Scarium MegaZine edição 01
Revista Literária de Ficção Científica, fantasia, terror e mistério.
Revista Literária de Ficção Científica, fantasia, terror e mistério.
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Exclusivo: Novela de João Barreiros
Scarium
MegaZine
Ficção Fantástica
Ano 1
nº 1
R$ 5,00
Renata & Cia.
Quadrinhos
Josiel Vieira
Jorge Candeias
Renata Ramirez
Rogério Amaral de Vasconcellos
ADÃO TINHA UM IRMÃO?
www.scarium.hpg.com.br
Editor:
Marco A. M. Bourguignon
Co-Editor:
Rogério Amaral de Vasconcellos
Jornalista Responsável:
Lara Chateaubriand
MTB: 18.232
Colaboradores desta edição:
Gian Daton
João Barreiros
Jorge Candeias
Josiel Vieira
Lailson
Miguel Carqueija
Miguel Perez
Renata Ramirez
Rogério A. de Vasconcellos
Sandro Perli
Endereço para correspondência:
Rua Castorino Francisco Nunes,
88 13/204 - Ilha do Governador
Cep. 21.921-544
Rio de Janeiro - RJ
Tel. 2467-2805
Editorial 3
Cartas 4
Coluna:
Balaio da Scarium 6
Rogério Amaral de Vasconcellos
Artigo:
MIB - homens de preto II 54
Renato Rosatti
Mini-contos:
Quando os papagaios
foram ensinados a falar
com inteligência 9
Miguel Carqueija
Share Girl 12
Josiel Vieira
Contos:
Corredor Fantasma 10
Renata Ramirez
Leonardo, O Borracho 31
Jorge Candeias
Novelas:
Adão tinha um irmão? 18
Rogério Amaral de Vasconcellos
Não estamos divertidos, 34
João Barreiros
Quadrinhos:
Charge 9
Sandro Perli
Raquel & Cia 13
Lailson
Última página:
O fascínio da ficção científica 58
Gian Danton
Ilustrações:
Capa e pág. 34 - Miguel Perez
Pág. 10 - Rogério A. Vasconcellos
Pág. 18, pág. 31, pág. 34 e pág. 53 -
Marco A. M. Bourguignon
Finalmente chegamos ao número 1
da Scarium MegaZine Agradecemos
aos leitores a boa aceitação da edição
número 0 e todo o apoio recebido.
Esperamos que o nosso público leitor
continue crescendo, por isso
divulguem a nossa publicação e
enviem suas críticas e sugestões para
que aprimoremos cada vez mais a
nossa Scarium MegaZine.
Nesta edição, fomos até o outro lado
do Atlântico e trouxemos dois
escritores portugueses para brilharem
em nossas páginas. Um é o escritor e
tradutor João Barreiros, com a novela
“Não estamos divertidos,” que será
publicada em folhetim. Ficção
científica passada em Marte, a história
resgata alguns personagens famosos,
misturando um pouco de humor e
ironia. O outro autor é Jorge Candeias,
com o fantástico “Leonardo, o
borracho”, que nos revela um
cotidiano estranho do personagem
Leonardo.
Temos ainda outra novela de ficção
científica, passada em Marte, do autor
de “Campus de Guerra” e nosso coeditor
Rogério Amaral de
Vasconcellosque nos faz uma pergunta
instigante. Afinal,: “Adão tinha um
irmão?” A resposta só poderemos
encontrar lendo o conto. Será que o
autor está certo?
Já Renata Ramirez, estréia em
nossas páginas com uma homenagem
a Ayrton Senna em “O corredor
fantasma”.
Miguel Carqueija e Josiel Vieira nos
trazem dois mini-contos: o primeiro
com um bem-humorado “Quando os
papagaios foram ensinados a falar
com inteligência” e o outro,
escrevendo nas linhas do “Cyber
Punk”, nos revela um futuro próximo
e possível de acontecer, em “Share
Girl”’.
Dois artigos recheiam as nossas
páginas. Renato Rosatti nos apresenta
uma crítica do filme “MIB - Homens
de Preto”, já em cartaz nos cinemas,
e Gian Daton escreve sobre “O
fascínio da ficção científica”, na
“Última Página”.
Para finalizarmos, temos “Raquel
& Cia.”, de Lailson, uma história em
quadrinhos com pitadas de ficção
científica, horror e humor. Uma
receita para um roteiro de sucesso.
Marco A. M. Bourguignon
editor
Todos os trabalhos são de propriedade de seus respectivos
autores. As afirmações feitas, explícita e implicitamente, não
representam a opinião editorial desta revista. Permissões de uso
e cópia devem ser obtidas diretamente com os autores.
3
Olá amigos da Scarium! Em primeiro
lugar, meus parabéns pela iniciativa
da revista! Sei como é complicado
editar e publicar uma revista,
ainda mais aqui no Brasil! Torço
para que a Scarium dê certo, e que
ela continue cada vez mais estimulando
e abrindo oportunidades para
os novos talentos!
Estou mandando esta mensagem
porque sou muito fã de ficção científica
(adorei os contos publicados na
Scarium nº 0, principalmente “O
Espreitador do Universo”, da Maria
Helena!), sendo que passei por uma
experiência no mínimo hilariante devido
a isso, e gostaria de compatilhala
com vocês.
Aqui onde trabalho temos uma impressora
geral, usada por todas as
pessoas do andar. Ao mandar imprimir
um arquivo, o sistema pede um
nome, para assim poder imprimir
uma página de capa que identifique
o autor da impressão.
Sempre que imprimo um arquivo
não coloco meu nome, e sim (como
forma de homenagem) o nome de algum
escritor de ficção científica.
Nunca tive problemas com isso pois
sempre fui eu mesmo buscar minha
impressão, então ninguém notava o
fato.
Da última vez mandei imprimir um
arquivo relacionado com informática
(padrão XML), loguei normalmente
(dessa vez como H.G. Wells), mas por
algum motivo esqueci de ir busar a
impressão naquele dia.
No dia seguinte me lembrei e fui
buscá-la, mas ela não se encontrava
na pilha de papéis impressos. Fiquei
4
pensando onde haveria de ter ido parar
minha impressão, até que o administrador
da rede enviou, para o email
geral da empresa (lido por todos os funcionários),
o seguinte email:
—— Original Message ——
From: “Suporte Técnico”
Sent: terça-feira, 24 de Abril de 2002
13:56
Subject: H.G.Wells trabalha conosco?
Pessoal,
Estamos com um job impresso de propriedade
do H. G. Wells.
Solicitamos a quem encontrar o famoso
escritor, que comunique a ele para
vir pegar seu trabalho impresso aqui no
suporte.
Parece que depois de seus famosos
romances (A guerra dos Mundos, A
Maquina do Tempo, etc) Wells, agora,
se interessa por XML, Java e etc.
Gostaríamos muito de trocar uma
idéia com este gênio da literatura.
Atenciosamente,
Suporte Técnico.
Um grande abraço para toda a equipe
e colaboradores da Scarium!
Ricardo Edgard Caceffo
ricardocaceffo56@yahoo.com.
Espero ter atendido sua solicitação.
Também foi um causo danado de bom!
Melhor ainda por, segundo você, ter sido
verídico e perfeitamente narrado. Antes
todo suporte fosse tão bem-humorado.
Valeu! Rogério Amaral de Vasconcellos.
Foi uma grande surpresa receber o
Scarium número zero! Eu já perdera a
esperança de ver um bom fanzine de FC
& cia. feito no Rio de Janeiro, parecia
que só São Paulo e Porto Alegre se
habilitavam!
Não gostei de todos os contos, o que é
natural porque os gostos variam. O
mini-conto da Marta Rolim, porém,
está perfeito, poderia sair em qualquer
antologia. Eu ainda prefiro o
romantismo, como nesse trabalho, ou
nos contos de Ray Bradbury, a uma
derivação escatológica como a de
Nilza Amaral em “Feto!”Acho uma
boa aquisição a presença de Renato
Rosatti; ele tem talento para resenhar
filmes e personalidades do cinema,
ajuda muito para quem queira
pesquisar. Deixo aqui os meus
parabéns para os editores, e os demais
que fizeram o “zereiro” número.
Miguel Carqueija - Rio de Janeiro -
RJ
Filatelia Sinistra.
Enviado por Fernandes Domingues.
Brasília - DF
Scarium Reponde:
Fernando, nosso MegaZine recebeu seu
material. Fica aqui para refletir, com esse
evento trágico que certamente marcou
época. Só lamentamos não poder aproveitar
sua outra curiosidade, pois nosso
espaço ainda não permite tanta extravagância.
Rogério Amaral de Vasconcellos.
Li de cabo a rabo, antes de Morfeu
me embalar em seus braços. Quase
todo o material publicado é de exce-
5
lente qualidade. Concordo e assino
em baixo o artigo de Anita Silva,
“Dicas Iniciantes em contos de
FC”. Como ex-professor achei que
a referida comunga das minhas idéias...
e a nota ou conceito foi “Muito
bom”. Os demais trabalhos receberam
uma graduação de “Bom”
e “Muito Bom”. Parabéns. A crônica
de Cláudia Furtado fugiu da
preposição fundamental da publicação.
Incluiu numerosas afirmações
em língua inglesa. Será que os americanos
e ingleses fazem isso em
casos de falarem da literatura deles?
Ruby Felisbino Medeiros - Porto
Alegre - RS
Essa mistura do fantástico com o
realismo brasileiro foi o que mais
me surpreendeu no conto do
Aimberê, “Lutando com Demônios”.
Espero ver mais contos do autor
na revista.
André Luiz - Brasília - DF
Estive visitando o site da Scarium
agora, e está muito legal. A revista é
diferente de tudo que já vi nas bancas,
atraente e super interessante. Vou ser
colecionadora da Scarium. Parabéns
pelo trabalho e pela iniciativa,
Beijão.
Marta Rolim - Porto alegre - RS
Obs.: Por motivos de espaço as cartas
estão sujeitas a edição.
Enviem suas cartas para
scarium@ieg.com.br ou para a nossa
redação.
BALAIO DA SCARIUM
Rogério Amaral de Vasconcellos
Prezados leitores da Scarium
MegaZine, estamos de volta ao Balaio,
com carga total!
Saímos do zero, direto para as
páginas da edição que inaugura esta
nova jornada literária, audaciosamente
escrevendo e quebrando
unhas no teclado para divulgar notícias
que possam atingir um público
variado, render maior visibilidade
a seus criadores e alienígenas em
geral.
O Balaio, longe de lipoaspirar,
engordou, ganhou uma versão web,
expandindo em terrenos virtuais.
Tudo para atender a demanda de
materiais recebidos. O que não puder
entrar nesta coluna – por absoluta
falta de espaço – você poderá
acompanhar pelo novíssimo BOL
(enganou-se quem imaginou que já
estamos sendo patrocinados, embora
não fosse de todo mal...), sendo
que a sigla significa Balaio On Line,
no site da Scarium, que está recheado
de novidades. Confira e comente.
Que tal começarmos com uma
notícia fresquinha, que visa premiar
a você leitor, que nos prestigia em
todos momentos?
Divulguem, DEFLAGREM, pois
a Scarium, em parceria com a SSPG
(vide matéria na contracapa ou consulte
a editora brasileira de Perry Rhodan
em atendimento@sspg.com.br),
6
estará brindando nossos leitores –
assinantes e visitantes do site – com
exemplares do destemido Terrano
que conquistou o universo e milhões
de fãs em todo mundo.
