão diferente do fidalgo<br />
medieval.<br />
O fidalgo da Idade Média é uma<br />
espécie quase sublime de cavaleiro:<br />
vive envolto num misticismo católico,<br />
muito distinto daquele que encontramos<br />
no fim dessa época histórica;<br />
está embebido por toda uma<br />
visão sobrenatural da Cavalaria e de<br />
sua missão divina.<br />
Na Renascença, pelo contrário,<br />
o fidalgo nada mais tem de místico:<br />
é um homem – mais do que isto –,<br />
um super-homem heroico, olímpico,<br />
clássico, tem todas as paixões dominadas.<br />
Belo, inteligente, culto, dança<br />
admiravelmente, raciocina maravilhosamente,<br />
manda, governa e guerreia<br />
como ninguém. Bailarino, estadista,<br />
guerreiro e, sobretudo, artista,<br />
gosta da beleza em todas as suas formas,<br />
do esplendor da vida e de gozá-la<br />
inteiramente. Tem riso largo e<br />
distinto, e olhar dominador que se<br />
estende sobre os outros como uma<br />
montanha que domina toda a paisagem<br />
que se lhe estende aos pés.<br />
O fidalgo da era heroica tem a sua<br />
mais alta personificação naquele que<br />
foi o símbolo de toda uma época histórica:<br />
Luís XIV. Brilhante, nobre<br />
por excelência, dominador, distinto,<br />
com um só olhar ele fulminava, com<br />
um só sorriso encantava e premiava,<br />
com uma só palavra fazia com que<br />
12<br />
Rei Wladyslaw<br />
Jagiello - Cracóvia
os exércitos se deslocassem. Apenas<br />
a sua presença criava um ambiente.<br />
Teve artistas para que construíssem<br />
em torno de si toda uma civilização.<br />
Jardins, tapeçarias, espelhos,<br />
palácios, músicas, danças, tecidos,<br />
homens, tudo foi moldura para a sua<br />
pessoa. Em uma palavra, um verdadeiro<br />
super-homem dominando a todos<br />
e a tudo, mas tendo já longe de<br />
si o Céu, para o qual os homens não<br />
mais voltavam os olhos, a não ser para<br />
o céu – o firmamento – a fim de<br />
fazer estudos de astronomia...<br />
wartburg.edu (CC3.0)<br />
O homem segundo o espírito<br />
e o estilo de Luís XIV<br />
Esta espécie de epicurismo bem<br />
se exprime num episódio da história<br />
de Luís XIV, em que a França atravessava<br />
um longo período de paz. Os<br />
húngaros foram atacados pelos turcos.<br />
E como os franceses do tempo<br />
gostavam de combater – e a França<br />
vivia a sua grande época de glória<br />
militar –, um destacamento de<br />
nobres franceses, chefiados por um<br />
príncipe da Casa Real, pediu licença<br />
ao rei para ir combater na Hungria.<br />
Ao chegar o dia da batalha contra<br />
os turcos, os franceses se apresentam<br />
em ordem de combate: cabeleiras<br />
frisadas e empoadas, e elegantes<br />
em seus cavalos. Os turcos,<br />
que os olham de longe, veem aquela<br />
carga avançar e pensam que se trata<br />
de um exército de moças; não lhe<br />
dão importância. E aquelas “moças”<br />
se abatem sobre os turcos como um<br />
turbilhão e os derrotam no primeiro<br />
ataque.<br />
Era bem o homem do tempo.<br />
Quase tão gracioso como uma dama,<br />
quase tão heroico como uma figura<br />
mitológica, guerreiro e bailarino<br />
ao mesmo tempo, e capaz, além<br />
do mais, de conversar como um letrado.<br />
Era o homem segundo o espírito<br />
e o estilo de Luís XIV.<br />
Neste homem, entretanto, o sentimentalismo<br />
havia evoluído. Achava-<br />
Luís XIV - Museu do Louvre, Paris<br />
-se já que a impureza era uma glória<br />
para o homem, e que conquistar<br />
senhoras era tão glorioso como<br />
conquistar cidades. E isto a tal ponto<br />
que não mais se compreendia o<br />
verdadeiro conquistador de cidades<br />
sem que também fosse um conquistador<br />
de honras femininas.<br />
O Luís XIV das dignidades e das<br />
solenidades foi também o das concubinas.<br />
E todos os fidalgos lhe seguiram<br />
o exemplo, numa época em que<br />
a vida já tinha um caráter nitidamente<br />
sensual, e em que o amor, atrás de<br />
um modo de ser aristocrático e polido,<br />
na verdade encobria uma grande<br />
impureza.<br />
Bailarinos adamados e frágeis<br />
Nas vésperas da Revolução Francesa<br />
isto chegou a tal ponto que marido<br />
e mulher, na maior parte da alta<br />
aristocracia, casavam-se sem amor,<br />
por dinheiro, e levavam vida separada.<br />
Quando um dos esposos dava<br />
uma recepção, convidava o outro<br />
cônjuge. Os convivas ao entrar eram<br />
anunciados por alabardeiros que, à<br />
chegada do cônjuge convidado, diziam<br />
apenas Madame ou Monsieur,<br />
13
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
9gFrdyY6xDaHgw (CC3.0)<br />
azul muito diluído, verde pistache.<br />
O ambiente era o das músicas muito<br />
delicadas. E em tudo isto a sensibilidade<br />
solta começava a rugir num<br />
amor livre desbragado. Esta situação<br />
prolongou-se até estourar a grande<br />
catástrofe, a Revolução Francesa.<br />
Do romântico ao dandy,<br />
o homem utilitário<br />
o qual ou a qual entrava como se fosse<br />
um hóspede. Marido e mulher<br />
irem juntos ao teatro era imensamente<br />
ridículo; manifestarem amor<br />
recíproco parecia grotesco. Tornava-<br />
-se necessário levar uma vida em que<br />
se tivesse a impressão de que o casamento<br />
era um preconceito superado,<br />
antigo e ridículo.<br />
Mas após esse período produziu-<br />
-se um deslocamento. Do guerreiro-<br />
-bailarino passou-se ao simples bailarino;<br />
por mais surpreendente que<br />
pareça, este derrotou o guerreiro.<br />
Na época de Luís XIV, o combaten-<br />
Luís XVI - Palácio de Versailles<br />
te era bailarino e o bailarino, combatente.<br />
Ao tempo de Luís XVI, os<br />
nobres eram apenas bailarinos, adamados,<br />
frágeis, usavam grandes saltos<br />
vermelhos, lencinho na mão, perfumes,<br />
ar encantador, anéis, rendas<br />
e berloques. Em batalhas, em luta,<br />
nem se pensava; não mais havia espírito<br />
de combatividade.<br />
Do lado afetivo, esse homem via<br />
suas relações sob a forma de uma espontaneidade<br />
encantadora, era risonho<br />
e gentil, gostava de moças risonhas<br />
e gentis. O colorido utilizado<br />
era sempre cor de rosa muito claro,<br />
E passamos, no século XIX, da<br />
era heroica para a era humana da<br />
Revolução. O teatro, por exemplo,<br />
se modifica. Aos personagens do teatro<br />
clássico, sempre hierático, no<br />
estilo de Racine 1 , sucedem-se os românticos.<br />
Mendigos e aleijados entram<br />
em cena. São as peças de um<br />
Victor Hugo 2 , repletas de rugidos,<br />
de paixões desbragadas e de crimes;<br />
é toda uma explosão da sensualidade<br />
humana que vai crescendo e aflora<br />
no teatro e na literatura. O crime,<br />
o concubinato, o incesto e as piores<br />
paixões humanas são apresentados<br />
com colorido, indispensável para dar<br />
vivo interesse às cenas.<br />
E, o que é pior, isto se torna realidade<br />
na vida. O crime aparece claramente<br />
sem os invólucros de outrora,<br />
e começa a se tornar dominador.<br />
Nascem daí diferentes tipos humanos,<br />
no período que vai desde<br />
1850 até nossos dias. O primeiro deles<br />
é o dandy.<br />
Chateaubriand 3 compara o elegante<br />
do romantismo com o de seu<br />
tempo. O romântico apresentava-se<br />
cuidadosamente mal vestido, trajando<br />
roupa muito boa e bem cortada<br />
em tristonho desalinho, cabelo solto<br />
ao vento e um ar infeliz; era um<br />
homem que procurava uma felicidade<br />
perdida. Em geral, era um tanto<br />
doente e até ficava bem ser ligeiramente<br />
tuberculoso; tossia um pouco<br />
e andava tristonho.<br />
Depois dele aparece um tipo diferente,<br />
que a Chateaubriand horripila:<br />
o dandy inglês. É o homem oposto<br />
ao romântico. Passa muito bem,<br />
14
goza de esplêndida saúde, sempre<br />
bem penteado, bem vestido, rico e<br />
não querendo saber de tristezas. A<br />
alegria é que lhe embeleza a vida, a<br />
qual se obtém com o dinheiro. Logo,<br />
o importante são o dinheiro e os<br />
negócios. Assim, boa saúde, vida cômoda,<br />
gargalhadas, dança e ouro caracterizam<br />
a nova época; é o homem<br />
utilitário.<br />
O bilontra, o “almofadinha”,<br />
o “tubarão”,<br />
o homem mecânico<br />
Ao lado do dandy surge o tipo<br />
burguês, que mais uma vez encontrou<br />
num membro da Casa Real da<br />
França a sua expressão: o Rei Luís<br />
Felipe, que passou para a História<br />
com o título de “rei guarda-chuva”.<br />
É tipicamente o burguês, e não<br />
o dandy. Este tem muito de estouvado<br />
e de aristocrático, enquanto que<br />
o burguês é gorducho, bem instalado<br />
na vida, sólido, com roupas resistentes,<br />
realista, não se ocupa com<br />
Literatura nem com Política, e muito<br />
menos com ideias, só se interessa<br />
por dinheiro, economiza e acumula.<br />
Sua casa é grande e confortável, tudo<br />
é sólido e estável, possui grandes<br />
propriedades no interior, explora estradas<br />
de ferro. Começa a fazer negócios<br />
na Ásia e na África, que lhe<br />
dão muito dinheiro.<br />
Há, por outro lado, uma espécie<br />
de genealogia pela qual o dandy do<br />
tempo em que Chateaubriand era<br />
velho deu num outro tipo: o bilontra.<br />
Este era sucessor do dandy ao estilo<br />
francês: cabelo cheio de pomada, bigode,<br />
monóculo preso com uma fita<br />
de veludo, polainas com feltro, bengala<br />
e cintura bem apertada. Conhecia<br />
todas as artes de salão, bem mais<br />
negocista que seu antecessor, porém<br />
muito mais pobre, mesmo porque a<br />
vida de sociedade tornara-se cada<br />
vez mais ruinosa. Sabia, entretanto,<br />
viver de expedientes. O bilontra daquele<br />
tempo deu no “almofadinha”<br />
Rei Luís Felipe - Palácio de Versailles<br />
de 1920, o qual por sua vez produziu<br />
o grã-fino bem aprumado.<br />
O homem de negócios também<br />
teve sua genealogia. O homo economicus<br />
do século XIX deu no “tubarão”<br />
de hoje. Por sua vez, os que naquele<br />
tempo não eram nem uma coisa<br />
nem outra, o político, o funcionário<br />
público ou o pequeno burguês<br />
deram no robot de nossos dias, o homem<br />
mecânico, a quem se ordena e<br />
ele faz.<br />
Esta é a evolução que, no plano<br />
A, nos levou do cavaleiro andante,<br />
ainda com a cabeça cheia de quimeras<br />
de uma cavalaria laicizada e a caminho<br />
da imoralidade, até o playboy<br />
do século XX.<br />
É muito importante notar que a<br />
história dessa decadência poderia<br />
ser a história de um homem. Muitos<br />
decaíram assim, começando como<br />
bastante bons católicos, para depois<br />
passar a um sentimentalismo<br />
que os levou a amarem damas nas<br />
nuvens do mais puro amor. Deste estágio<br />
passaram a gozadores da vida,<br />
conservando, no entanto, certa linha<br />
e certo estilo, que também vieram a<br />
perder até chegarem à mais complewww.photo.rmn.fr<br />
(CC3.0)<br />
15
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
ta degradação. É a evolução de um<br />
homem em alguns anos, e que a sociedade<br />
levou alguns séculos para fazer.<br />
Mas o que chama a atenção, e<br />
estabelece um nexo entre o indivíduo<br />
e a sociedade, é que os itinerários<br />
foram os mesmos e os processos<br />
os mesmos; toda uma civilização<br />
agiu como se fosse uma imensa cabeça<br />
humana.<br />
Direita, centro e esquerda<br />
Passemos a seguir ao que se poderia<br />
chamar o princípio da dialética<br />
interna do homem. Já vimos que há<br />
dentro de cada homem uma cathédrale<br />
engloutie – sua luz primordial 4<br />
submersa – e o seu vício capital. Esses<br />
dois polos funcionam em nós como<br />
duas forças num jogo dialético.<br />
Também na sociedade humana<br />
sempre houve, ao longo dessa evolução,<br />
correntes que representaram<br />
a cathédrale engloutie, como os santos<br />
e as pessoas virtuosas, que a graça<br />
até hoje continua a suscitar. Existiu<br />
ainda uma parcela imediatista da<br />
sociedade humana representada pelo<br />
pragmatista. E, por fim, não faltou<br />
uma parte péssima, que representou<br />
o vício capital.<br />
Disto se conclui que a sociedade<br />
humana esteve sempre dividida entre<br />
direita, centro e esquerda. Na direita<br />
os elementos da Contra-Revolução<br />
A, ao centro os pragmáticos e<br />
à esquerda aqueles que promovem<br />
a Revolução A. Essas três correntes<br />
existiram e lutaram entre si de modo<br />
semelhante às forças psicológicas<br />
que pugnam dentro de cada homem.<br />
Lutaram de acordo com aquilo que<br />
poderíamos chamar o princípio dos<br />
vetores e das mobilizações.<br />
Se considerarmos na sociedade humana<br />
uma força revolucionária A no<br />
terreno tendencioso e sofístico, e, de<br />
outro lado, uma força contrarrevolucionária<br />
A no mesmo terreno, teremos<br />
que, embora alguns permaneçam<br />
nas duas posições extremas, a maior<br />
parte das pessoas fica no centro.<br />
Como conduzir o<br />
homem pragmático<br />
Assim, os homens sensuais do século<br />
XIII não tiveram como consequência<br />
imediata o playboy do século<br />
XX, mas por uma trajetória oblíqua<br />
acabaram por chegar até lá. Qual seria<br />
então o modo de dirigir uma sociedade<br />
assim dividida?<br />
Imaginemos duas pessoas puxando,<br />
cada qual para seu lado, as extremidades<br />
de uma corda; aquele que<br />
deixar de puxá-la perderá a corda; é<br />
preciso puxar cada vez mais.<br />
Aplicando o mesmo princípio num<br />
ambiente onde há uma esquerda muito<br />
extremada, não devemos procurar<br />
agradá-la e dizer que tem uma parte<br />
de razão; pelo contrário, precisamos<br />
afirmar alto e bom<br />
som que seus adeptos<br />
estão totalmente errados.<br />
O homem pragmático,<br />
que ouve isto<br />
levado pelo jogo das<br />
forças, dirá que somos<br />
insuportáveis e que seria<br />
necessário apedrejar-nos.<br />
Mas, em relação<br />
ao esquerdista extremado,<br />
afirmará: “Isto<br />
também não.” Assim,<br />
ele não caminhou<br />
para a esquerda. É um<br />
verdadeiro cego, pois<br />
não percebe, apesar<br />
de nos achar um horror,<br />
ter sido o solavanco<br />
que lhe demos que<br />
o levou a ver exageros<br />
no comunismo. Antes<br />
era favorável à liberdade<br />
para os comunistas<br />
e simpatizava com<br />
o socialismo moderado,<br />
mas, pelo princípio<br />
dos vetores, como<br />
a força com que o empurramos<br />
foi hercúlea,<br />
ele se deslocou voltando<br />
um pouco atrás.<br />
Concluímos, assim, que há uma<br />
importante regra da Contra-Revolução<br />
segundo a qual, sempre que quisermos<br />
conduzir o homem pragmático<br />
para um ponto, devemos puxá-lo<br />
vigorosamente. Ele virá protestando<br />
atrás de nós, mas virá.<br />
Um fraco rei faz<br />
fraca a forte gente<br />
Há, entretanto, na origem da Revolução,<br />
um ponto misterioso que é<br />
preciso assinalar. Embora o que determinou<br />
a combustibilidade da floresta<br />
foi a falta de líderes e apóstolos<br />
santos, seria um exagero atribuir toda<br />
a culpa à infidelidade de alguns.<br />
Se de um lado é verdade que o<br />
apóstolo ou o líder santo faz um po-<br />
São Luís IX - Santuário Witterschneekreuz,<br />
Löffingen, Alemanha<br />
Andreas Praefcke (CC3.0)<br />
16
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1964<br />
vo santo, não é menos verdade que<br />
quando o povo não corresponde à<br />
graça de ter um chefe santo, Deus<br />
pode reduzir suas graças a um nível<br />
mínimo. Assim, é bem possível que<br />
a culpa inicial tenha sido de todo o<br />
povo. É um mistério que não poderemos<br />
desvendar, mas que devemos<br />
saber colocar em seus termos bem<br />
claros. Não sabemos de quem foi a<br />
primeira culpa.<br />
Há o célebre verso de Camões no<br />
qual está dito que um fraco rei faz<br />
fraca a forte gente. Quando vemos<br />
um povo que decai juntamente com<br />
o seu rei, é o caso de se perguntar<br />
quem deu o primeiro passo: o rei ou<br />
o povo. Na Idade Média, teria sido<br />
o povo que não correspondeu a reis<br />
como São Luís e São Fernando, e<br />
Deus não mais lhe enviou<br />
Santos que o governassem,<br />
mandando<br />
em seu lugar reis meninos?<br />
Ou, pelo contrário,<br />
teria sido um<br />
fraco rei que fez fraca<br />
a forte gente? Deus o<br />
sabe.<br />
Nações-chave<br />
Para concluir a análise<br />
histórica da Revolução<br />
A tendenciosa,<br />
olhemos um pouco<br />
para o passado e<br />
para o futuro, examinando<br />
mais uma vez o<br />
problema das nações-<br />
-chave.<br />
Sabemos que Deus<br />
criou uma nação-chave<br />
no Antigo Testamento:<br />
Israel. Haveria<br />
também no Novo Testamento<br />
alguma nação-chave?<br />
Com toda<br />
certeza podemos<br />
responder afirmativamente.<br />
Porém é necessário<br />
distingui-las<br />
em dois graus. No primeiro,<br />
diríamos que as nações-chave<br />
do Novo Testamento são os povos<br />
cristãos. Mas – e aqui entramos<br />
no segundo grau – dentro dos povos<br />
cristãos haverá alguma nação-chave?<br />
São Pio X diz, numa de suas encíclicas,<br />
que Deus criou uma nação-<br />
-chave, um povo eleito, entre os cristãos:<br />
a nação francesa. É ela que, naturalmente,<br />
influencia o mundo inteiro.<br />
No campo das virtudes, por<br />
exemplo, quando são praticadas pelos<br />
franceses irradiam-se pelo mundo<br />
inteiro com grande facilidade.<br />
Haverá culto mais difundido que o<br />
de Santa Teresinha do Menino Jesus?<br />
Diante disto põe-se um problema<br />
penoso e pungente: Esta nação-chave<br />
chegou ao fim de seus dias com a<br />
tristeza bíblica de nação condenada,<br />
como atualmente se encontra. Haverá<br />
uma esperança para ela?<br />