Aproveitando o embalo, se é para
premiar, que seja festa!! Em
www.scarium.hpg.com.br , de frente
pra zona do agrião, você encontrará
outra promoção imperdível.
Responda o questionário e aguarde
o resultado. Os felizardos receberão
edições da SSPG/Scarium, além
de brindes da maior série de ficção
científica de todos os tempos. Essa
promoção é por tempo limitado ou
enquanto nossos estoques agüentarem
(ver regulamento). Boa Sorte
aos participantes!
Indo mais fundo no Balaio, cada
vez mais rechonchudo (graças a vocês!),
colhemos as seguintes notas
de lançamento e novidades:
Prêmio - O Clube de Leitores
de Ficção Científica (CLFC) está
promovendo o Prêmio Argos 2002
para textos e edições de FC. Mais
sobre o Argos, leia na íntegra a matéria
e o regulamento disponível em
nosso site ou mande e-mails para
clfc@unisys.com.br.
Editora Ano-Luz nas Bancas -
Os livros da Editora Ano Luz, especializada
em ficção científica, terror
e fantasia, já estão disponíveis
nas melhores bancas e livrarias do
Rio de Janeiro.
Megalon 65 - Já está disponível
o n o 65, edição de Junho, do fanzine
Megalon. 30 páginas, formato
A4, apenas R$ 5,00. Uma
assinatura anual com quatro números
sai por R$ 19,00. Encomendas
e
informações:
ms_branco@hotmail.com , lembrando
que a tiragem é limitada.
Intempol - O designer gráfico
Octavio Aragão está de volta! Depois
do estrondoso sucesso desse
escritor carioca e polivalente homem
dos 1001 instrumentos, Octavio
ataca firme com o RPG
Gurps-Intempol. A
criança está nascendo
e promete
Concurso
Scarium/SSPG
7
ser mais um parto
de sucesso, ansiosamente
esperado
por seus pais e fãs,
com previsão para
lançamento até o início de 2003.
Para saber sobre os títulos da Intempol,
livros, graphic novell ...,
nada melhor do que contatar o próprio
autor em
oaragao@intempol.com.br.
Papêra Uirandê Especial 6 - A
revista tem 34 páginas, preço de
R$ 4,00. Encomendas e informações
para Rua André Dreifus, 109/
163 – bloco 2 – São Paulo-SP –
Cep. 01252-901 ou e-mail para Roberto
Causo em
rscauso@yahoo.com.br.
José Neves - Visitei o site destse
artista multimídia e é de estarrecer.
Entrem em
www.josecn.hpg.com.br e comprovem.
E se acharem meu queixo
caído por lá, me avisem!
SSPG - O correio – desta vez
não o virtual – bateu à porta. Com
um ano de publicação em terras
verde-amarelas. Atendendo os pedidos
desta coluna para divulgação,
recebi dois exemplares de Perry
Rhodan, volumes inéditos no Brasil,
editados pela caprichada SSPG
sob a batuta de um dos maiores entusiastas
e especialista
em PR, o mineiro
Rodrigo de
Lélis (até que provem
o contrário) .
Sempre uma capa
belíssima, única
no mundo para o
novo formato-livro adotado no Brasil,
o acabamento e verdadeira paixão
pela série infinita da editora alemã
VPM está decolando para o
sucesso. São 11 livros publicados
desse 11 o Ciclo chamado de O
Concílio, englobando o período de
3459 a 3460 DC (ou deveria dizer
PR?). Os leitores terão a chance
de encontrar bastante aventura
nessa saga que arrebatou multidões
e que agora a SSPG relança no
Brasil. O volume 9 (reunindo 2
episódios), o cabalístico 666 – Sob
o Domínio do Triângulo Solar,
de Hans Kneifel, retrata um vôo
para o núcleo da galáxia, com
parada obrigatória em uma armadilha
montada num transmissor de
matéria de proporções solares
(quem não conhece a série perceberá
que o universo é pequeno para
tanta imaginação); ainda no volume
9 temos o episódio 667 – O
Guardião do Eterno, do emblemático
e saudoso William Voltz,
onde testemunhamos o Transmissor
Arquimedes
como foco de
acontecimentos e
mais mistérios de
proporções cósmicas.
O último volume
que aportou
por aqui foi o 10 o , reunindo os episódios
668 – Operação Bebê
Solar, de H.G. Ewers, mostrando
como nosso Sol ganhou uma irmãzinha,
e o 669 – Base Deus do
Trovão, escrito por H.G. Francis,
com uma aventura de espionagem
de tirar o fôlego.
Lembro que todos volumes de
Perry Rhodan podem ser lidos isoladamente,
mas ganham maior sentido
como série. Maiores informações
em www.perry-rhodan.com.br ou
atendimento@sspg.com.br. E uma
boa leitura, pois é entretenimento na
11 livros
publicados
8
certa. Encomendem sem susto e indiquem
aos amigos.
Sobre o novo site da E-nigma
(http://ficcao.online.pt/E-nigma), o
concurso de Quadrinhos de Pernambuco,
o lançamento de FC em CD-
Rom, a Exposição do Cerito, matéria
completa dos fanzines Megalon,
Papêra Uirandê e Dragão Quântico
e outras novidades, o Balaio On
Line o aguarda! Fique por dentro e
participe do movimento.
Pois é, amigos.
Estamos chegando ao final de
mais um Balaio. O
leitor faz a Scarium
MegaZine. Continuem
mandando
cartas, comentando
nossos artigos e notificando
se em sua
cidade existem distribuidores
interessados em ampliar
nossa rede.
Foi bom estar com vocês, escrever
pra vocês, mas é preciso cuidar
do leitinho das crianças, que mamam
como certos políticos. Até a próxima
edição do Balaio, em sua revista
Scarium MegaZine ou em nosso espaço
virtual de todos os clics, agora
com prêmios para vocês.
Fui...
Rogério Amaral de Vasconcellos
rogamvas@radnet.com.br ou
Quando os papagaios
foram ensinados a falar com inteligência
Miguel Carqueija
— Cuidado! Cuidado! Alienígena canibal chegando! Fuja depressa!
— Ué! Onde é que você aprendeu a dizer essa boba... AAAAAH!!!
— CHOMP!CHOMP!
9
Renata Ramirez
Por um momento a multidão ululou. Corpos eram arremessados por seus
próprios pares, deixando livre o caminho. Um carro, talvez uma Mc Laren
vistosa, passou chispando pelo corredor humano, tendo uma figura sentada
ao volante, guiando com uma só mão, fazendo na outra uma bandeira tremular.
Foi mais fácil distinguir a bandeira brasileira que a face incoberta dentro do
aquário-capacete, mas muitos jurariam — com aquela certeza paranormal
— que não se tratava dum sósia e sim do genuíno...
Um velho, trajado com a indignidade dum envelhecimento precoce, tinha
saído duma limousine branca direto para uma cadeira de rodas motorizada.
Ao seu lado, seguia uma bela enfermeira, com um olho no paciente e outro,
desconfiado e nada benevolamente, na multidão.
Ele estava ali, naquele dia, muito conhecido locutor esportivo, traído por
suas lembranças. E também por uma carta anônima que, a despeito dos
conselhos médicos tentando demovê-lo do intento, tramaram contra sua
inércia habitual, levando-o para aquele exato lugar e a precisa hora que seu
caríssimo relógio de outro não ocultava.
Onde viu a multidão se fender e de dentro dela espirrar o F1, por um
momento pareceu-lhe que as pernas tinham acordado de um longo sono,
quase obrigando seu corpo a se erguer sobre o leito móvel. Quase...
Ao passar dos 300 km/h o fórmula-1, com seu piloto encravado no cockpit,
10
deixou para trás o velho que voltou a ser o entrevado de sempre, com um
ressalvo: daqueles lábios, como um ruga fendida, saiu algo que jurara nunca
mais pronunciar:
— Aceleeeeeeeeeeeeeeeeeera, A...
Mas a poeira no rastro do veículo movido à paixão, na velocidade do
pensamento, aliado a sua insuficiência respiratória, tramaram contra, fazendo
com que se calasse, ou melhor, a uma sucessão de arquejos que a diligente –
e cara – enfermeira lutou e venceu ao aplicar-lhe alguns CCs de um líquido
âmbar, direto na veia estufada do seu pescoço.
Aquilo o fez delirar um pouco. Novocaina sempre agia assim com ele.
Todavia não sabia se era o efeito costumeiro da medicação ou seus sentidos
exortados pela visão daquele rosto que, milésimos de segundo, passou por
seus olhos arregalados.
Quando o torvelinho de fumaça se dissipou no vácuo, já se transformando
numa esquecida brisa, a multidão se desconcentrou, e a enfermeira ruiva
obrigou-o a voltar para o carro, sendo então ai o momento que seu olhar
vacilou por uma lado, derivou para o outro, até focar num prédio abandonado.
Uma criança travestida de gente equilibrava-se num carrinho feito de restos
de caixotes de feira, dotado de rodas de rolimãs gastas, tonitroando ladeira
abaixo, vomitado duma garagem naquela relíquia abandonada que alguns
ainda conheciam (inclusive o velho) como prédio da Rede Globo.
A voz do menino chegou até ele ao mesmo tempo que as lágrimas aos
seus olhos. Era um ‘tá-tá-tá’ interminável, inconfundível, impossível... O
moleque fazia aquele matraquear, provavelmente ensinado a ele por um vídeo
antigo ainda em funcionamento nalgum daqueles quartos interditados do
extinto império do Jardim Botânico, onde a emissora carioca se criara e fora
sepultada.
E o velho, já praticamente alojado no compartimento especial da limousine,
saboreou o gosto de suas lágrimas e também experimentou o arranhar de sua
voz, ao repetir:
— Tá-tá-Taaaaaaaaaa.
Renata Ramirez - de Varginha, por um tempo capital mundial dos ETs e
Chupacabras, chegou esse pequeno conto de fantasia envolvendo
personagens que podem - ou não - fazer parte de nossa história recente.
11
MINI-CONTO
Josiel Vieira
— Mas eu pensei que você me amasse...
— A ilusão foi sua. Tudo tem um fim...
— Você não passa de uma interesseira filha da mãe!...
— Vou sumir de sua vida...
— Não vá embora... por favor! Eu arrumo a grana que você precisa nem
que tenha que roubar e matar! Droga, eu te amo!
Ela sorriu:
— Querido, você é o menino mais bonzinho que já conheci. Você nunca
faria isso, mesmo por amor.
— É. Eu acho que você tem razão.
— Foi bom enquanto durou. Mas, entenda: os melhores sonhos são
aqueles que acabam e deixam um gosto de saudade em algum lugar de seu
coração.
O olhar dele era uma interrogação suplicante. Por que as coisas precisam
acabar justamente no melhor? Ela sorriu:
— Lamento.
E foi desaparecendo lentamente até restar somente o sorriso, que também
se desvaneceu. No ambiente virtual em que o menino de quinze anos estava,
uma mensagem apareceu:
ATENÇÃO, USUÁRIO
O PRAZO DE 30 DIAS EXPIROU.
se quiser mais uma amante share girl
acesse nossa realidade de amostras grátis
se quiser o programa completo,
forneça o número de seu cartão de crédito
NOSSAS AMANTES VIRTUAIS
TÊM A MELHOR INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
DO MERCADO!!
FAÇA COM ELAS O QUE SUA ESPOSA
SEMPRE SE RECUSOU A FAZER!!
NÃO PERCA TEMPO COM ESSAS BOBAGENS
DE ROMANTISMO; VÁ DIRETO AO ASSUNTO!!
proibido para menores de 18 anos
precisa de interface cerebral para ambiente 3-D
12
13
14
15
17
Rogério Amaral de Vasconcellos
I
A equação que apareceu na tela, diziam, tinha quase tantas variáveis quanto
as estrelas no céu. Besteira! Se tivessem o trabalho de contar – e isso nunca
se poderia esperar dessa cambada, sendo tão visceralmente impregnadas pela
indolência – perceberiam que a ordem olímpica daquelas frações algébricas
não excedia a meros 1012...
Discípulos estúpidos, continuou a pensar. Mas foi chamado de volta à
sala de aula por uma pergunta comum feita pelo mais comum deles. Sua
maldição era sofrer dum impulso interior que o obrigava a fazer de sua profissão
um sacerdócio...
— Mestre — questionou –, de que valerão essas fórmulas, esse batalhão
de cifras, no mundo que estamos tentando criar?
— Yogo292VU21-031 hoje receberá um crédito extra – em vista do pasmo
geral, em especial ao tempestuoso aluno, o escolástico acrescentou: —
Esperei por essa pergunta desde há muito. Finalmente ela, veio!
O interpelado, gabando-se com os demais colegas, empertigou-se visivelmente,
parecendo crescer meio palmo no nicho onde se situava o console,
entrando em chats de felicitações com os mais próximos e recebendo gifs
animados representando línguas zombeteiras dos mais distantes.
— Yogo? – Foi vocalizado o chamado.
18
— Mestre! – Prontamente respondeu, mascando algo furiosamente, cheio
de um entusiasmo que mal sabia reter no peito de tão grande, naquela fama
que nunca imaginara conquistar, principalmente junto a maior autoridade da
esfera estudantil, dono da cátedra mais difícil da Faculdade do Conhecimento.
— Do alto de minhas onze e meia décadas de existência, posso atestar
com absoluta franqueza...
A expectativa se espalhou por cada um dos alunos da classe, com Yogo
ainda emitindo petardos pela infovia para cada um dos consoles ligados em
rede; tentava mascarar tal gabolice com uma péssima senha de bloqueio
cifrado, fazendo o velho professor balançar a venerável cabeça e corroborar
uma igualmente antiga certeza: quando se pensa que a ignorância já atingiu
seu limite extremo, pouco mais tendo a revelar, eis que esta surge do nada,
mostrando sempre que infinito é o único limite possível.
Foi, então, articulando calmamente sua conclusão, que apagou todas aquelas
frases idiotas que entupiam as telas e visavam tão somente um ridículo
quanto inútil senso de orgulho barato temperado com uma porrada de futilidades
sem autocontrole.
— Y-o-g-o – silabou: — VOCÊ É UM IDIOTA!
Da mesma forma com que a água um dia fora transubstanciada em vinho,
rezava assim a mitologia, aquela classe viu seu indivíduo mais obtuso, elevado
segundos antes a algum patamar hiperbólico situado nas nuvens, indo
numa queda vertiginosa rumo ao lodo de sua notória insignificância.
Não precisara mais de um comando subsônico digital para imprimir nas
50 telas de cristal líquido um decrédito, que se transformaria em perda de
pontos definitiva se não interrompessem todos aqueles decibéis extras, e
lixo informatizado que não tinha nada a ver com a matéria.
O resultado foi imediato. Não achavam ser uma simples ameaça. Desde
os dois bimestres anteriores, à entrada no Terciário, que sabiam disso.
Com aquele professor não havia blefe. Sua fama o precedera muito antes do
Liceu aceitá-los em suas salas-quartel e ali não imperava qualquer conceito
de direito que não fosse ditado sob a ótica dele. Regime total de internato,
pancada, incineração, rebaixamento ou diploma, essa era a decana base do
ensino em Marte. Se você não gozasse de um privilégio bem alto, mesmo
assim sem garantias em se tratando daquele professor, o destino já estaria
selado.
Todos eles, como que movidos por um só corpo, uma única determinação,
cruzaram os braços. Todos convergiram o olhar para Yogo, a peça-chave daquela
brincadeira coletiva ou, como diziam os antigos, a “bola da vez” do jogo.
18
— Sua besta vadia e mascador de porcaria – ouviram o vaticínio no tom
mais amável que o mestre possuía. Este aproveitou para inibir o comando de
gravação no cristal de memória. Conseguiu assim um melhor rendimento em
termo coercivo, facilmente comprovado no breve sufocamento do aluno no
engolir do tabacco-chiclete. — As matemáticas e as ciências afins não existem
por obra e graça de nossa aptidão em fazer uso delas. Estão aí desde
antes, e continuarão bem depois. Saber lê-las, e construir algo baseado nelas,
é um privilégio reservado a poucos. Posto isso, imbecil, não me venha
apedrejar aquilo que tirou seus bisavós daquele planeta infestado — e nesse
ponto não precisou apontar para a imagem da Terra reproduzida no móbileholograma
do Sistema Solar que preenchia o fundo recôncavo da sala.
Yogo, tendo engolido tanta saliva pra liberar o fluxo respiratório comprometido
pela goma negra ingerida, viu crescer a impressão de ter um mar
inteiro borbulhando em seu estômago. Sabia que aquilo sairia nas fezes ou
através de uma sonda retal; até lá, o desconforto fisiológico seria o pior
possível. Mas existiam coisas bem piores!
Se pensou que a repreensão ficaria só naquilo, o que já era ruim se agravou.
O ”algoz licenciado”, indo até onde o aluno estava plugado, desfez
todas as conexões neurônio-virtuais puxando pela orelha e arrastando Yogo
para a direita — toda turma indo atrás, como convinha a um castigo exemplar
— até o limite da bolha blindada semi-translúcida que isolava o habitat.
Foi uma maneira de mostrar que o castigado estava enganado à enésima
potência.
Até na hora de aplicar um corretivo o professor conseguia ser didático!
Um “dom” nascido dum ato pensado ou patologia clínica posta em ação em
nome do ensino? Ninguém nunca quisera pôr à prova a resposta. O castigo
exemplar tinha eloqüência própria. Nisso estavam totalmente certos.
— Olhe esse ambiente hostil, pois isso já foi pior... — viram-no apontar
para um distante grupo de vulcões fumarentos, a teia de refletores solares
numa planície coberta de fissuras, um trecho duma retorcida, porém densa
vegetação espalhando-se num crescente, sobre e sob o terreno irrigado. —
As transformações que nós, descendentes dos seres da Terra, ainda estamos
promovendo nesse planeta para nosso benefício e de nossos filhos. Do micro
ao macro tudo é ciência, equação em ação; leis físicas conjugadas a um
planejamento estratégico para possibilitar um máximo de rendimento com a
menor agressão e perda possível no ecossistema, evitando retrocessos indesejáveis.
Sem isso, energúmeno, sem base considerável no cálculo, razão e
confiabilidade nas respostas, tudo seria mera utopia, uma fantasia sem limites,
produto daqueles livretos ensebados que seus esquálidos miolos tanto
19
gostam de desovar nos corredores do rancho quando deveriam forjar melhor
conhecimento em lugar de algo tão ficcioso.
Murmurando, quase inaudível, completou:
— Não acham que se eu quisesse uma multidão teria pedido uma?
De volta, acudiram aos seus respectivos assentos, reconectados, a exceção
do infeliz renitente. Sua vítima do dia foi conduzida de forma nada sutil
para um outro lugar ao mesmo tempo próximo e distante dali. Inclusive
ninguém fez qualquer objeção quando o mestre vaticinou: “Prova Surpresa!”.
Nada era tão esperado quanto aquilo. A surpresa, se tal havia, residia
num desconcertante gesto de mão do professor passando como se fosse através
de seu pescoço.
O exemplo de Yogo fora por demais eloqüente para norteá-los de outra
forma. Afinal, depreendiam que tinha sido jogado em um poço sem luz,
preso tardiamente após sua queda vertiginosa por algum campo
antigravitacional antes de atingir as profundezas do mesmo; o lugar, através
da persistente tradição oral das décadas de transição, medrosamente apelidado
de O Cu de Hellas.
Quando os monitores brilharam, mudando de tela para Operacional Delta,
o cursor iniciando os intróitos necessários para a execução da primeira
questão da sabatina que ninguém podia afirmar ser inesperada. Apesar da
atmosfera nada propícia foi impossível conter um risinho generalizado. Mas,
a medida que a frase “essa prova é dedicada ao patrono de vocês, Yogo, a
célula-máter dos imbecis” perdia sua vida útil e se apagava, materializava-se
o texto: “preparem-se para digitar, pois essa prova foi feita para medir o
coeficiente de réplicas dele que existe entre vocês e será levada na mais alta
consideração para determinar seu destino na Casta”. O que antes nascera no
riso de escárnio esvaiu-se numa coisa bem diferente.
Escamoteando os desusados e quase fossilizados teclados de um modelo
XT não simplificado, um tremor indisfarçável foi traído pelas conexões
“feedback” no martelar das teclas por cada um dos quatrocentos e tantos
dedos daqueles que compunham (com um único ressalvo) todo contingente
de aspirantes da sala 18 do complexo CDB-IV do ginásio Terciário em Novo
Congo.
Finalmente a chamada silenciosa se completara, nomes e senhas devidamente
registrados.
E disse o Mestre, a fim de incentivar seus pupilos, dando a eles, como
sempre, muito mais informação do que gostariam e estavam aptos para absorver
numa só talagada:
— Será um teste simples, em dois tempos. A rapidez de interação com
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todos os sistemas de apoio citados determinará o sucesso de vocês. Não
vacilem. Não usem “loops” desnecessários. Sobretudo, não se preocupem:
um índice abaixo de setenta por cento de acertos somente pode provocar, no
mínimo, sua regressão para o nível alfa-primário junto aos outros debilóides,
acrescido da perda de alguns (muitos) privilégios da casta. Em alguns casos
críticos, nos que não forem bafejados pelo desejo de progredir, pode também
ocasionar o banimento para o Pelotão de Limpeza ou incineração, como
restos de comida suspeita de contaminação. A escolha é minha. Vamos,
animem-se!! Se houver incineração, vejam pelo lado bom, sobrará mais
vagas para o Liceu recrutar; se acontecer o banimento, não será o fim do
mundo também, pois, se exercitar outros músculos é o que preferem, aí está
uma vida plena em realizações, embora, tenha de confessar, sem conforto e
garantia de velhice de espécie alguma. É para isso que serve o livre-arbítrio.
Sentem o rabo e façam alguns “milagres”, pois a hora é essa! — Fez uma
pausa apenas para comprovar o efeito devastador de seu discurso antes de
prosseguir, num tom quase que desejoso de fazer cumprir tal ameaça já. —
Afinal, qual de vocês quer ir lá pra fora, em plena tempestade marciana, e
ajudar a polir os robôs cavadores na superfície do planeta?? Como sabem, o
recrutamento está sempre ávido por quem prefere doar seu corpo para as
chamas purificadoras sem aguardar o veredicto vexatório. Quem se habilita,
hein??
Como esperado, ninguém levantou o dedo ou qualquer neurotransmissor
arriscou confrontá-lo através de um comando teclado, sendo que o único
gaiato passível disso jazia incomunicável no fundo do poço, tão fundo que
nem seu choro, berro ou aquilo que articulasse de momento por lá não podia
ser ouvido pela melhor das orelhas ali representadas, pois tinha de guardar
suas forças para coisas mais importantes como, p.e., respirar...