Quanto à França eu sou como<br />
o judeu em relação ao povo eleito.<br />
Amo o Templo, amo as ruínas do<br />
Templo, e se essas ruínas se desfizerem<br />
em pó, eu amarei o pó que resultou<br />
dessas ruínas.<br />
Devo dizer, pois, que tenho a impressão<br />
de que a França continuará<br />
a ser a nação-chave. Mas assim como<br />
outrora tivemos o Império do<br />
Oriente e o do Ocidente, e na própria<br />
Cristandade havia dois Impérios,<br />
o Bizantino e o Romano-Alemão,<br />
assim também para as nações<br />
antigas teremos, ao lado do Império<br />
francês, o domínio e a hegemonia<br />
cultural de outras nações, profundamente<br />
embebidas daquilo que o<br />
espírito latino e francês tem de melhor,<br />
mas trazendo também consigo<br />
outras seivas.<br />
Estas nações, como todas as nações<br />
eleitas, são capazes de conhecer<br />
as piores misérias, quando não correspondem<br />
à graça de Deus, mas são<br />
também capazes das maiores glórias,<br />
desde que correspondam à sua graça.<br />
A meu ver, estas nações são as<br />
que constituem o mundo ibero-americano.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 1964)<br />
1) Jean Racine (*1639 - †1699), dramaturgo<br />
francês.<br />
2) Victor Hugo (*1802 - †1885), escritor<br />
francês.<br />
3) François-René, Visconde de Chateaubriand<br />
(*1768 - †1848), escritor e político<br />
francês.<br />
4) Expressão cunhada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para<br />
indicar a aspiração existente na alma<br />
de cada pessoa para contemplar a<br />
Deus de um modo próprio. Ver <strong>Revista</strong><br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 54 (setembro de 2002),<br />
p. 4.<br />
17
0AHreKwptST8Jg (CC3.0)<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Hierarquia, esplendor,<br />
nobreza, sacralidade<br />
Catedral de Santo<br />
Estêvão, Viena<br />
Mais de duzentas mil pessoas participaram de uma soleníssima<br />
procissão em honra do Santíssimo Sacramento, em Viena, dois anos<br />
antes da eclosão da I Guerra Mundial. A hierarquia, o esplendor,<br />
a nobreza, a sacralidade que ali se manifestaram fazem bem para<br />
a alma devido à graça divina. Esta proporciona a melhor forma<br />
de felicidade que existe na Terra: a tranquilidade sobrenatural.<br />
Pretendo comentar uma matéria<br />
publicada em 3 de outubro de<br />
1912, na revista semanal para a<br />
infância e adolescência Le Noël – O Natal<br />
–, de Paris. O artigo trata a respeito<br />
do Congresso Eucarístico de Viena,<br />
e da procissão realizada no domingo,<br />
15 de setembro de 1912, portanto dois<br />
anos antes da Primeira Guerra Mundial,<br />
em plena Belle Époque 1 .<br />
Oitenta mil homens,<br />
tendo à frente os portaestandartes<br />
e os músicos<br />
Nota da revista: Transcrevemos a<br />
narração deste triunfo eucarístico da<br />
publicação “A Semana Religiosa”, de<br />
Paris.<br />
Tinha ficado combinado que, em caso<br />
de intempérie, a grande procissão do<br />
domingo não seria realizada, e que tão<br />
somente uma Missa seria celebrada pelo<br />
Legado Papal, na Catedral de Santo Estêvão,<br />
ante o Imperador e toda a corte.<br />
Apesar de tudo, no domingo de<br />
manhã, sem se preocuparem com a<br />
chuva que não cessava de cair, oitenta<br />
mil homens que deviam tomar parte<br />
na procissão estavam fielmente em<br />
seus postos, com estandartes, bandeiras<br />
e música à frente.<br />
Por outro lado, ficamos sabendo<br />
que o Imperador tinha declarado que<br />
era necessário que a procissão fosse<br />
feita custasse o que custasse:<br />
“Os citadinos – disse ele – têm<br />
guarda-chuvas; os camponeses não te-<br />
mem a chuva, e o Santíssimo Sacramento<br />
irá de carro.”<br />
Apesar de sua idade avançada (84<br />
anos), pretendia ele mesmo participar<br />
da procissão.<br />
Às oito horas a tropa já tinha tomado<br />
posição. O cortejo, composto<br />
exclusivamente de homens, saía do<br />
átrio da Catedral de Santo Estêvão,<br />
enquanto cento e cinquenta mil mulheres<br />
e moças estendiam-se por duas<br />
alas desde a catedral até a porta monumental<br />
que dava acesso ao palácio<br />
imperial.<br />
Primeiramente avançam as paróquias<br />
de Viena, em seguida os magnatas<br />
húngaros, os tiroleses em número<br />
de oito mil, os bósnios, os tchecos, os<br />
morávios, os rutenos e os romenos.<br />
18
Famílias de povos reunidas<br />
por uma ligação com<br />
a família imperial<br />
Todos ou quase todos eram povos<br />
que tinham vindo parar sob a coroa<br />
do Império da Áustria-Hungria, não<br />
por conquista militar, mas por casamentos.<br />
Era hábito da família imperial<br />
fazer um verdadeiro jogo de xadrez<br />
para ampliar, por via hereditária<br />
e dinástica, o território do Império.<br />
Por essa forma, por exemplo, embora<br />
o Brasil fosse ainda uma colônia<br />
portuguesa, o casamento do Imperador<br />
D. Pedro I com a Imperatriz<br />
Dona Leopoldina fez-se precisamente<br />
com vistas a lançar um fio<br />
de simpatia e de relações de altíssimo<br />
nível: era a filha do Imperador<br />
da Áustria que casava com o primogênito<br />
do Rei de Portugal, Algarves<br />
e Brasil. Esse casamento se dava por<br />
causa da vantagem de algum dia a<br />
coroa do Brasil, por sucessão hereditária,<br />
acabar nas mãos de um prín-<br />
cipe da Casa d’Áustria. A preocupação<br />
era continuamente essa.<br />
Mas esses povos incorporados assim<br />
não se sentiam vítimas de conquistas,<br />
em que o pé do conquistador<br />
está em cima esmagando o que<br />
se encontra embaixo; eles se sentiam<br />
introduzidos na família de povos,<br />
por ter havido um casamento na dinastia<br />
que governava esse povo com<br />
a austro-húngara. Formavam famílias<br />
de povos reunidas por uma ligação<br />
com a arquifamília, que era então<br />
a família imperial.<br />
De um modo geral, esses povos<br />
possuíam trajes regionais tradicionais<br />
e desfilavam com eles, o que daria<br />
certamente uma beleza deslumbrante<br />
a essa procissão.<br />
Oitenta mil homens para uma população<br />
de antes da Primeira Guerra<br />
Mundial é muita gente, sobretudo<br />
tomando em consideração o fato<br />
de que chovia a cântaros, e o pessoal<br />
provavelmente tocava música a todo<br />
vapor, debaixo da chuva.<br />
O ostensório numa<br />
carruagem conduzida<br />
por oito cavalos<br />
Eis a seguir as delegações estrangeiras:<br />
os franceses, distinguidos pelas<br />
bandeiras tricolores, que três de nossos<br />
compatriotas empunhavam alto e<br />
firmemente debaixo de um verdadeiro<br />
dilúvio; os espanhóis, os italianos, os<br />
ingleses, os alemães, etc.<br />
São onze horas e meia. O clero vai<br />
entrar em cena. Compõe-se de cinco mil<br />
sacerdotes e religiosos ordenados hierarquicamente:<br />
simples padres, curas de<br />
paróquias, monges de todas as Ordens,<br />
cônegos e, encerrando o bloco, duzentos<br />
bispos com capas, mitras e báculos.<br />
Fanfarras de trompetes anunciam o<br />
terceiro cortejo – do Santíssimo Sacramento<br />
–, ao que seguirá o do Imperador-rei.<br />
Na primeira linha estão escudeiros<br />
vestidos de vermelho escarlate; em seguida<br />
militares da corte, com panache<br />
branco, montados em cavalos cinzas<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Cardeal Léon-Adolphe Amette, Arcebispo de Paris, em 1912<br />
19
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
de toute beauté; os dragões e os hussardos.<br />
Ainda um esquadrão de cavalaria e<br />
eis que chegam os cardeais. Cada um<br />
possui sua carruagem particular…<br />
Vejam que coisa bonita! Não vai<br />
uma espécie de ônibus de cardeais.<br />
Cada cardeal tem sua carruagem.<br />
Então aquelas fileiras de cardeais<br />
com bonitas carruagens e o purpurado<br />
ali com a sua corte. É belíssimo!<br />
…e vem acompanhado a pé pelo encarregado<br />
de sua capela, levando seu<br />
crucifixo, seu báculo, o archote ritual e<br />
seu livro de orações. Sua Eminência o<br />
Cardeal Amette vem sentado num admirável<br />
carro com relevos negro e ouro,<br />
atrelado por quatro cavalos. Ele não<br />
sofrerá com a chuva, mas manifesta-se<br />
preocupado pelos outros, e admira esta<br />
multidão que se apressa, desde a aurora,<br />
para honrar o Santíssimo Sacramento.<br />
Fanfarras ressoam, sinos tocam por<br />
toda parte e, precedida por oficiais,<br />
camareiros e do grande marechal da<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1994<br />
corte, a carruagem da coroação de<br />
Maria Teresa, pintada por Rubens, penetra<br />
na Helden Platz, atrelada por oito<br />
cavalos negros. A parte alta é quase<br />
toda de vidro e pode-se ver comodamente<br />
o legado papal, ajoelhado ante<br />
um altar no qual está o ostensório.<br />
Rubens era um desses pintores internacionais<br />