— Sentimento, gente! A fórmula mágica é: sejam realistas, sinceros e
competentes nas respostas. Tem somente mais um detalhe. Se alguém quiser
evitar o rebaixamento e a tropa do lixo vai ter que fazer essa prova sorrindo,
soprando pra longe a poeira desses seus miolos de merda. Gosto de
pensar que isso aqui é só uma filial futurista dos “fast-foods” de outras épocas!
Mesmo não entendendo a piada, 49 bigcaretasburger, imitando muito bem
os tais ”sopros de poeira”, apareceram por detrás dos monitores. Sorrisos se
possível intensificados ao perceberem que o escolástico e irascível detentor
de seus boletins (logo, suas vidas), carrasco-mor de tantas outras “jornadas
educativas” — além de inúmeros adjetivos que murmuravam em seus dormitórios
até quando sonhavam, sendo a melhor palavra para aquilo pesadelo
21
—, definitivamente não fizera uma piada para colher sorriso algum em resposta.
Aquela equação eles entenderam perfeitamente pois não tinha tantas variáveis
assim:
Sorrisos = Sobrevivência
II
— Podem virar a primeira tela — comandou o mestre, indo até a beira do
poço e descaradamente aliviando-se dentro dele, aparecendo essa imagem
digitalizada nos monitores à título da 1ª questão improvisada: — Partindo da
premissa da razão de queda de um pingo de urina igual a 0.5 m/s e conhecendo
a constante gravitacional, usando a tabela do N.S.C.U.A.P.I.2 para Massa
x Viscosidade, desprezando 2/3 de volume que resvalará pelas laterais do
cilindro, qual o impacto resultante que o pingo Z fará ao atingir o elemento
Y...
Nesse ponto, a imagem de Yogo apareceu, reproduzida como um boneco
saltitante, sendo ele o eixo de uma perpendicular que unia as coordenadas
dadas. Era visível a perplexidade ao determinarem a profundidade em que o
mesmo se encontrava. Perante aquilo, “cu de hellas” até parecia um eufemismo
menor!
— Sabendo que — continuou, sem refrear por um instante a caudalosa
micção, intuindo que se Yogo dependesse da pronta resposta daquelas abóboras
pensantes pra continuar enxuto, podia de antemão considerar-se um
peixe, — para Y esquivar-se de Z será preciso uma velocidade Y(3n +)t+z’(-
1/2), {a} trace uma projeção para que o fluxo de zy esteja exatamente numa
proporção trêsphi vezes maior que o Teorema de Rubens pela Equação de
Momento Angular de Falconner; {b} anexe diagramas vetoriais até o décimo
nível de coordenadas; {c} comentar os resultados em 4D por meio da
nossa velha conhecida matemática supradimensional que está no arquivo
modular G.
Todas as telas triangulares escureceram, ficando o cabeçalho, a matrícula
do operador piscando num ícone e uma chave de tempo também. Somente a
espera de cada um fazer valer seus recursos para resolver a interrelacionada
questão na certeza de haver muitas armadilhas e paradoxos embutidos na
mesma. Como descascar uma cebola e chegar no cerne daquela questão sem
lágrimas nos olhos e tremores nas mãos? Do jeito que achava (tinha certeza)
que estavam baratinados, não se preocupou nem mesmo em travar o link de
rede entre os terminais, impossibilitando a “cola”; seria pura perda de tempo
fazê-lo, aliás, obteria mais prazer em observar a posteriori como dispunham
resolver aquilo em conjunto.
22
O Mestre, fazendo descer o cortinado da tanga vistosa depois da ritual
sacudidela, voltou para o palanque, dominando a audiência de seu consolemor,
mirando um a um naquele verdadeiro mar de cabeças que se coçavam
provando aquilo que já estava mais do que patente: ninguém sabia por onde
começar. Independentemente disso, sem olhar, usou seu “plug” sem fio para
selecionar a segunda e última questão.
— Macacada, esta é pra liberar o fiasco total. Conhecimentos Gerais —
disse, aparecendo em seqüência nas telas o scanner cinemático da Terra em
escala 1:106. – Vamos testar agora o raciocínio de merda que cada um é
capaz de defecar sobre o tema ”NOSSA ORIGEM — SINOPSE DO MUN-
DO ATUAL”. Todavia, pra ser chulo tal qual vocês, a mijada me deixou de
bom humor; logo, farei uma preleção ao tema, mas terão que transferir isso
para linguagem de máquina se querem usar como banco de dados...
Juntando ação à palavra, começou a ditar com uma velocidade acima do
normal, seguido pelo movimento de inúmeros dedos sobre os teclados de
diversas proporções, distinguindo alguns abafados palavrões daqueles que
não estavam preparados para esse tipo primitivo de interface:
— Ano 2086, antigo calendário terrestre. Nove naves deixaram o planeta
com destino ao Novo Mundo. A vida na Terra se tornava inviável ao homem.
Décadas antes, pesquisas com DNA mutante e dependência tecnológica
resultaram na falência e virtual tragédia da espécie humana. Após o declínio,
a escassez de alimentos e a perda de antigos valores, a antropofagia, sem
nada a refreá-la, tornou-se um fato corrente naqueles dias ou, digamos assim,
até mesmo uma necessidade física. Acesse a videoteca 717697432AC343
para detalhes mais sórdidos. Continuando: não havia mais que uns poucos
que ainda podiam se rotular como, abre aspas, puros, fecha aspas; à mercê
da predação dessa minoria pelos demais, quer no tráfico de órgãos sadios
quer na vampirização dos mesmos ou simples satisfação de um paladar destituído
de qualquer sofisticação. Tal grupo reduziu-se até o ponto da
erradicação. Os puros desapareceram. A contaminada civilização se tornou
inócua, esfacelara-se em seu berço ao confirmar-se acéfala. Impulsos primitivos
passaram a reger seus atos isolados ou coletivos, unidos todos pelo
instinto da sobrevivência. Veja compêndio histosociológico
111143111CC762 e 222314213DT060. Quanto aos recursos tecnológicos,
de nada adiantavam sem a orientação daqueles que lá não estavam para dispor
deles. Nada detendo a barbárie, o ultrapassar daquele limite e o posterior
holocausto. A queda era iminente. Leia o texto bíblico encontrado nos
escombros no escaninho eletrônico 00000521-C a 00000996-D. Nessa época,
os antepassados de nosso povo, os heróis de nossa raça, vendo o fim
23
próximo, acharam que chegara o momento tão aguardado e profetizado de
evacuar (no bom sentido) e esquecer o disfarce. Mesmo sem civilização
propriamente dita, em termos de coesão e aproveitamento da inteligência, o
planeta ainda sofria uma guerrilha entre grupos tribais, onde escasseavam
tacapes e abundavam multidões de loucos varridos tendo ao seu dispor todo
um arsenal de brinquedos que seus antepassados trataram de enterrar em
toda parte, aparecendo sob a forma de plantações de cogumelos atômicos e
liberação de vírus altamente infecciosos. Perante esse pano de fundo, as
naves decolaram de cinco pontos diferentes no globo, cada qual com uma
tripulação de duzentos e dez soldados de elite e, além da carga de colonos,
um contingente bem menor de cidadãos da mais alta cúpula, contando principalmente
com cientistas e administradores imbuídos dos projetos da nova
civilização.
“Chegaram à Marte numa empresa temerária, sem aprovisionamento adequado
para tentar qualquer outro destino no espaço. Ali, aproveitando alguns
projetos robotizados abandonados, sapientemente, também existiam
nove biosferas relativamente funcionais, sendo que três dessas naves se perderam
no vácuo, provavelmente tragadas pelo Sol. Outras duas não conseguiram
aportar, chocando-se com um satélite; e ainda uma 6ª nave se espatifou
nas montanhas ao norte, onde até hoje ali está, em forma de monumento
perpétuo para honrar tal ousadia. Iniciou-se, portanto, a terraformação mais
agressiva no ano seguinte à partida da Terra através das três tripulações sobreviventes.
Pergunta-se, qual o vírus que deu origem ao extermínio da raça
humana e o vetor através do qual ele se manifestou?”
Sem hesitar, desta feita, verdadeiramente surpreendendo o professor de
forma agradável — nem mesmo deixando a tela se fechar para tornar-se num
outro ícone e a chave de tempo abrir seu lacre-ampulheta para cada uma
daquelas questões — , um bracinho raquítico elevou-se lá no fundo da assistência
como autor da resposta que, apesar das 22,3 décadas de história marciana,
estava ali, taxativa, assinalada no monitor do Mestre e replicada também
nos demais.
— Alguém quer refutar ou corroborar a resposta do Mono342CX21-91?
— indagou, ainda naquele tom acre ameaçador que fez com que todos pensassem
que o apressado Mono tão breve estaria dividindo o fundo do poço
com Yogo, cumprindo uma variante interativa da primeira questão, ou algo
pior! Vamos lá, sabichões! Só quero um “sim” ou um “não”. Um binário.
Mais simples que isso ainda está por ser inventado. A resposta do nanico
ali tem ou não fundamento? A fim de tornar o negócio mais interessante, se
alguém aí responder certo, estou disposto a isentar a primeira questão, dando
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peso igual ao da prova inteira. Hão de convir, é bem tentador!
E de novo, mais cordato:
— Quem se habilita?
De imediato, a relação com 48 “NÃOS” codigrafados apareceu no console-master.
Tinha sido unânime. O esperado e monótono outra vez... Ninguém
ratificara Mono.
O que era pior, estavam sorrindo cheios de si, bigcaretasburger à vera,
espontâneas, na pressuposição de suas vitórias.
Insatisfeito, mas tentando alguma enferrujada tolerância, espremida nem
ele mesmo saberia dizer de onde, enquanto apontava para a resposta original
ainda projetada na lousa eletrônica que tomava a parede toda por trás dele,
tornou a insistir:
— Isso é uma resposta satisfatória ou um atentado, um repto à sabedoria
dessa classe? Ninguém quer mudar de opinião e abraçar Mono em sua causa
isolada? O coitadinho tá que dá dó!
Em resposta àquela predisposição sardônica, a turma inteira caiu numa
gargalhada, destarte com isso refutando essa hipótese mencionada. Os mesmos
48 “nãos” apareceram bisados.
Mono, o mascote, o mais satirizado de todos devido a sua pequena formação
corporal, a despeito das chacotas, manteve-se firme em sua resolução.
Coisa notável para alguém tão novo, principalmente por não ter vertido
até ali um só fluido lacrimal, olhando para sua tela sem desviar um milímetro
dela. Era um barro diferente, não se podia negar.
O Mestre, em antítese à exopersonificação da calma anterior, pulou de
onde estava e, dez metros à frente, socou as vinte cabeças mais próximas ao
ponto da quase concussão cerebral.
O que não será um grande dano, teria pensado se não estivesse irado e
sem ser só fachada didática, um artifício para fazer com que alunos difíceis
chegassem ao mínimo esclarecimento.
Desconhecer a Matemática, apesar de heresia num mundo tão estatístico
e necessitado de novos valores, podia ser até tolerado. Afinal, nem todos
nasceram para o 1º Escalão. Conhecimento científico e política andavam
juntos, eram os requisitos básicos para o ingresso na Cúpula, no seio do qual
o próprio Mestre — devido somente a suas divergências políticas e
insubmissão — nem mesmo conseguira entrar, ficando a um grau apenas de
partilhar da imortalidade relativa que o 1º Escalão oferecia como bonificação
ao seu exclusivíssimo plantel de funcionários.
Todavia, por respeito mesclado com cerebrados motivos, ele nutria outra
opinião, pela qual só a ele dizia respeito. Sempre fora um contestador, e
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levaria isso até sua morte, sem produzir qualquer vagalhão ou distúrbio social,
por amor à raça, conquanto ninguém ousasse intrometer-se em seu campo
de atuação, o que acabara por consolidar-se numa satisfatória relação mútua
de temor baseado na possibilidade de retaliação que cada qual possuía.
Apesar dos robôs darem uma contribuição mais do que satisfatória àquela
sociedade efervescente, enquanto fossem devidamente assessorados, músculos
nos lugares errados sempre podiam ser bem empregados nos locais
certos, despejados num planeta enxertado com uma proto-selva ainda em
fase de acomodação.
Mas, desconhecer um fato básico na história daquele povo, depois de
tanto sangue derramado, vexames, abominações, corpos tombados e
eviscerados ao longo das Eras, era cuspir no próprio sacrossanto orgulho da
raça! Afinal, só existiam como grupo coeso porque aquilo que o pequeno
Mono — porém um forte intelecto — riscara na tela,era verdadeiro:
III
Quando o “giganzé”, o mutante símio que assumia o cargo de professor,
imprimia o comando deletar em praticamente todos os terminais — promovendo
uma breve onda de pânico perante os 48 ex-alunos que eram simplesmente
arrancados de seus lugares e imobilizados para fins de rebaixamento
—, o pequeno híbrido Rhesus-Sagüi assinalou uma série de interrogações
em seu mini-teclado.
Erguendo o macróbio corpanzil de 132 quilos e agilmente lançando-se ao
ar em direção do mar de cipós que pendiam do teto, o chimpanzé-gorila
T042L
Mono342CX21-91
VÍRUS: Aids!
VERTOR: Rhesus!!
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preferiu responder diretamente à muda indagação do até aqui discreto aluno.
Caindo cansado sobre o chão emborrachado e autolimpante, jogou suas
pernas curtas e arqueadas para dentro do nicho onde o outro estava
encalacrado. Desprezando a própria banqueta que era grande demais para
ele, encontrava-se acocorado junto ao monitor, vendo seu superior balançar
as pernas de modo displicente, quase infantil, sem aparente temor algum
pela quebra extraordinária do rígido protocolo acadêmico dentro dum mais
rígido ainda protocolo de casta.
— O sacrifício de sua tataravó deveria servir para ensinar a esse conjunto
vazio de cérebros o valor da História. Com certeza, não mais esquecerão
que nossos antepassados serviram de experimento para comunicação
intraespécies, cobaias nos cruzamentos de genes ou implantes de “chip” de
silício visando estudar o “cérebro atrasado”, no que presumiam confirmar o
mundo no qual nossas raças se divergiram em épocas pretéritas. Mal sabiam
eles que nós o usávamos também como balão de ensaio, deixando-os com
seus experimentos a caminho da tempestade evolutiva.
— Sei exatamente o que o senhor quer dizer com isso, Mestre. Além de
dar à Doença a eles, nossos agentes infiltrados naquele zoológico da
Philadelphia vazaram subliminarmente ao pequeno Bill-qualquer-coisa os
rudimentos de “sua” ciência computacional. Promiscuidade e Atrofismo.
Duas frentes de batalha que, ceifando e desorganizando, avançaram rápidas
nas fileiras do inimigo. Macacos mutantes não podem viver com outros
primatas que pensam possuir a exclusividade do intelecto. Mas ainda, se o
senhor permitir, gostaria de saber o destino daqueles...
Um longo e fino dedo de Mono perscrutou, com mais curiosidade que
algum sentimento de companheirismo e perda voltado para a retaguarda, na
direção dos elevadores subterrâneos.
— Os piolhentos, viciados em goma? — o Mestre alisou o topete vermelho,
por onde apareciam alguns pêlos grisalhos, soltando o ar de seus pulmões:
—Depois dum estágio de alguns “kiks” no exterior, e quando tiverem
a chance, através dum salvo-conduto, de retomarem os estudos pra valer,
aqueles que sobreviverem nunca mais, para usar uma outra expressão dos
macacos nus, “cuspirão no prato que comem”, repercutindo coisas à semelhança
do que Yogo disse e todos os outros trataram de regurgitar. Os conquistadores
sempre tomam aquilo que lhes apraz, seja no campo lingüístico,
nas artes em geral, ciência militar, etc; mas, no nosso caso, a razão de nosso
sucesso vem do menor excesso de vícios desregrados, sem esquecermos a
origem e todos nossos valores fundamentais. Não deixarei que cometam o
mesmo erro dos humanos, permitindo incubar algo que estaria melhor numa
27
lixeira, pois aqueles-sem-quase-pêlos falharam naquilo que há de mais vital
para o sustentáculo de qualquer raça que pretenda exibir o rótulo de dominante.
— E o que seria, Mestre?
— Para entender isso é preciso livrar-se dos preconceitos e ter em mente
que as necessidades do ensino padrão exigem que cada classe possua um ou
dois yogos para servirem de ”estímulo” aos demais. O princípio do entusiasmo
redundante: insere-se um palhaço e ele serve de bode expiatório para
todos os males existentes, canalizando o que há de mais sórdido, pernicioso,
e deve ser combatido. Isso aconteceu aqui, sob controle, e acontece lá fora
em nossa sociedade de uma forma mais exacerbada. Se todos aprenderem
direito a lição, nunca o problema, os sintomas da degradação cultural, subverterá
qualquer grupo maior que disponha desse mecanismo afinado de
defesa. O erro humano mais que resvalou nisso, chocou-se de frente na falta
de um critério rígido de seleção, diferentemente do modo que observamos,
levando-os a cercear a competitividade, estupidamente igualando intelectos
por baixo. Se nossa sociedade aplicasse isso em seus moldes, condenaríamos
nossos iguais a vicejar no lodaçal como uma flor no esgoto e nada mais
nos faria felizes que uma porção de merda sob nossas raízes.
Sem qualquer resistência do outro, aparentando um embevecimento com
tamanha erudição, tocou no implante parietal esquerdo de Mono, retendo
algumas informações na própria fonte.
— Diz aqui no arquivo que seu pai assumiu o posto de capitão do famoso
Regimento Sagüi da flotilha espacial que seguiu em expedição à Kanöpus,
capitaneando a Macacos me Mordam. Suas chances de superá-lo são enormes
se suas noções históricas e as aptidões científicas e política forem tão
deslanchadas quanto penso que sejam. Se de fato procede, sabe muito bem
a respeito do que me referi anteriormente...
— Que os humanos foram fracos, deixaram para que outros fizessem por
eles o que deveriam ter feito de próprio punho? Quando chegou o momento
de encarar que estavam sendo atacados preferiram mascarar a realidade num
roteiro de respostas do tipo “vírus mutante”, “fator alien” e baboseiras do
naipe “manipulação genética e fuga de vírus de laboratório” como responsável
pelo caos, sem assinalar uma solução para o problema?!
— Diante dos sinais da decadência, da pandemia mais que difundida, da
perda de controle da situação, facilitando o escapismo virtual, o nirvana eletrônico,
se acomodaram e procuraram também — o que penso ter sido o
golpe fatal — ficar na Terra mais tempo do que deviam. Não houve transição.
Em todos os sentidos esgotaram seus recursos e do habitat, não tendo
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como empreender uma fuga minimamente organizada. Que pena... — sorriu,
mudando em seguida para um gestual circunspecto, ao confirmar, movido
mais por um impulso que outra coisa: — Foi deprimente ver todos aqueles
vídeos confidenciais daqueles pelados escorando-se em seu simulacro de
civilização enquanto caíam como moscas, sem perceberem que a base abaixo
do que tinham construído estava comprometida na extinção em curso.
Não nos viram como ameaça até que fosse tarde demais. Nós só demos o
vírus e depois da cura, os reprogramamos...
Sem desmerecer o Mestre, dando mostras que não era apenas um bom
ouvinte, o pequeno Rhesus completou a lacuna proposital numa espécie de
profecia consumada:
— E eles fizeram o resto!
IV
O professor fez um sinal previamente combinado entre ele e o bô. Questão
de “minikiks” depois, seu robô pessoal, transportando um imenso cacho
de bananas, surgiu de entre os cipós.
Em silêncio, perante o ávido par de olhos saltados de Mono para o artigo
de luxo, separou diligentemente o cacho, indo até uma bancada e pegando
três toalhas felpudas, duas médias, embebidas em removedor desodorizante,
e uma bem menor, que em sua mão parecia um lenço, sendo para o pequeno
aluno mais que o bastante para sua necessidade corporal inteira.
Chegando próximo ao fosso, liberou o dispositivo antigravitacional retrator
para o retorno de Yogo à superfície, lançando displicentemente meia dúzia
de bananas e uma toalha ali, sem esperar para saber se atingiam o alvo. Depois
do Circo, o pão; pois o palhaço tinha de comer e se queria usá-lo em
outro espetáculo era necessário manter suas funções vitais. Aprendera isso
nos vídeos retirados dos escombros das velhas cidades. Alguma coisa, afinal,
os humanos deixaram de útil como legado, isso e vários “pornôs
institucionais”.
Gingando, voltou para ocupar seu lugar junto ao atarefado Mono, que
lutava agilmente com a banana quase tão grande quanto seu tórax.
Antes deste tirar um pedaço com a pata traseira devidamente asseada,
soltou um guincho e sua voz digitalizada saiu agradavelmente modulada:
— Grande, Mestre! Ó sinônimo da Soberania Macaca. Bananas pra todo
mundo.
Rogério Amaral de Vasconcellos - carioca, coordenador do Projeto Slev
(Suruba Literária), não tem a mínima vergonha em dizer que escreve Ficção
Científica e tem toda pretensão de escrever muito mais.
29
Notas:
1 -
Década de nascimento
Linhagem original dos pais
Ano de nascimento na década
YOGO 292VU21-03
Biênio de nascimento na
década
Código da matriz materna
Tetragrama de Castas cujas nas 1as. Letras fixas determinam
a orientação vocacional inicial do indivíduo mais
o sexo e o último par móvel/ o endereço celular + o status
atual.
Código matriz paterna
2 - N.S.C.U.A.P.I. = Novo Sistema de Constantes Universais Aplicadas ao
Princípio da Incerteza.
Preço avulso: R$ 3,00
Assinatura: R$ 15,00
5 edições
Rua Irmão Ivo Bernardo, 40
Veleiros - CEP 04773-070
São Paulo - SP
e-mail: rrosatti@ig.com.br
30
Jorge Candeias
O Leonardo tinha bebido uns copos.
Nada havia nisso de invulgar, porque o Leonardo todos os dias bebia uns
copos.
Começava de manhã cedo, ao acordar rigorosamente às oito, todos os
dias, sem exceção, e ia bebendo copos até à hora do almoço.
Bebia tudo o que lhe recomendasse o capricho: vermute, gin, whisky,
cerveja, vinho do porto, perfume, vodca, tequila, etanol, solvente, martini,
aguardente...
Chegada a hora do almoço, tomava um põetefino, esperava cinco minutos
pelo efeito do comprimido e almoçava, bem disposto, com a cabeça limpa,
lúcida e luzidia.
Depois do almoço, tomava um digestivo.
E continuava a tomar digestivos tarde afora até à hora do jantar:
Vermute, gin, whisky, cerveja, vinho do porto, perfume, vodca, tequila,
etanol, solvente, martini, aguardente...
Mais um põetefino enfiado goela abaixo, mais uma espera de cinco
minutos, jantar, e estava pronto para a dose diária de voyeurismo teleolístico.