de fama indelével, suas<br />
obras são preciosidades. Essa carruagem<br />
batida pela chuva era pintada por<br />
ele. Pois bem, ela sai em honra do Santíssimo<br />
Sacramento, transformada numa<br />
capela ambulante dentro da qual<br />
está montado um altar com o Santíssimo<br />
Sacramento; e ajoelhado diante do<br />
ostensório o legado papal.<br />
Todos ficaram felizes por<br />
terem honrado a Sagrada<br />
Eucaristia, apesar da chuva<br />
A chuva cessa por um momento e o<br />
Sol deixa entrever alguns pálidos raios.<br />
Todos tiram os chapéus. Muitos caem de<br />
joelhos, sem se preocuparem com a lama.<br />
Aí então, num silêncio dos mais comoventes,<br />
passa o Deus da Eucaristia.<br />
Como Nosso Senhor deve ter abençoado<br />
esses humildes que se inclinam<br />
ante sua passagem, e ouvido os ecos<br />
de sua comovida piedade!<br />
Depois da carruagem de Nosso Senhor,<br />
eis agora a do Imperador.<br />
Numa carruagem atrelada por oito<br />
cavalos brancos, e vestido com um<br />
uniforme azul, Francisco José olha fixamente<br />
o Santíssimo Sacramento,<br />
que ele acompanha. A seu lado está o<br />
arquiduque-herdeiro.<br />
Uma formidável e uníssona ovação<br />
é proclamada por esta imensa multidão,<br />
para acolher o Imperador que<br />
chegava na Helden Platz.<br />
Sentia-se que os cem mil católicos<br />
presentes queriam não somente honrar<br />
o soberano, mas sobretudo agradecer-lhe<br />
pelo exemplo de Fé que ele dava,<br />
e mostrar que todos os corações vibravam<br />
neste instante supremo.<br />
O cortejo termina por uma soberba<br />
cavalgada da guarda montada austríaca,<br />
da guarda montada húngara e<br />
pelas carruagens dos arquiduques. Desenvolve-se<br />
conforme o itinerário prescrito,<br />
mas é impossível celebrar a Missa<br />
onde está montado o altar, e nem<br />
mesmo ser dada a bênção.<br />
Uma feliz ideia é enunciada pelo legado<br />
papal: ele se volta em direção à<br />
multidão perfilada e seu carro percorre<br />
de novo a imensa praça. Por meio da<br />
vidraça da carruagem aparece nitidamente<br />
o prelado levando o ostensório<br />
e benzendo a multidão. Todos ficam<br />
consolados por esta bênção suprema.<br />
Precedendo ou seguindo o Santíssimo<br />
Sacramento, os bispos, os cardeais e<br />
o Imperador entram então na capela do<br />
palácio imperial, o Cardeal-legado celebra<br />
a Santa Missa, à qual assistem piedosamente<br />
o soberano e toda a sua corte.<br />
É uma hora da tarde: a imensa<br />
multidão se dispersa. Estão felizes por<br />
terem honrado a Sagrada Eucaristia,<br />
apesar da hostilidade dos elementos<br />
da natureza. Uma dama austríaca di-<br />
20
Dorotheum (CC3.0)<br />
Imperador Francisco José em sua carruagem.<br />
Em destaque, o Imperador em 1910<br />
zia: “Nosso Senhor quer nos mostrar<br />
que é preciso fazer face às dificuldades<br />
para segui-Lo.” É um pensamento<br />
dos melhores. O Deus da Eucaristia<br />
quis permanecer o Deus escondido,<br />
mas sem dúvida quis receber essas homenagens<br />
dos grandes e dos humildes.<br />
O melhor repouso da<br />
alma é admirar<br />
ra, no perpétuo tédio, na<br />
monotonia inexorável de<br />
certos ambientes contemporâneos,<br />
encontramos a<br />
ação do demônio, pois o<br />
lugar empoeirado, feio, ordinário<br />
é propício para que<br />
o demônio entre e apresente<br />
as tentações dele.<br />
Sabe-se que a tendência hoje<br />
dos psiquiatras e especialistas em<br />
distúrbios nervosos é de não mandar<br />
para os hospícios senão os casos<br />
de pessoas que se tornam fisicamente<br />
agressivas, porque os hospícios estão<br />
tão cheios que não há mais lugar<br />
onde pôr os loucos. Às vezes,<br />
nos perguntamos quem não terá alguma<br />
coisa de loucura hoje em dia.<br />
Mas por quê? Entre outras razões,<br />
porque nunca aparecem cenas como<br />
essas. As pessoas não admiram mais.<br />
A hierarquia, o esplendor, a nobreza,<br />
a sacralidade fazem bem para a alma<br />
devido a uma razão sobrenatural.<br />
São ocasiões de graças. Vimos, pela<br />
leitura, que o Santíssimo Sacramento<br />
as difundiu ali em quantidade para<br />
atrair aquela multidão, que não iria se<br />
não fossem as graças. Com a graça vem<br />
a melhor forma de felicidade que existe<br />
Faço um comentário colateral, mas<br />
que me parece muito oportuno. Não é<br />
verdade que ao ouvirmos esta narração<br />
nos sentimos um pouco mais descansados,<br />
distendidos?<br />
Vemos, assim, o absurdo da civilização<br />
ou daquilo que se poderia chamar<br />
cultura moderna que, sob o pretexto de<br />
promover a igualdade e tornar os caminhos<br />
desimpedidos para todo o mundo,<br />
fazendo as coisas depressa, cria uma<br />
existência ultratensiva a ser vivida por<br />
homens em cujo espírito a admiração<br />
não tem lugar, por viverem num ambiente,<br />
numa cultura, que não procura<br />
levar as pessoas para admiração.<br />
Resultado: não tendo o que admirar,<br />
a pessoa não tem como descansar.<br />
O melhor repouso da alma é<br />
admirar. Ademais, na perpétua feiuna<br />
Terra, e a melhor cura para nervosos:<br />
a tranquilidade sobrenatural.<br />
E enquanto não há isto não adianta<br />
vir com história de querer fazer<br />
uma cura psiquiátrica para uma zona<br />
de um país onde haja muitos gagás.<br />
Ponha o Santíssimo, Nossa Senhora,<br />
o sobrenatural, e os caminhos<br />
se abrem para as soluções. v<br />
(Continua no próximo número)<br />
(Extraído de conferência de<br />
17/8/1994)<br />
1) Do francês: Bela Época. Período entre<br />
1871 e 1914, durante o qual a Europa<br />
experimentou profundas transformações<br />
culturais, dentro de um<br />
clima de alegria e brilho social.<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
21
Flávio Lourenço<br />
C<br />
alendário<br />
São Marcelino<br />
1. São Justino, mártir (†c. 165).<br />
Santo Ínhigo, abade (†c. 1060).<br />
Abade do mosteiro de Oña, perto de<br />
Burgos, Espanha, cuja morte os próprios<br />
judeus e mouros choraram.<br />
2. Santos Marcelino e Pedro, mártires<br />
(†304).<br />
São Nicolau (†1094). Peregrino que<br />
percorria a região da Apúlia, Itália, levando<br />
na mão um Crucifixo e invocando<br />
sem cessar o perdão de Deus.<br />
3. Solenidade do Santíssimo Corpo<br />
e Sangue de Cristo.<br />
dos Santos – ––––––<br />
São Carlos Lwanga e companheiros,<br />
mártires (†1886).<br />
São Lifardo, presbítero (†s. VI). Levou<br />
em Meung-sur-Loire, França, uma<br />
vida eremítica de grande austeridade.<br />
4. Imaculado Coração de Maria.<br />
São Quirino, mártir (†309). Bispo<br />
de Siszeck, na atual Hungria, foi jogado<br />
num rio com uma pedra de moinho<br />
atada ao pescoço.<br />
5. São Bonifácio, bispo e mártir<br />
(†754). Monge proveniente da Inglaterra<br />
enviado pelo Papa Gregório II à Alemanha<br />
para evangelizar. Sendo Bispo<br />
de Mogúncia, foi massacrado pela espada<br />
em Dokkum, atual Holanda.<br />
6. X Domingo do Tempo Comum.<br />
São Norberto, bispo (†1134).<br />
São Marcelino Champagnat, fundador<br />
(†1840). Fundador do Instituto dos<br />
Pequenos Irmãos de Maria (maristas).<br />
7. Santo Antônio Maria Gianelli,<br />
bispo (†1846). Bispo de Bobbio, fundou<br />
a Congregação das Filhas de Maria<br />
Santíssima do Horto. Deu exemplo<br />
de dedicação às necessidades dos<br />
pobres, à salvação das almas e à promoção<br />
da santidade do clero.<br />
8. Santo Efrém, diácono e Doutor<br />
da Igreja (†373).<br />
São Medardo, bispo (†561). Bispo<br />
de Noyon, França, trabalhou com todo<br />
o empenho para converter o povo das<br />
superstições pagãs à doutrina de Cristo.<br />
9. São José de Anchieta, presbítero<br />
(†1597).<br />
Beato Luís Boccardo, presbítero<br />
(†1936). Da Diocese de Turim, fundador<br />
do Instituto das Filhas de Jesus<br />
Rei e Sacerdote, religiosas de vida<br />
contemplativa.<br />
10. São Bogumilo, bispo (†1182).<br />
Bispo de Gniezno, Polônia, que renunciando<br />
à sede episcopal, ali seguiu a vida<br />
eremítica em suprema austeridade.<br />
11. Solenidade do Sagrado Coração<br />
de Jesus.<br />
São Barnabé, Apóstolo.<br />
Beato Estêvão Bandelli, presbítero<br />
(†1450). Da Ordem dos Pregadores<br />
falecido em Saluzzo, Itália. Foi<br />
eminente na pregação e assíduo no<br />
ministério das Confissões.<br />
12. Imaculado Coração de Maria.<br />
Santo Ésquilo de Strängnäs, mártir<br />
(†c. 1080). Natural da Inglaterra,<br />
foi ordenado Bispo por São Sigfredo,<br />
seu mestre. Dedicou-se com empenho<br />
a converter os pagãos, pelos<br />
quais morreu lapidado, na Suécia.<br />
13. XI Domingo do Tempo Comum.<br />
Santo Antônio de Pádua, presbítero<br />
e Doutor da Igreja (†1231).<br />
14. Santo Eliseu, profeta.<br />
Beata Francisca de Paula de Jesus<br />