Enquanto se entretia a espreitar as vidas patéticas dos seus vizinhos, o
Leonardo não se lembrava de beber copos. Sentia-se bem, satisfeito com a
vida que vivia. Via-a interessante e cheia de vida, quando confrontada com
as pobres vidas dos pobres patetas que deambulavam pelo écran, dias inteiros
sem fazer nada de produtivo.
“Pobres cretinos”, pensava o Leonardo todos os dias a essa hora, “passam
a vida a fazer cretinices e a levar com as consequências dessas cretinices na
31
cabeça. Aquelas vidas são pura perda de tempo. Ainda por cima, levam horas
infinitas presas aos écrans do teleolo a observar as vidas patéticas dos
vizinhos... Pobres cretinos!”
Assim ia vivendo o Leonardo, duma forma imponderável, deixando que
os dias passassem por si sem provocar marcas nos dias ou em si.
Até que chegou aquele dia em que o Leonardo bebeu uns copos.
Os relógios aproximavam-se da hora de almoço e o põetefino habitual
tinha acabado de ser ejetado pela ranhura alimentar do apartamento.
O Leonardo, claro, tomou-o como fazia todos os dias.
Mas daquela vez, o põetefino não fez efeito.
O Leonardo estava já tão bêbado àquela hora que não deu por nada.
Almoçou normalmente, como todos os dias, e, como todos os dias, tomou
um digestivo ao terminar.
E, claro, como todos os dias, continuou a tomar digestivos tarde afora até
a hora de jantar:
Vermute, gin, whisky, cerveja, vinho do porto, perfume, vodca, tequila,
etanol, solvente, martini, aguardente...
Foi uma tarde estranha: fez uma série de coisas que não tinha por hábito
fazer. Começou por arrumar a casa, que teimou todo o tempo em resistir-lhe
e ficar cada vez mais caótica. Depois sentou-se, de copo na mão, e leu um
capítulo do livro que tinha vindo a ler ao longo dos últimos vinte e sete anos.
Por fim, ligou o teleolo e resolveu mudar do canal habitual para outro ao
acaso.
Calhou-lhe o canal dos tele-evangelistas.
E o Leonardo ficou ali o resto da tarde a beber copos, entretido com toda
aquela tele-evangelização gritante e variada.
À hora de jantar, o seguro de saúde auto-regulatório do Leonardo fez soar
todos os alarmes no centro de emergência daquela zona: O Leonardo estava
quase em coma alcoólico, se bem que continuasse a olhar para o teleolo,
imperturbável. O centro de emergência avisou o serviço central de emergência,
que despachou de imediato para casa do Leonardo uma ambulância e dois
corpulentos enfermeiros.
Quando chegaram, encontraram o Leonardo ainda em frente do teleolo,
todo ele suspenso das prédicas dos tele-evangelistas.
Aproximaram-se e desligaram o aparelho. O Leonardo olhou-os com olhos
piscos.
Não percebeu. Que faziam ali aquelas duas massas brancas?
Depois percebeu: tinha morrido e ido para o céu, e aquela presença
repentina na sua casa havia tomado o aspecto terreno de arcanjos,
32
extraterrestres de túnicas brancas.
— Glória ao Senhor nas alturas! — gritou, sorrindo.
Os enfermeiros pegaram nele e levaram-no para a ambulância.
O Leonardo, sentindo-se a flutuar, levou todo o trajeto a cantar salmos e
a tecer loas a Nossa Senhora e a São Cristóvão.
Os enfermeiros meteram-no dentro da ambulância, acondicionaram-no à
maca e sentaram-se na parte da frente.
Para o Leonardo, aquilo era uma espécie qualquer de táxi celestial. Até
tinha a luzinha em cima do tejadilho que todos os táxis têm.
Não deu por ter arrancado, mas lembrou-se de repente que não tinha dado
um destino ao chofer. Por isso levantou-se, bateu com as mãos abertas no
vidro que o separava do banco da frente e gritou:
— Senhor taxista, era para a Vinha do Senhor, se faz favor.
Não foi, como é evidente.
Em vez de ir para a Vinha do Senhor passou o resto dos seus dias num
habitat do Centro de Pesquisa Biomédica Principal, onde os médicos
procuraram durante anos entender aquela sua súbita imunidade aos põetefinos.
Nunca conseguiram.
Mas para o Leonardo, não havia qualquer problema: continuava a beber
uns copos, como dantes. E de vez em quando tinha a visita dos querubins no
seu pequeno mundo celestial. Pedia-lhes sempre para lhe marcarem uma
conversa com Deus, mas nunca obteve mais do que a promessa de que iriam
tentar.
Nunca saía. Mas isso não o incomodava, porque o mundo que via da
janela era demasiado estranho e, até, um pouco assustador: um mundo de
casas vibratórias, elefantes voadores cobertos por uma penugem cor-de rosa,
cópias infinitas de árvores que se estendiam, todas iguais, até ao infinito,
pássaros de formas estranhas suspensos do ar, imunes à acção da gravidade.
Nunca ficava à janela muito tempo, e voltava para dentro rapidamente,
em busca da garrafa mais próxima e de um copo lavado. De seguida, ligava
o teleolo e ficava ali, horas perdidas, a beber copos e a espreitar as vidas
patéticas dos que passavam a vida a beber copos e a espreitar as vidas patéticas
dos que passavam a vida a beber copos e a espreitar as vidas patéticas dos
que...
Jorge Candeias - Escritor português, editor do site de ficção científica E-nigma:
http://planeta.clix.pt/E-nigma/
33
João Barreiros
PARTE 1
João Barreiros
I
...DISSE A Rainha Vitória, em bicos de pés, encavalada num banquinho
forrado a cetim, a espreitar por uma janela para o trípode cada vez mais
próximo. Foram estas as últimas palavras que proferiu. Dez segundos depois,
um raio de calor calcinou por inteiro o Palácio de Buckingham, juntamente
com parte do efetivo do gabinete de guerra, ali reunido de emergência. Pelo
menos assim conta a lenda.
II
...mas precisamente porque ninguém se atreveu a repetir as últimas palavras
de uma monarca cujo Império governava tudo quanto era terra e mar, é que o
jovem Herbert Wells as repete, numa invectiva cada vez mais alta — e que se
lixe quem quer que o ouça— à medida que o assento de aceleração estremece,
acompanhando as sacudidelas do cilíndro, com o escudo ablativo a arder
contra a tênue atmosfera de Marte.
Lá fora, clicam os painéis de cavorite a abrirem-se a fecharem-se
procurando o apelo de uma Lua distante, esforçando-se por travar a queda
contra a curvatura planetária, por fazer com que o engenho acompanhe o
resto do enxame, mas nada feito, neste tipo de situações é Murphy quem
manda. Um raio de calor proveniente das estações de defesa marcianas,
daquelas que funcionam ainda à base de molas, relojoaria e baterias elétricas
dotadas de sistemas de homens mortos — vamos lá passar a expressão —
varreu os céus, uma, duas, três vezes, até as baterias ficarem descarregadas.
E quem é que foi encontrar nessa inútil varredela senão o módulo onde viajam
34
Wells, Jules, dois soldados e o piloto, que agora combate, frenético, contra
as dezenas de botões, manivelas e alavancas que constituem a base móvel
das placas de cavorite. A paravela ardeu, como costumam arder estes tipos
de artefatos quando são aquecidos mais do que é devido. Alguns painéis
bloquearam, com as cavilhas calcinadas. Outros, porque deixou de haver
rodízios que os conduzissem ao respectivo lugar, empilharam-se uns sobre
os outros, despertando movimentos desordenados nos giroscópios do
aparelho. O vetor de impacto diminuiu mas não desapareceu por completo.
Tornou-se aleatório.
O módulo afastou-se dos companheiros, deslizou sobre o equador e
iniciou um mergulho descontrolado rumo aos planaltos do Sul. Wells tem o
ósculo de um periscópio mesmo acima da cabeça, bastava-lhe levantar as
mãos e espreitar, mas quem é o parvo que se arrisca a perder um olho, dadas
as sacudidelas do cilindro? A bolha de plástico cheia de gel que lhe protegeu
o sono durante a viagem abriu-se como era suposto fazer, parte de líquido
foi reabsorvido pelos sistemas de drenagem, e o restante, dado que nada
funciona como é devido, anda a escorregar pela extremidade do módulo
juntamente com os restos de gel provenientes dos outros cilindros.
Ciel, Ciel, Ciel, murmura o velho Jules entre as barbas que são vastas,
mas Wells nem se atreve a virar a cabeça, não vá apanhar uma entorse antes
de se esmagar contra os desertos de Marte. O estafermo do velho chagou-lhe
o juízo durante toda a jornada até ao acelerador magnético do Congo,
aborreceu-o com bitates de crítica literária, acusou-o de inventar, de não ser
cientificamente rigoroso, como se o ginja o tivesse sido em tudo aquilo que
escreveu, como se bastasse um canhão para cuspir as pessoas até à Lua. O
jovem Wells bem que gostaria de ter outros companheiros de viagem, fossem
eles socialistas ou livres pensadores, mas não, as verbas foram reduzidas,
quem pagou por este módulo foi uma editora francesa de folhetins de cordel,
e por causa disso aqui está ele, o criador do romance científico lado a lado
com o famoso escritor das viagens extraordinárias mais uns quantos recrutas
agoniados, a vomitarem aquilo que comeram há um ano atrás, a contribuírem
com um pouco de si mesmos para o caos a bordo deste módulo desgarrado.
Nova sacudidela, rangidos de juntas, a sensação do estômago querer sair
pela boca e ir de férias para muito longe dali, qu’ est-ce que c’est ça, e o
piloto a explicar, lá da frente, “estamos salvos, a paravela de emergência
acabou de abrir...”
Não, Wells não está mesmo nada divertido. Uma reportagem jornalística
não devia terminar assim. Mas vá-se lá confiar na tecnologia roubada a um
polvo. Ainda por cima reformatada nas fábricas do Kaiser Guilherme. Se é
35
que ainda sobrevivem algumas destas criaturas pensantes nas bermas de
canalli quase secos. Se é que este mundo horrível ainda consegue manter um
sistema ecológico capaz de maravilhar Charles Darwin. Wells duvida. Duvida
que os sistemas de segurança do módulo funcionem, que as placas
sobreviventes de cavorite consigam travar o mergulho, que o piloto consiga
abrir as palhetas rotativas de travagem. Wells insistiu vezes sem conta que
um sistema de autogiro não seria funcional numa atmosfera menos densa.
Mas quem é que o quis ouvir? Não o froggy do Jules que advogava que não
havia problema nenhum em abrir uma janelinha em pleno vácuo.
Wells assenta as mãos sobre o colo, suspira, encomenda a alma a um
criador cuja existência sempre pôs em causa, espera que o estômago perceba
que a traquéia não é o seu lugar, encosta-se ainda mais na cadeira que se lhe
ajusta à coluna, solícita, fecha os olhos, desejoso de uma derradeira
cachimbada, e depois vem o estrondo, e mais outro e mais outro, portinholas
dos cacifos a abrirem-se e a vomitarem conteúdos, capacetes, espingardas,
comida seca e bexigas de água. Ciel, ciel, insiste o raio do francês. Os dois
soldados dizem coisas bem piores, invectivas que não podem ser formuladas
perante senhoras. O cilíndro bate uma vez, duas e três, faz carambola contra
um rochedo, desce a rebolar contra uma encosta, desce, desce e desce como
se a vertente nunca mais acabasse e imobiliza-se, enfim.
Espantado, Wells descobre que continua vivo. Que chegou a Marte. Ele,
o piloto, os dois soldados e o velho Jules, decerto a congeminar mais uma
das suas insuportáveis pastelices que se vendem lá na terra dele como muffins
quentinhos.
Wells continua vivo, mas não está mesmo nada divertido.
III
Os giroscópios da cadeira mantiveram-na direita em relação ao solo.
Mesmo em frente do nariz, do disco do mesmerizador, pouco ou nada resta.
Discreto, Wells sacode os pedacinhos de cristal colorido do colo, desaperta
os cintos elásticos que, com um estalo, vão recolher-se nos respectivos casulos.
A seu lado, o froggie cofia as barbas que felizmente pouco cresceram durante
a viagem em estado mesmérico.
De pé, old man, diz-lhe Wells, puxando-o por uma manga do fato-macaco,
ansioso por fazer qualquer coisa de produtivo, saber onde caíram, se é possível
contatar com o resto da frota expedicionária. E o velho autor, como se tivesse
andado toda a vida a beber cordiais e chocolate quente, acena que sim, afastalhe
a mão com uma sapatada seca e põe-se de pé. Este gesto tão viril por
pouco não o faz cair desamparado sobre Wells, que só agora se apóia nos
descansos dos braços da cadeira. O chão é curvo, claro. A grelha protetora
36
que permitia colar as botas ao solo. Soltou-se e foi parar lá ao fundo, contra
o casulo de pilotagem. O cilíndro encontra-se numa posição incômoda com
uma inclinação a vinte por cento.
Um dos dois soldados, John Carter, ianque de origem, olhos azuis,
madeixas loiras e queixo quadrado a emergir entre os atilhos do capacete de
couro, destaca-se da respectiva cadeira como se o choque sofrido tivesse a
equivalência de um mero piparote, vem até junto dos civis, puxa cada um
deles pelo respectivo cotovelo, e ei-los de pé, enfim, mas de cabeça baixa
,não vá ela bater contra as tubagens superiores que respingam gel, óleo e
outros fluídos para os quais é preferível não haver nome.
— Então, meus senhores, tudo em ordem?
— Merde, alors ! — responde o bom velho Jules, para mostrar vocábulos
proletários. — Quelle descente!
Wells, mais discreto, acena que sim, aponta para a cabina do fundo onde
deve estar o piloto, mas o Sargento Carter sossega-o, diz-lhe que está tudo
em ordem, os seus recrutas estão a tratar do assunto, a verificar as baterias
elétricas, os compressores de oxigênio, o estado dos escafandros.
Wells não é da mesma opinião, mas nem vale a pena argumentar. Estão
todos vivos e é o que importa. Vivos e a centenas de milhas a Sul do ponto de
pouso da frota invasora. Demasiado longe para sinais de luz. Só resta saber
se esse imponderável rádio, herança da tecnologia marciana, funciona aqui,
num campo eletromagnético diferente da Terra. Um campo magnético que
quase não existe.
Um dos soldados, o médico de bordo, tal como indica o caduceu bordado
na braçadeira, um tal qualquer coisa Moreau, aproxima-se a coxear dos dois
autores, cabeça a raspar mas tubagens retorcidas do topo do cilindro, de
mãos estendidas, extático, como se estivesse presente perante duas divindades.
— Meus caros senhores, é uma honra...Os vossos escritos serviram-me
de inspiração durante todo o meu curso...Que oportunidade magnífica, não
acham? Julgam que vai ser possível dissecar alguns corpos? Infelizmente, na
Terra a contaminação bacterial dos espécimes levou a uma corrupção
acelerada...Não tem graça nenhuma observar o cérebro de um invasor num
estado semilíquido, num tanque de formol... E o fedor, meus senhores, o
fedor que libertavam...
— Tivesse estado em campo, quando as máquinas caíram... — responde
Wells, recuando dois passos e pisando, claro está, os pés sensíveis do velho
Jules.
— Ah, difícil para um estudante da Sorbonne... em fuga, escondido por
baixo da Pont Neuf, com o Sena a arder, encontrar exemplares que se
37
deixassem examinar... Mas garanto-lhes, cavalheiros, que consegui
valentemente dissecar alguns cadáveres humanos, calcinados pelos raios de
calor, que vieram até mim a flutuar rio abaixo... E fiz uma descoberta
espantosa, que muito poderá servir à medicina... O raio de calor, àquelas
temperaturas, cauteriza as veias. Vaporiza tecidos... Os cavalheiros poderão
imaginar, tal qual como nos vossos romances sobre ciência e futuro, um
bisturi de calor, com um raio tão fino, tão preciso, capaz de eliminar qualquer
tecido tumular ou necrótico sem por isso danificar os tecidos saudáveis que
se encontram em redor...
— Sabe onde é que pode meter os seus bisturis, soldado Moreau? —
insurge-se o Sargento John Carter. — Não acha que tem outras obrigações
além de vir incomodar os nossos passageiros? Os kits de enfermagem estão
preparados? Os tanques de oxigênio? Os sistemas de apoio extraveículares?
O soldado Moreau enrubesce, fecha a boca, comprime os punhos, cala-se
a pensar na herança da família com dinheiro suficiente para comprar uma
ilha nas Índias Ocidentais. Uma ilha com um laboratório privado onde poderá
explorar à vontade todas as maravilhas da carne transplantada, sem que haja
sargentos labregos a incomodá-lo. O futuro é seu. O futuro pertence aos
cientistas, aos livres pensadores. Aos autores que o desenharam, como Mr.
Wells e Monsieur Verne aqui presentes.
E assim, calado e submisso, dobrado perante o corpanzil imenso do
Sargento Carter, Moreau entretem-se a recolher as peças dos equipamentos
que se espalharam pelo interior do cilindro.
A porta da cabina de pilotagem abre-se com um silvo de ar comprimido,
equalizam-se pressões, enfim, e dela escorrega o último membro do grupo,
o astronavegador Edgar Burroughs, o único a ter estado intermitentemente
acordado durante esta viagem de quase um ano. Tem nas mãos um bloco de
notas e um lápis de grafite — já que as canetas de tinta permanente se recusam
a funcionar em imponderabilidade — a testa meio amassada de um golpe
contra a lente do mesmerizador, um corte no sobrolho por ter batido no
periscópio, a pele das mãos escamadas pela luta contra as alavancas que
controlam os painéis de cavorite. Mesmo assim, coxo e maltratado, não deixa
de correr na direção dos dois autores, olhos a brilhar de comoção, bloco de
notas a subir e a descer.
— Ah, chegamos, meus senhores! Consegui até, humph, Arear, meu
Sargento. Não há raios de calor destas criaturas que consigam vencer a vontade
indômita de um caucasiano.
— Parabéns... — comenta Wells, preparado para um novo abraço. A
admiração dos fãs já começa a ser rotina.
38
— Os cavalheiros sabem que eu também quero ser escritor? — insiste
Edgar, o piloto. — Durante os meses em que estive acordado, tive a audácia
de escrever umas coisitas sobre Marte, para depois publicar nos funnies.
Nada de muito sofisticado, entenda-se. Nada ao nível das vossas obras, claro
está. Não tenho pretensões literárias. Aliás, trato de um Marte bem diferente
deste. Um Marte com uma civilização quase humana. E um império de
humanóides ovíparos. Vou chamar-lhe Barpoom, ou Barsoom...qualquer coisa
assim...
— Fascinante...— comenta Wells, com uma pontinha de desprezo pelos
supostos dotes literários deste habitante das ex-colônias. — Estou certo que
terá muito sucesso...
Jules não diz nada. Jules sabe bem o que são editores e o que eles fazem
a um neófito nas artes da escrita. Cofia a barba, acena com a cabeça e calase.
— Vai em frente, rapaz! — diz-lhe o sargento Carter, num tom entusiástico
e aprovador, enquanto estala os dedos na direção do enfermeiro Moreau
para que lhe trate dos golpes e equimoses.
O piloto Edgar senta-se num dos bancos inclinados de través, com as
botas a chapinhar nos fluídos de conservação que marejam junto ao solo.
Com olhos arremelgados contempla Wells e pede-lhe se será possível um
dia, logo que a oportunidade surja, de deitar os olhos sobre as notas que foi
tirando, a ver se, bom, se existe nelas qualquer coisa de aproveitável.
Que as divindades, se é que existem, nos livrem disso, pensa Wells, a
puxar pelo bigode, enquanto Moreau trata da saúde do piloto e o sargento
Carter espreita pelo periscópio para o que os espera lá fora. O ar no interior
da cabine cheira a requentado. Fede ao sebo de corpos que não se lavam há
quase um ano. Mesmo mesmerizado um organismo humano segrega gordura,
escama pele, metaboliza as papas que ingeriu. Wells tem a impressão que o
oxigenador foi à vida. Ele, e mais os três sistemas redundantes. Devem existir
milhares de mini-fraturas na couraça do cilindro por onde o ar se escapa.
Afinal não é impunemente que se desce em Marte. E as coisas nunca
acontecem como nos livros.
IV
E por fim ei-los de escafandros vestidos, adaptados dos mergulhos
submarinos, porcas apertadas, oxigenadores a funcionar em pleno, juntas de
cobre, vidraças duplas de vidro chumbado, baterias ao cinto, algálias
enroscadas nas pilinhas a respirar um ar que sabe a metálico mas que
felizmente só cheira ao próprio corpo e não ao dos outros.
39
Estão frente à comporta anterior do cilíndro, oposta à da cabina de
pilotagem, a tropeçar nas pilhas heteróclitas dos equipamentos que
sobreviveram ao choque, tendas estanques, compressores de ar, baterias
eólicas, esmagadores de ervas, pacotes de carne seca, foie-gras, farelo, folhas
de chá digestivo, grãos de café já moídos, produtos naturais anti-dierraicos e
os seus opostos, para o que der e vier; pomadas hidratantes para as mãos,
tonificadores de hemorroidal para os males do velho Jules e todo um conjunto
de peças de substituição, desde fios de cobre, lâmpadas de mineiro e lanternas
de luz coerente para sinalizar os satélites, que é suposto continuarem a deslizar
lá em cima.
Moreau e o piloto afadigam-se a desapertar os parafusos da placa exterior
da comporta, borrifando-os de respingos de óleos e solvente, dado que o frio
do vácuo e o impacto contra o solo afastaram-nos ligeiramente das devidas
posições. E quando esta, enfim, se abre, todos são obrigados a apertarem-se
no exíguo espaço que leva à comporta exterior, enquanto Moreau fecha a
primeira e Edgar clica inutilmente no interruptor da segunda.
— Tanto excesso leva a estes problemas — comenta Jules, sem reparar
que o cinto do seu escafandro está a macerar as costelas de Wells. — Tudo
bem num submarino, como na minha história, para que se equilibrem pressões.
Mas aqui...em Marte?
— Já agora, porque não uma janelinha, aqui mesmo, no cilindro? — rosna
Wells, cada vez mais agastado. — Uma janelinha para arejar, como o
cavalheiro colocou na sua Da Terra à Lua. Basta abrí-la um bocadinho para
despejar um cão morto, e um bocadinho, entenda-se, não faz mal, não é? O
ar escapa-se devagar...
— Mon cher, Monsieur Wells — responde Verne, com toda a
condescendência que a idade lhe dá. — Juste une petite erreur... Nada de
mais, ninguém notou... E já agora, em matéria de erros crassos, explique-me
como é que um homem invisível pode ver, se os próprios olhos são invisíveis?
Vossa excelência deu-se ao trabalho de estudar os mecanismos da visão antes
de escrever a sua pretensa novela científica?