(†1895). Filha e neta de escravos do<br />
Estado de Minas Gerais, Brasil, que<br />
tendo ficado órfã aos dez anos, dedi-<br />
Samuel Holanda<br />
São Gregório Barbarigo<br />
22
–––––––––––––––––– * Junho * ––––<br />
cou toda a sua vida à oração e ao serviço<br />
dos mais necessitados.<br />
15. Santa Germana, virgem<br />
(†1601). Aceitou todo o gênero de tribulações<br />
com fortaleza de alma e alegria,<br />
até que, aos 22 anos de idade,<br />
descansou em paz em Pibrac, França.<br />
16. São Cecardo, bispo e mártir<br />
(†860). Bispo de Luni e Sarzana, assassinado<br />
por obreiros das pedreiras<br />
de mármore em Carrara, Itália.<br />
17. Beato Filipe Papon, presbítero<br />
e mártir (†1794). Condenado à prisão<br />
numa galera ancorada em Rochefort,<br />
França, depois de ter dado a absolvição<br />
a um companheiro de prisão moribundo,<br />
entregou sua alma a Deus.<br />
18. São Gregório Barbarigo, bispo<br />
(†1697). Bispo de Pádua, Itália, considerado<br />
pacífico para com todos e severo<br />
para consigo.<br />
19. São Romualdo, abade (†1027).<br />
Santos Remígio Isoré e Modesto<br />
Andlauer, mártires (†1900). Presbíteros<br />
da Companhia de Jesus mortos<br />
durante a rebelião dos boxers na província<br />
de Hebei, China.<br />
20. XII Domingo do Tempo Comum.<br />
Beata Margarida Ball, mártir<br />
(†1584). Viúva septuagenária presa e<br />
torturada nas masmorras do Castelo<br />
de Dublin, Irlanda, por ter acolhido<br />
em sua casa sacerdotes perseguidos.<br />
21. São Luís Gonzaga, religioso<br />
(†1591).<br />
São Meveno (ou Mévio), abade<br />
(†s. VI). Tendo nascido no País de<br />
Gales, se recolheu numa floresta da<br />
Bretanha. Fundou na atual comuna<br />
de Saint-Meén-le-Grand, França, o<br />
mosteiro que hoje leva o seu nome.<br />
22. São Paulino de Nola, bispo (†431).<br />
São João Fisher, bispo, e São Tomás<br />
Moro, mártires (†1535).<br />
São Nicetas, bispo (†c. 414). Bispo<br />
de Remesiana, atual Sérvia, evangeli-<br />
zou assiduamente os bárbaros, transformando-os<br />
em ovelhas de Cristo<br />
conduzidas ao redil da paz.<br />
23. São Bílio, bispo e mártir (†c. 914).<br />
Segundo a tradição, foi morto pelos normandos<br />
quando saquearam a cidade de<br />
Vannes, França.<br />
24. Natividade de São João Batista.<br />
São José Yuan Zaide, presbítero<br />
(†1817). Presbítero cruelmente estrangulado<br />
por ódio à Fé na província<br />
chinesa de Sichuan.<br />
25. Beata Maria Lhuillier, virgem<br />
e mártir (†1794). Religiosa das Irmãs<br />
Santa Germana<br />
Hospitaleiras da Misericórdia decapitada<br />
em Laval, França, durante a Revolução<br />
Francesa por sua fidelidade à<br />
Igreja nos votos religiosos.<br />
26. Beato Raimundo Petiniaud de<br />
Jourgnac, presbítero (†1794). Por ser<br />
sacerdote, ficou detido em condições<br />
desumanas num barco ancorado em<br />
Rochefort, França, e ali morreu consumido<br />
pelas chagas e insetos.<br />
27. Solenidade de São Pedro e São<br />
Paulo, Apóstolos. (Transferida do dia 29).<br />
Samuel Holanda<br />
São Meveno<br />
São Cirilo de Alexandria, bispo e<br />
Doutor da Igreja (†444).<br />
Santo Arialdo, diácono e mártir<br />
(†1066). Foi cruelmente atormentado<br />
e morto por dois clérigos, em Milão,<br />
Itália, por se opor tenazmente à simonia<br />
e à depravação.<br />
28. Santo Irineu, bispo e mártir<br />
(†c. 202).<br />
Santa Vicência Gerosa, virgem<br />
(†1847). Religiosa da Lombardia que<br />
fundou, juntamente com Santa Bartolomea<br />
Capitanio, o Instituto das Irmãs<br />
da Caridade de Lovere, Itália.<br />
29. São Cássio, bispo (†558). Bispo<br />
de Narni, Itália, oferecia todos os<br />
dias o Santo Sacrifício todo banhado<br />
em lágrimas e dava em esmolas tudo<br />
o que tinha.<br />
30. Santos Protomártires da Igreja<br />
de Roma (†64).<br />
Santo Otão, bispo (†1139). Bispo<br />
de Bamberg, Alemanha, evangelizou<br />
com grande zelo os pomeranos.<br />
Flávio Lourenço<br />
23
Hagiografia<br />
Santa Clotilde e a<br />
conversão do Rei Clóvis<br />
Enfrentando duríssimas provações com muita Fé e<br />
confiança na Divina Providência, Santa Clotilde conseguiu<br />
a conversão de seu esposo Clóvis, Rei da França. Após a<br />
vitória obtida na Batalha de Tolbiac, ele e três mil de seus<br />
soldados foram batizados por São Remígio, Bispo de Reims.<br />
Mbzt (CC3.0)<br />
Apesar de ser filha dos Reis<br />
de Borgonha, teve Clotilde<br />
uma infância muito triste.<br />
Nascida em torno a 475, em Gundobaldo,<br />
seu tio, obcecado pela ambição,<br />
assassinou os pais de Clotilde,<br />
dois dos irmãos, enclausurou a<br />
irmã mais velha num convento e levou<br />
consigo Clotilde, menina de extraordinária<br />
beleza. Embora vivesse<br />
num ambiente todo ariano, Clotilde<br />
teve a felicidade de receber uma<br />
mestra católica que a educou na Religião<br />
verdadeira. Quanto mais aversão<br />
lhe inspirava a presença do as-<br />
sassino dos pais, tanto mais se entregava<br />
a Deus e à sua divina Mãe.<br />
Capela riquíssima e<br />
culto esplendoroso<br />
Debalde se esforçava por ficar<br />
desconhecida do mundo: rara beleza<br />
e, mais ainda, as belas qualidades<br />
de coração e de espírito da donzela<br />
atraíram a atenção de toda a Borgonha,<br />
que se orgulhava de possuir<br />
uma princesa tão virtuosa.<br />
Pedida em casamento por Clóvis I,<br />
Rei da França, deu consentimento só<br />
24<br />
Retábulo da Basílica de<br />
Santa Clotilde - Paris
depois de muito rezar, e<br />
ainda assim com a condição<br />
do Rei, que ainda era<br />
pagão, deixar-lhe praticar<br />
a Religião cristã. Clóvis<br />
deu palavra de honra de<br />
querer respeitar a Religião<br />
de Clotilde, e assim contraíram<br />
núpcias em 493.<br />
O único desejo de Clotilde<br />
era a conversão do Rei<br />
e do povo ao Catolicismo.<br />
Contando com a influência<br />
do bom exemplo, instalou a<br />
Rainha no palácio uma capela<br />
riquíssima e organizou<br />
o culto do modo mais esplendoroso.<br />
Pessoalmente,<br />
de pontualidade rigorosa<br />
no cumprimento dos deveres<br />
religiosos, sua vida era<br />
de penitência, de caridade<br />
sem precedentes. Deste<br />
modo Clotilde não só alcançou<br />
ser respeitada e amada<br />
no meio dos elementos<br />
mais ou menos hostis à Religião<br />
cristã, mas ainda conseguiu<br />
que o Rei perdesse<br />
os preconceitos em matéria<br />
de religião e se sentisse feliz<br />
em possuir uma esposa virtuosa.<br />
Clotilde não perdia ocasião de<br />
mostrar ao esposo a beleza da Religião<br />
de Cristo. Incessantemente dirigia<br />
preces à misericórdia divina, para<br />
que se compadecesse do Rei e do povo<br />
da França e lhes concedesse a graça<br />
da conversão. Clóvis não era inacessível<br />
aos rogos da esposa, mas não<br />
se animava a abandonar as superstições<br />
do paganismo, receando o desagrado<br />
do povo. Não obstante consentiu<br />
que o primeiro filhinho fosse batizado<br />
com toda a solenidade.<br />
Provações duríssimas<br />
enfrentadas com<br />
confiança em Deus<br />
Clóvis, o Rei dos francos - Coleção<br />
do Palácio de Versailles<br />
ro filho morreu poucos dias depois<br />
de ter recebido o Batismo. Indescritível<br />
era a dor do Rei e o seu coração<br />
encheu-se de rancor contra a esposa,<br />
levantando-lhe as mais duras acusações.<br />
— Vejo na morte de meu filho a<br />
ira dos deuses que, irritados com o<br />
Batismo cristão, assim se vingaram.<br />
Clotilde, com mansidão, respondeu:<br />
— Não menos motivo tenho de<br />
chorar a morte da criança; mas dou<br />
graças a Deus que Se dignou de dar-<br />
-me um filho para recolhê-lo logo ao<br />
seu reino.<br />
Que bela resposta, digna duma<br />
mãe cristã!<br />
Clotilde não desanimou e continuou<br />
a preparar o espírito de Clóvis<br />
para que recebesse a graça do Cristia-<br />
Aprouve a Deus sujeitar a fiel serva<br />
a provações duríssimas. O primeinismo.<br />
Quando deu à luz o<br />
segundo filho, conseguiu<br />
do Rei o consentimento<br />
para o Batismo da criança.<br />
Aconteceu, porém,<br />
que esse segundo menino<br />
também adoeceu gravemente<br />
depois da recepção<br />
do Sacramento. Para Clóvis<br />
já não havia mais dúvida<br />
que era o Sacramento<br />
cristão o causador da morte<br />
do primeiro e da doença<br />
do segundo filho. Alucinado<br />
pela dor, rompeu em<br />
blasfêmia e lançou contra<br />
a esposa os mais graves insultos.<br />
Clotilde sofreu tudo<br />
calada, mas seu amor a<br />
Deus e a confiança na Divina<br />
Providência nenhum<br />
abalo sofreram. Com o intuito<br />
de desagravar a Santa<br />
Religião ultrajada, tomou<br />
a criança doente nos<br />
braços e, de joelhos ante<br />
o crucifixo, ofereceu a<br />
inocência do filhinho pela<br />
conversão do pai. Deus recompensou<br />
essa humildade<br />
e caridade pela repentina<br />
cura do menino.<br />
A alegria e o pasmo de Clóvis, ao<br />
ver o filho são e salvo, eram indescritíveis.<br />
Bendizendo a grandeza e o<br />
poder do Deus dos cristãos, prometeu<br />
aceitar a Fé cristã, promessa cujo<br />
cumprimento, porém, depois protelou,<br />
alegando mil motivos.<br />
François-Louis Dejuinne (CC3.0)<br />
“Se eu lá estivesse com<br />
os meus francos...”<br />
Neste entrementes, veio a guerra<br />
contra os alamanos. Despedindo-se<br />
da mulher, esta lhe disse:<br />
— Não ponhas tua confiança em<br />
teus deuses que nenhum poder têm,<br />
mas confia em Deus Todo-Poderoso<br />
que te dará a vitória sobre teus inimigos.<br />
Lembra-te destas palavras,<br />
quando te achares em perigo.<br />
25
Hagiografia<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Em Tolbiac, travou-se sangrenta<br />
batalha e a vitória pendia para o<br />
lado dos alamanos. Nas fileiras dos<br />
exércitos de Clóvis reinavam já desordens,<br />
e ele mesmo corria risco de<br />
ser aprisionado. Nesta suprema angústia,<br />
Clóvis se lembrou das palavras<br />
que a esposa lhe dissera na despedida<br />
e, olhos e mãos elevadas ao<br />
céu, assim rezou:<br />
“Ó Deus de Clotilde valei-me!<br />
Se me libertardes desse perigo e me<br />
concederdes a vitória, acreditarei em<br />
Vós e a vossa Religião será introduzida<br />
no meu reino.”<br />
Imediatamente as coisas mudaram<br />
de aspecto. Um pânico inexplicável<br />
apoderou-se dos inimigos, que<br />
foram completamente derrotados.<br />
Indescritível foi o júbilo dos francos<br />
e do Rei, que tão evidentemente<br />
acabara de experimentar o poder do<br />
Deus dos cristãos.<br />
Desta vez Clóvis cumpriu a palavra.<br />
Instruído na Doutrina cristã por<br />
São Remígio, pelo mesmo santo bis-<br />
Batismo de Clóvis - Coleção do<br />
Palácio de Versailles<br />
Batalha de Tolbiac - Coleção do Palácio de Versailles<br />
po foi batizado em 496, em Reims, e<br />
com ele três mil francos receberam<br />
o mesmo Sacramento.<br />
As ruas da cidade<br />
ostentavam ornato<br />
pomposo e a catedral<br />
achava-se solenemente<br />
enfeitada.<br />
— É este o reino<br />
dos Céus, santo padre?<br />
– perguntou o<br />
Rei ao transpor o limiar<br />
da catedral.<br />
Quando o bispo<br />
lhe falou da morte<br />
de Cristo na Cruz,<br />
Clóvis respondeu:<br />
— Se eu lá tivesse<br />
estado com os meus<br />
francos, nada Lhe teria<br />
acontecido.<br />
Quando Clóvis se<br />
dirigiu à pia batismal,<br />
São Remígio o<br />
recebeu com estas<br />
palavras:<br />
— Inclina tua cabeça,<br />
altivo sicambro,<br />
e adora o que até hoje perseguiste<br />
e persegue o que até agora<br />
adoraste.<br />
Diz a tradição que, no momento<br />
do Batismo de Clóvis, todo o povo<br />
viu uma pomba branquíssima que<br />
trazia no bico um frasco com os santos<br />
óleos, e um Anjo levava um estandarte<br />
de bordado riquíssimo. O<br />
frasco se conservou até o tempo da<br />
Revolução Francesa, quando foi<br />
quebrado. O lis, desde então o brasão<br />
dos reis de França, é um símbolo<br />
antiquíssimo de origem céltica e significa<br />
fertilidade.<br />
Embora cristão, Clóvis continuou<br />
na carreira de conquistador, dando<br />
muitas provas de um caráter bárbaro<br />
e índole feroz. Morreu na idade<br />
de setenta anos. Clotilde teve muitos<br />
e profundos desgostos com os filhos,<br />
que se guerreavam em lutas fratricidas.<br />
Morreu em 545 e seu corpo<br />
acha-se na Igreja de Santa Genoveva,<br />
em Paris.<br />
v<br />
(Extraído de O Legionário<br />
n. 773, 1/6/1947)<br />
Ary Scheffer (CC3.0)<br />
26
De Maria nunquam satis<br />
Vitória de João III Sobieski, Rei da<br />
Polônia, contra os turcos na Batalha<br />
de Viena - Museu do Vaticano<br />
Jean-Pol GRANDMONT (CC3.0)<br />
Que o Coração de Maria<br />
seja a nossa morada<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> desejaria não somente reclinar a cabeça sobre o Coração<br />
de Maria, mas poder estabelecer lá dentro a sua morada para que,<br />
iluminado nessa luz, virginizado nessa pureza e inflamado nas<br />
chamas dessa caridade, tudo o que ele dissesse fossem palavras<br />
de luz e fogo a brotar da abundância desse Coração inefável.<br />
Coração de Maria, minha esperança!”<br />
era o lema do célebre<br />
João Sobieski, Rei da<br />
Polônia, que nos transes difíceis de<br />
sua vida e do seu reinado ia haurir<br />
no Coração Imaculado de Maria<br />
alento e valor para as dificuldades.<br />
Com este grito de guerra, “Cor Mariæ,<br />
spes mea”, a vibrar-lhe na alma<br />
e a inebriar-lhe o coração, se lançou<br />
ele afoito contra os turcos em 1683,<br />
e pouco depois libertava heroicamente<br />
a cidade de Viena do apertado<br />
cerco muçulmano.<br />
Grito de guerra para uma<br />
Cruzada invencível<br />
“Coração de Maria, nossa esperança!”<br />
é o grito de guerra com que<br />
dum recanto ao outro da Terra te-<br />
mos que convocar todas as almas de<br />
boa vontade para, numa Cruzada invencível,<br />
sob a égide da Rainha dos<br />
Céus, marcharmos à rude tarefa de<br />
libertar enfim a pobre humanidade<br />
dos terríveis cercos de ferro com<br />
que a perversidade e a insânia tentam<br />
aniquilá-la. É pelo Coração de<br />
Maria que faremos triunfar o Coração<br />
de Jesus!<br />
Leão XIII apontava para o Coração<br />
Santíssimo de Jesus como o<br />
grande sinal no firmamento a prometer-nos<br />
vitória: In hoc signo vinces!<br />
– Com este sinal vencerás! E<br />
com ele nos mandava armar, como<br />
outrora os soldados de Constantino,<br />
com o Sinal da Cruz. E muitos dos<br />
cristãos obedeceram e o mundo foi<br />
consagrado oficialmente pelo Papa<br />
ao Sagrado Coração do Salvador.<br />
Por isso podia na sua primeira encíclica<br />
escrever Pio XII: “Da difusão<br />
e aprofundamento do culto ao Divino<br />
Coração do Redentor, que encontrou<br />
o seu coroamento não só na<br />
consagração da humanidade, ao declinar<br />
do último século, mas também<br />
na instituição da festa da Realeza de<br />
Cristo pelo nosso imediato Predecessor,<br />
de feliz memória, resultaram<br />
indizíveis bens para inúmeras almas;<br />
foi um caudal impetuoso que alegra<br />
a cidade de Deus: fluminis impetus<br />
lætificat civitatem Dei” (Sl 45, 5).<br />
Mas havemos de reconhecer que<br />
os triunfos do Coração de Jesus ainda<br />
não correspondem plenamente<br />
nesta época às sorridentes esperanças<br />
de Leão XIII ao consagrar-Lhe o universo.<br />
“Que época mais do que a nossa<br />
– diz ainda Pio XII – foi atormen-<br />
27
De Maria nunquam satis<br />
Gabriel K.<br />
Nossa Senhora do Sagrado Coração - Igreja do<br />
Sagrado Coração de Jesus, Montreal<br />
tada de vazio espiritual e profunda indigência<br />
interior, a despeito de todos<br />
os progressos técnicos e puramente<br />
civis?… Pode conceber-se dever<br />
maior e mais urgente do que evangelizar<br />
as insondáveis riquezas de Cristo<br />
(Ef 3, 8) aos homens do nosso tempo?<br />
E pode haver coisa mais nobre<br />
do que desfraldar o estandarte do<br />
Rei – vexilla Regis – diante dos que<br />
têm seguido e seguem ainda bandeiras<br />
falazes, e procurar reconduzir para<br />
o pendão vitorioso da Cruz os que<br />
o abandonaram?”<br />
Arrebatadora dos corações<br />
Ora, se urge anunciar essas riquezas<br />
insondáveis de Cristo aos homens,<br />
o caminho mais rápido e obrigatório é<br />
Maria – per Mariam ad Iesum. Tem sido<br />
sempre assim desde o começo da Igreja.<br />
É por Maria que nos vem Jesus.<br />
E o impulso cristão – que irrompe<br />
afinal das almas sob a ação do Espírito<br />
Santo, como numa das suas encíclicas<br />
sobre o Rosário o notou Leão<br />
XIII – vai mais longe afirmando cada<br />
vez mais clara e afoitamente, sobretudo<br />
de há um século a esta parte, que é<br />
pelo Coração de Maria que nos há de<br />
vir o Coração de Jesus; é pelo Reinado<br />
do Coração da Mãe que há de vir<br />
o Reinado do Coração do Filho.<br />
Para O fazer reinar é mister amá-<br />
-Lo – é o seu triunfo nos corações e<br />
nas vontades. Para O amar é urgente<br />
primeiro conhecê-Lo – é o seu reinado<br />
nas inteligências.<br />
Contribuam estas linhas para levar<br />
às almas essa luz e esse calor.<br />
Assim como não se conhece deveras<br />
a Cristo enquanto não se conhece<br />
seu Coração – o Coração de Jesus é<br />
o melhor ponto de vista do Salvador,<br />
é a chave do enigma de todas as suas<br />
misericórdias, o abismo inesgotável<br />
de todas as suas invenções de amor<br />
–, assim também Maria Santíssima<br />
só será conhecida e amada e reinará<br />
plenamente nas almas quando intimamente<br />
for conhecido o seu Coração<br />
Imaculado. É também ele o melhor<br />
ponto de vista de Maria. À luz do<br />
seu Coração ilumina-se das mais suaves<br />
e deslumbrantes tonalidades a sua<br />
virgindade sem par, a sua inexcedível<br />
dignidade de Mãe de Deus, de Esposa<br />
do Espírito Santo e de Filha predileta<br />
do Altíssimo, a sua terníssima solicitude<br />
de Mãe dos homens e de Rainha<br />
dos Céus e da Terra.<br />
O seu Coração é o ímã misterioso<br />
que nos arrebata os corações, o que<br />
levou São Bernardo a denominá-La<br />
a arrebatadora dos corações: raptrix<br />
cordium. Mas se é pelo Coração que<br />
Ela nos conquista, é também ele a<br />
arma com que A conquistamos: tocar-Lhe<br />
no Coração é vencê-La. E<br />
– mistério profundo! – não é outro<br />
o cetro com que Maria impera junto<br />
do Altíssimo. Mostrar ao Pai, ao<br />
Filho e ao Espírito Santo o seu Coração<br />
de Filha, Esposa e Mãe é conquistar<br />
a Deus; é inclinar a nosso favor<br />
toda a Santíssima Trindade.<br />
“Sozinha destruiu todas as<br />
heresias do mundo inteiro”<br />
Daqui vem que tudo o que se afirma<br />
de Maria Santíssima na sua missão<br />
e misericórdia a respeito dos indivíduos,<br />
da humanidade e da Igreja<br />
em especial, se haja de afirmar<br />
com mais forte razão do seu Coração<br />
Imaculado.<br />
Portanto, não conhece Maria<br />
quem não conhece o seu Coração;<br />
mas quem conhecer esse Coração<br />
possui o melhor conhecimento de<br />
Maria. Não ama a Maria quem não<br />
ama o seu Coração; mas amar o Coração<br />
de Maria é amá-La pelo melhor<br />
modo como Ela deseja ser amada.<br />
É no seu Coração que está a ra-<br />
28
zão de todas as suas bondades para<br />
com os homens; é essa a força que<br />
nos atrai quando a Ela acudimos e<br />
o bálsamo que nos conforta quando<br />
A imploramos, na certeza de sermos<br />
socorridos.<br />
É porque no peito de Maria palpitava<br />
um Coração tão semelhante ao<br />
seu que o Coração de Jesus, à hora<br />
da Morte no Calvário, no-La deu por<br />
Mãe: “Ecce Mater tua”, e a Ela nos<br />
entregou por filhos: “Ecce filius tuus”.<br />
Se de São Paulo se afirmou que tinha<br />
um coração parecido ao de Cristo:<br />
cor Pauli, Cor Christi, muito mais<br />
e melhor que ninguém tem direito a<br />
este encômio supremo Maria Santíssima:<br />
Cor Mariæ, Cor Iesu.<br />
É porque em seu peito continua<br />
lá no Céu a pulsar o mesmo Coração<br />
dulcíssimo e amantíssimo, que a<br />
Santa Igreja, nas horas aflitivas, nos<br />
manda acudir a Maria, seguros de<br />
obtermos sempre pronto socorro.<br />
“Quem considerar atentamente os<br />
anais da Igreja Católica – escrevia<br />
o saudoso Pontífice Pio XI<br />
–, verá facilmente unido a todos<br />
os fastos do nome cristão<br />
o valioso patrocínio da Virgem<br />
Mãe de Deus. E na verdade,<br />
quando os erros, grassando por<br />
toda parte, procuravam dilacerar<br />
a túnica inconsútil da Igreja<br />
e subverter o mundo católico,<br />
Àquela que ‘sozinha destruiu<br />
todas as heresias do mundo<br />
inteiro’ 1 acudiram nossos<br />
pais e se dirigiram com o coração<br />
cheio de confiança; e a vitória<br />
por Ela obtida trouxe-lhes<br />
tempos mais felizes.”<br />
Quando a impiedade muçulmana,<br />
confiada em potentes armadas<br />
e grandes exércitos, ameaçava<br />
arruinar e escravizar os<br />
povos da Europa, foi implorada<br />
instantissimamente, por conselho<br />
do Sumo Pontífice, a proteção<br />
da Mãe Celeste; deste modo<br />
foram destruídos os inimigos<br />
e submergidas as suas naus.<br />
E tanto nas calamidades públicas<br />
como nas necessidades particulares,<br />
têm acudido à Maria, suplicantes,<br />
os fiéis de todos os tempos, para<br />
que Ela venha benignissimamente<br />
em seu socorro, obtendo-lhes o<br />
alívio e remédio dos males do corpo<br />
e da alma. E jamais seu poderosíssimo<br />
socorro foi esperado em vão<br />
por aqueles que o imploram em prece<br />
confiante e piedosa.<br />
Que Nossa Senhora nos faça<br />
como que desaparecer n’Ela<br />
Com toda a razão, portanto, nas<br />
horas difíceis em que hoje vivemos,<br />
todas as nossas esperanças de salvação,<br />
de triunfos e de paz estão postas<br />
nesta Arca de salvação: no Coração<br />
de Maria.<br />
“A mim, o mínimo dos santos, foi-<br />
-me dada esta graça de evangelizar<br />
às gentes as investigáveis riquezas de<br />
Cristo” (Ef 3, 8), dizia São Paulo.<br />
Última Ceia - Convento Mãe de Deus, Lisboa<br />
Uma das mais insondáveis riquezas<br />
que nos legou Cristo foi o Coração<br />
de sua Mãe. Ah, se nos fora dado<br />
carisma parecido ao do Apóstolo<br />
de evangelizarmos aos nossos leitores<br />
toda a profundeza, longitude e<br />
latitude, todos os abismos preciosos<br />
de amor encerrados no Coração de<br />
Maria!<br />
Um erudito e piedoso autor dizia,<br />
ao escrever sobre o Coração da<br />
Mãe de Deus, que ambicionava para<br />
si poder reclinar-se, como outrora<br />
São João Evangelista na última Ceia<br />
sobre o peito do Senhor, também sobre<br />
o peito de Maria para, depois de<br />
escutar as palpitações de seu Coração,<br />
conseguir mais facilmente dizer<br />
desses segredos de amor.<br />
As nossas ambições vão mais longe<br />
neste instante: quiséramos não somente<br />
reclinar a cabeça sobre o Coração<br />
Imaculado de nossa Mãe do<br />
Céu, mas poder estabelecer lá dentro<br />
a nossa morada para que, iluminados<br />
nessa luz, virginizados nessa<br />
pureza e inflamados nas chamas<br />
dessa caridade, tudo o que<br />
Flávio Lourenço<br />
disséssemos fossem palavras de<br />
luz e fogo a brotar da abundância<br />
desse Coração inefável.<br />
Que Ela nos acolha nesse<br />
recôndito de amor, nos faça<br />
aí como que desaparecer<br />
n’Ela, para que afinal seja Maria<br />
quem diga de Si mesma,<br />
pelo débil instrumento que todo<br />
se Lhe consagra, as maravilhas<br />
do seu Coração.<br />
Que seja aí também que<br />
os nossos leitores coloquem a<br />
sua mansão, para nessa escola<br />
e a essa luz melhor compreenderem<br />
a obra-prima do Senhor.<br />
v<br />
(Extraído de O Legionário<br />
n. 555, 28/3/1943)<br />
1) Cf. Breviário Romano.<br />
29
Apóstolo do pulchrum<br />
À procura do belo<br />
e do superbelo<br />
Em suas obras, Claude<br />
Lorrain compõe o belo e<br />
introduz o superbelo. Para<br />
isso, capta os “flashes” dos<br />
estados mais bonitos da<br />
natureza e os fixa na tela.<br />
Entretanto, ao pintar uma<br />
paisagem não se limita a<br />
retratá-la como ela é, mas<br />
como ele a imagina.<br />
V<br />
ão ser consideradas fotografias de quadros de<br />
um pintor de origem lorena, mas que pintou a<br />
Itália e se tornou sobretudo célebre na Inglaterra.<br />
O nome dele é francês: Claude Lorrain 1 . Os quadros<br />
correspondem ao desejo de maravilhoso que ilustrava o<br />
Ancien Régime 2 .<br />
“Flashes” dos estados mais belos da natureza<br />
Nos quadros há dois dados que nos interessam realçar.<br />
Em primeiro lugar, é o modo elaborado e cultural de<br />
apresentar a natureza, por onde ela fica vista nos seus<br />
aspectos fugidios mais belos. Ele pega por assim dizer<br />
“flashes” dos estados mais belos da natureza e os fixa na<br />
30
tela. Ademais, tem esta posição que é muito criticada pelos<br />
modernos: compor o belo. Quer dizer, ao pintar uma<br />
paisagem, não a retrata como ela é, mas como ele a imagina.<br />
Pinta, por exemplo, um golfo real, mas figura no<br />
golfo uma ilha que não existe. E na ilha, um castelo que<br />
não existe também. E isto para pôr dentro do belo o superbelo.<br />
Qual a crítica que os modernos fazem a isso? Que não<br />
é real, as coisas não se passam assim e se deve pintar a<br />
realidade. Depois eles vão pintar na tela homens monstruosos<br />
que graças a Deus não existem, mas os partidários<br />
desse tipo de arte não chamam isso de “irrealismo”,<br />
e sim de “surrealismo”. Quer dizer, para eles isso não<br />
só é a realidade, mas a super-realidade. Ora, já se pode-<br />
mQHhySZUHdWMaA (CC3.0)<br />
31
Apóstolo do pulchrum<br />
ria impugnar o título: a super-realidade é real ou é a irrealidade?<br />
Além disso, uma coisa que é a super-realidade<br />
deveria ser algo mais belo do que a realidade, e não o<br />
monstruoso, que corresponde à sub-realidade. Há, portanto,<br />
uma inversão completa de conceitos e de valores.<br />
Parece-me que nesta época de poluição do ar, da mente,<br />
do senso estético, os quadros de Claude Lorrain apresentam<br />
qualquer coisa de muito formativo, neste sentido, com<br />
as restrições que se devem fazer às coisas do Ancien Régime.<br />
Ruínas que causam a impressão de<br />
serem feitas de pedras preciosas<br />
No primeiro quadro temos uma paisagem muito misturada:<br />
é uma espécie de meio-termo entre o campo e a cidade.<br />
The Yorck Project (CC3.0)<br />
32
Para melhor compreender a beleza desta obra de arte,<br />
é preciso ter tomado o gosto pelas ruínas e se pôr na perspectiva<br />
do belo tipicamente italiano. Alguns dos monumentos<br />
estão de tal maneira em ruínas que as pedras da<br />
parte de cima caíram, e no lugar nasceu uma vegetaçãozinha<br />
que não o enfeita nem um pouco. Em meio a tudo isso<br />
estão os camponeses se divertindo, conversando.<br />
Notem, entretanto, uma árvore de um formato até<br />
um pouco extravagante, mas com uma vegetação bonita,<br />
felpuda; ela tem um lance muito nobre e seus galhos<br />
pendem com muita dignidade e distinção. É uma árvore<br />
muito cortesã, por assim dizer.<br />
As colunas, apesar de constituírem ruínas, estão bem<br />
conservadas, e sobre elas incide uma luz muito bonita<br />
iluminando-as com distinção, de maneira a se ter quase<br />
a impressão de que são de pedra preciosa ou revestidas<br />
de alguma seda.<br />
A ruína de um monumento, com três colunas e um<br />
frontão em cima, é muito bonita também. Essas colunas<br />
são esguias, distintas, nobres. Os arcos sólidos, vigorosos,<br />
fazem pensar nos desfiles das legiões romanas vitoriosas,<br />
que vinham trazendo milhares de vencidos de<br />
guerra, acorrentados e que iam ser levados ao Capitólio<br />
para a cerimônia faustosa e terrível do triunfo romano,<br />
na qual o rei adversário seria morto. Ele vinha a pé<br />
e acorrentado como um escravo, para ser executado no<br />
Capitólio.<br />
Beleza especial em apreciar o passado<br />
Vê-se também um prédio romano abandonado, mas<br />
que conserva todas as colunas de sua fachada ainda em<br />
pé. Ao lado, um casario modesto, popular. Mais adiante,<br />
uma igreja católica em estilo românico que deve datar<br />
de antes da Idade Média, talvez um pouco depois, quiçá<br />
seja da Renascença, com uma torre, tendo em torno um<br />
convento ou um casario.<br />
Os homens daquele tempo julgavam haver uma beleza<br />
especial em apreciar o passado, tendo o curso dos séculos<br />
transcorrido em cima. De maneira que, sobre toda<br />
a grandeza e a desgraça do Império Romano, tinham decorrido<br />
séculos e séculos de abandono, de desmantelamento,<br />
deixando ver, ao mesmo tempo, a magnitude e o<br />
efêmero das coisas desta Terra.<br />
Então, as pessoas se punham a pensar, rememorando<br />
fatos, fazendo filosofia da História, sob um<br />
céu de um azul muito delicado e com umas nuvens<br />
que já podem ser chamadas de pré-românticas. Elas<br />
não obscurecem o firmamento, mas são um pouco<br />
obscuras e introduzem na paisagem qualquer coisa<br />
de melancólico.<br />
Em um dos quadros parece estar representado um<br />
personagem característico das paisagens italianas: um<br />
mendigo. Mas que mendigo saudável, inteligente! Que<br />
sabe tirar partido da despreocupação, do incerto e do<br />
aventureiro de sua vida. Dois homens do povo conversam<br />
com o mendigo, sobre chuva e bom tempo, sobre<br />
tudo e nada; é a vidoca de todos dos dias que continua<br />
aos pés das faustosas ruínas que os homens cultos admiram.<br />
33
Apóstolo do pulchrum<br />
Fascínio do desconhecido, do<br />
misterioso e do sublime<br />
Noutra pintura, Claude Lorrain representa um<br />
porto de mar sob um céu cujo colorido é parecido<br />
com o que já analisamos: um azul muito tênue com<br />
um mundo de pequenas nuvens que, nos seus pontos<br />
mais densos, tendem a ficar um pouco escuras.<br />
De maneira que se tem a bonança, mas também algo<br />
que de longe prenuncia uma tempestade, insinua<br />
uma preocupação.<br />
Ao lado vê-se um bosque exuberante, com árvores<br />
muito altas que insinuam ao espírito a ideia do frescor e<br />
da harmonia da natureza ao pé dessas árvores.<br />
Encontramos também dois prédios faustosos, ao gosto<br />
renascentista. O edifício bem junto ao cais pode ser<br />
perfeitamente uma igreja, como também um tribunal ou<br />
qualquer outra repartição pública. Ele está sobre uma<br />
pedra que o defende contra o mar.<br />
O outro edifício está sobre uma espécie de patamar<br />
de onde se erguem as colunas encimadas por um terracinho,<br />
de maneira que alguém pode sair do prédio e contemplar<br />
dois tipos de paisagens: a próxima e a remota<br />
que, por sua vez, apresentam os dois aspectos da vida de<br />
navegação os quais Claude Lorrain quis tornar presentes<br />
nesta obra.<br />
Em primeiro lugar, a caravela muito bonita. Notem<br />
a elegância das bandeirolas tremulando no topo dos<br />
mastros, no alto dos quais há uma espécie de terracinho<br />
para ficarem os vigias, e a beleza das velas enroladas<br />
num oblíquo elegante e distinto. Percebe-se a<br />
madeira faustosamente trabalhada da proa desse navio.<br />
Faz-nos reportar às viagens distantes das caravelas<br />
que iam buscar princesas no Báltico para se casarem<br />
em Nápoles, ou pegar ouro nas Américas para levar<br />
aos portos do Mar Mediterrâneo ou da Península<br />
Ibérica; enfim, caravelas que passavam por todas<br />
as aventuras, singrando todos os mares e cuja saga é<br />
lembrada pelo Sol que se perde no horizonte e cujo<br />
reflexo é mais nítido na água do que no próprio céu.<br />
Tem-se a impressão de um infinito que vai se prolongando<br />
e do qual a caravela vem trazendo todos os mistérios,<br />
todas as mercadorias, todos os estrangeiros,<br />
todas as narrações de aventura dos vários países onde<br />
ela esteve. É o fascínio do desconhecido, do misterioso<br />
e do sublime.<br />
Ao fundo há alguns navios de travessia menor, mas<br />
que também lembram as grandes navegações, de certo<br />
modo.<br />
Mais perto do porto vemos um formigar de barquinhos.<br />
É a vida comercial e social aqui representada: gente<br />
que vai pegar as riquezas das caravelas e levar para a<br />
terra, ou recolher viajantes, muitas vezes ilustres, e conduzi-los<br />
até o cais.<br />
Acaba de chegar um personagem de prol? Há um grupo<br />
de pessoas que o acompanha; alguém anda solícito,<br />
procurando ajudar. É uma cena de certa distinção. Inclusive<br />
está posto do lado de fora um tapete diante do<br />
edifício que bem pode ser um palácio.<br />
34
Veem-se pessoas que olham a cena, outras nem se importam<br />
com ela, estão pensando em coisas diversas. Há<br />
homens dentro dos barquinhos, ou porque trouxeram ou<br />
vão levar gente, ou estão descansando. Desse modo, numa<br />
mesma cena está condensada uma série de circunstâncias<br />
que, assim, raras vezes se encontram, e dão a ideia da vida,<br />
do movimento, da beleza quase pré-romântica da natureza<br />
campestre e da navegação, bem como do formigar<br />
da vida comercial e social de todos os dias. v<br />
(Extraído da conferência de 27/5/1972)<br />
1) Claude Gellée (*1600 - †1682).<br />
2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático<br />
em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
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Poema de Contra-Revolução<br />
Oque vem a ser a sapiencialidade do<br />
Coração de Maria? A Sabedoria é<br />
um dos dons do Espírito Santo que,<br />
agindo sobre a inteligência, nos faz ver todas<br />
as criaturas pelos seus aspectos mais elevados,<br />
através dos quais elas mais se assemelham<br />
ao Criador.<br />
Considerando assim o universo, a mente<br />
humana adquire uma admirável unidade e<br />
uma extraordinária coerência: nada de contradição,<br />
dilaceração ou hesitação, mas certeza,<br />
Fé, convicção, firmeza desde os mais altos<br />
princípios até às menores coisas.<br />
A inteligência, soberanamente límpida e lúcida,<br />
porque cheia de convicção da existência de<br />
Deus, torna-se sumamente coerente, e a vontade<br />
forte e firme volta-se constantemente para o fim<br />
que deve ter em vista. Assim, o dom de Sabedoria<br />
alimenta todas as virtudes e ancora a alma<br />
no primeiro Mandamento da Lei de Deus.<br />
O Coração de Maria é soberanamente elevado,<br />
sério, profundo, porque sapiencial. A<br />
Santíssima Virgem é o vaso de eleição no<br />
qual pousou o Espírito Santo para nele gerar<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo. E o único hino<br />
que conhecemos como proferido por Ela<br />
em sua vida terrena é uma verdadeira maravilha<br />
de Sabedoria: o Magnificat.<br />
Por sua Sabedoria, Nossa Senhora mediu toda<br />
a grandeza de Deus, e nisso se alegrou; de outro<br />
lado, considerou sua pequenez. É um poema<br />
de Contra-Revolução! A escrava que se encanta<br />
de ver como o Senhor é infinitamente superior a<br />
Ela, e do fundo de seu nada O glorifica.<br />
Eis a verdadeira humildade que ama seu<br />
lugar inferior, adorando a grandeza que a<br />
eleva. Eis o Sapiencial e Imaculado Coração<br />
de Maria..<br />
(Extraído de conferência de 21/8/1968)<br />
Anunciação - Museu Nacional de<br />
Arte da Catalunha, Barcelona<br />
HAGvDYqnswVjKA (CC3.0)