— Jules, old boy, os seus comentários apenas indicam que não entendeu
nada das minhas intenções. Toda a trama do Homem Invisível é uma metáfora,
e como metáfora deve ser entendida.
— Ah, estou a ver... A cegueira da cobiça capitalista?
Edgar endireita-se com um suspiro, os cilindros das costas raspam contra
os capacetes dos dois autores, levanta as mãos, pontapeia a comporta que
insiste em não se abrir, explica aos presentes que não há eletricidade no
circuito, que a bateria morreu, que vai ter de rodar manualmente o guião da
40
comporta exterior, que isso exige força bruta, se o sargento Carter lhe poderia
prestar uma mãozinha.
O sargento Carter não quer outra coisa. Está lá para isso. Para mostrar aos
decadentes europeus quanto vale o indômito músculo dos habitantes do Novo
Mundo. Abre caminho pelo meio de Wells e Jules, que nem se atrevem a
protestar, pisa uma ou duas botas, agarra-se ao guião e, com a ajuda do piloto
Edgar, faz força, insiste e insiste. E o parafuso que prende a comporta exterior
ao cilindro resolve dar de si. Ar começa a silvar pelas juntas calcinadas. Ar
que foge da cabina, apressado por visitar novas paragens. Um aro de luz
pálida fulge entre as juntas que se abrem. Os sons tornam-se abafados. Mas,
mesmo assim, conseguem todos ouvir-se uns aos outros. Neste espaço exíguo,
os capacetes tocam-se. E ao tocarem-se, transmitem vozes.
— Já agora — diz Wells, de modo a preencher o silêncio —, quando o
meu sargento espreitou há pouco lá para fora, através do periscópio, viu
alguma coisa interessante?
— Oh, nada de especial — responde John Carter, imperturbável e
pragmático. — Apenas Londres, acho eu...
V
Marte é uma cratera de escolhos ferrugentos, pó que se cola às botas com
maldade, ervinhas vermelhas a crescer por tudo quanto é lado, repletas de
pequenas pústulas inchadas cheias de oxigênio, debaixo de um céu doente
de icterícia.
O cilindro está encostado ao fundo da falésia por onde escorregou,
ensarilhado na seda da paravela, num ângulo de vinte graus, atrás dele ficaram
as palhetas partidas do cópetro de travagem, como que a provar que os
sistemas de redundância têm o defeito de combaterem uns contra os outros.
O cilindro é uma máquina que nunca mais se levantará do solo onde enfim
assentou, tanto mais que as placas soltas de cavorite devem estar neste
momento a entrar em órbita, rumo às novas aventuras.
Junto à curvatura do cilindro coberto de geada carbônica encontram-se
cinco escafandros. Para falarem uns com os outros são obrigados a berrar ou
a encostarem os capacetes como pequenas marradas de felinos desconfiados.
É fácil reconhecerem-se neste fim de tarde, com o sol minúsculo a querer
descer por detrás da borda da cratera. Todos trazem os nomes respectivos
bordados no peito em letras fosforescentes. Os escafandros não pesam tanto
assim. Filamentos de cavorite espreitam aqui e ali entre as pregas do fato,
envolvem os tanques de oxigênios, a bateria das lâmpadas, os cintos de
equipamento. Mesmo assim, o velho Jules protesta, vitimizado. Foram
precisos vários para o conseguirem arrancar ao tampão da comporta, que
41
agora jaz caída sobre o cascalho. Um fiozito de líquido escorre entre as juntas
maceradas, quase congelado. A civilização humana achou por bem copiar
ponto por ponto o modelo tecnológico da frota de ataque marciana. Os polvos
tinham enchido de água, por alguma razão desconhecida, o intervalo entre o
casco exterior e interior do cilindro. Embora ninguém conseguisse explicar
porquê, dado que a água era um bom isolante, os governos terrestres acharam
que a idéia até que não era má. E chegados a Marte, caso estivessem longe de
qualquer canal, até daria para beber e lavar louça e roupa.
— Cette cochonerie me fait mal aux épaules ! — vocifera Jules a quem o
queira ouvir.
Wells não quer, mas os restantes companheiros escutam o mestre,
deleitados. Explicam-lhe que as fibras de cavorite tornam todo o escafandro
mais leve, mais suportável. Mesmo que o utente se sinta como se fosse uma
marionete, pendurada pelos ombros.
Estão muito e muito para sul, sob a sombra de uma cratera de impacto
meteórico. Qualquer coisa como a 284.38 de longitude W e a 82.02 de latitude
S. À volta da borda da cratera, onde crescem as sombras, zumbem gigantescos
coletores eólicos suspensos em tripés. A descida catastrófica do cilindro
derrubou um deles. Agora está tombado e inoperante, com as pás coletoras
retorcidas e murchas. Aliás, não parece ser o único que deixou de funcionar.
Dos cinqüenta visíveis, só dez operam ainda, respondendo à brisa que sopra
lá no alto. Mas bastam dez para carregar o canhão térmico. De meia em meia
hora, com mecânica estupidez, a serpente metálica que compõe o topo do
canhão de cem metros de altura eriça-se no alto da torre, aponta ao céu um
olho vermelho de maldade e dispara. E ao disparar o ar estala, a geada
ambiente vaporiza-se, o céu enche-se do coruscar de uma luz que se assemelha
ao relâmpago e um traço branco sobe, sobe a direito rumo ao espaço exterior,
sem querer saber se vai acertar em alguém.
— Devíamos desligar aquela máquina infernal! — comenta o sargento
Carter, de olhos franzidos pela intensidade da luz, mesmo sob a vidraça
chumbada do capacete. — Pode ser uma ameaça para os nossos camaradas
que ainda estão a chegar...Em órbita...Correm o risco de ser abatidos tal qual
nós...
— Basta o meu sargento mandar e eu dou cabo daquilo! — exclama
Edgar, solícito brandindo o cutelo que tirou do cinto.
Wells abana a cabeça desesperado e desta feita até o próprio Jules concorda.
— Non, non, mon vieux ! O canhão está a ser alimentado por cabos elétricos
ligados aos coletores que vemos ali em cima. Os cabos transportam energie
galvanique. Muito perigosa. Parti-los com esse machado pode ser fatal.
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Melhor deixar tudo como está. La flotte d’invasion est dejá descendue. O
perigo passou. Aquilo está a apontar para o alto, não para nós...
— Sem contar que teria de escalar o prédio inteiro para chegar à base do
canhão.
Wells suspira. Quer lá saber do canhão. Interessa-lhe mais a estrutura em
pirâmide na qual ele assenta. No desenho imenso de um olho dourado meio
carcomido pelo tempo impresso em todas as faces visíveis da pirâmide. Nos
imensos portais, abertos de par em par, como se a construção no centro da
cratera fosse um templo aberto a todos os neófitos.
À espera da visita dos primeiros humanos.
Por todo o lado, erva vermelha. A erva que os marcianos trouxeram até
aTerra. Erva comestível, saborosa mesmo, quando cozinhada. Erva que pode
também servir de oxigenador depois de maceradas as vesículas que contêm
microquantidades do precioso gás roubado à atmosfera. E quando acabam
as zonas de erva, eis estruturas resinosas semelhantes a palhetas, umas sobre
as outras, numa altura de dez andares, como se fossem foles destinados a
chupar ar até às profundezas do mundo. Em tão grande quantidade que um
telescópio mais atento poderia vê-las de órbita.
O grupo contorna as muralhas feitas de folhas coralígenas, algumas ainda
a estremecer, numa lenta, lenta agonia, mas todas elas a finarem-se aos poucos,
com o tom viçoso rubro a ficar cada vez mais da cor do azeviche.
Estão unidos uns aos outros por um cabo Bell elástico, ligado ao carrete
do cinto, um meio de comunicação assaz desconfortável, mas que lhes permite
comunicarem a uma certa distância e fazerem-se ouvir. O velho Jules arrasta
os pés, apoia-se na bengala, que o seu editor insistiu que levasse. Wells segue
mesmo ao lado acompanhado pelo Medic Moreau, que ainda não se calou
com a sua teoria da carne “moldável”, mais à frente, armados da inevitável
mini-metralhadora Gatling, atentos a qualquer restolhada suspeita, marcham
em parelha o sargento Carter e o soldado Edgar, que ainda não parou de
despejar notas para o bloco. Como se isso fosse servir de alguma coisa,
pensa Wells. Como se a sobrevivência do grupo estivesse inevitavelmente
assegurada para toda a posteridade.
— Fascinante esta aplicação da biomecânica, não acha Mr. Wells? —
insiste a voz nasalada de Moreau através da grelha do fonador. — Estes
bichinhos foram especialmente criados para comprimir o ar e lançá-los nas
profundidades friáticas de Marte. Deve haver montes de túneis aqui por baixo.
Túneis por onde a água ainda escorre sem se evaporar. Como um formigueiro
para polvos. Um polvoeiro, e passo o termo. Pena que estejam a morrer
todos. Nem vale a pena escamar uma amostra. Uma coisa destas até que
43
podia servir no seu submersível, não acha caro Monsieur Verne ?
— Il y en a d’autres moyens... — responde Jules, ofegante, sem se dar
por achado.
— Certamente, meu caro mestre — insiste Moreau. — Mas pense no que
seria a nossa sociedade se os mecanismos fossem todos eles orgânicos.
Serventes símios, com cérebro alargado e transplantes de cordas vocais para
executar todas as tarefas domésticas. Gorilas para os exércitos de assalto e
trabalhos onde apenas fosse necessária a força bruta. Implacáveis homens
panteras como soldados de assalto. O fim do proletariado, da escravatura e
dos seus males. A humanidade livre para se poder dedicar às artes e às
ciências... Ponto final na divisão de classes responsável pelo horror dos seus
Morlocks, Mr. Wells. E, claro, claro, também seria possível explorar o fundo
dos mares na barriga de lulas e baleias...
— Como fez o Jonas... — resmunga Wells. — A descer aos Infernos no
ventre do Leviathan...
— Precisamente, meus senhores...E convém notar que os marcianos já
atingiram o ápex dessa ciência...que doravante será nossa...como paga de
todo o mal que nos fizeram...
Por todo o lado, ao mero toque de um dedo ou a vibração de uma pisada,
chovem palhetas murchas escamadas das muralhas. Na débil gravidade
marciana demoram que tempos a cair, mas quando caem, caem a prumo,
pois ali, no fundo da cratera, não sopra a menor brisa. O sargento Carter
encosta o capacete à colônia de microorganismos oxidados e o grupo inteiro
consegue ouvir pelos fonadores um débil arfar, um cri-cri de agonia de um
prédio vivo que ainda não se decidiu a morrer.
E de súbito, o céu incendeia-se lá para Oeste, por cima da borda da cratera.
O chão estremece, telúrico. Milhares de palhetas soltas desabam sobre o
grupo numa chuva outonal. Uma nuvem de pó cobre a baunilha crepuscular
do céu. Segundos depois, vem o estrondo abafado de uma explosão titânica.
— Que vem a ser isto? — insurge-se o sargento Carter, coberto dos
fragmentos necróticos da colônia oxigenadora.
— Ciel, pardieu, merde alors ! — exclama Jules, estampado no chão a
agitar as pernas e a bengala, sem dignidade nenhuma.
— Uma explosão...numa cratera aqui próxima... — conclui Wells. —
São os marcianos a fazer uma política de terra queimada...Só pode...
— Aqui, tão ao Sul ? — espanta-se Edgar, enquanto ajuda a voltar a pôr
na vertical a massa portentosa de Jules Verne. — Mas para quê? Julguei que
a nossa frota estivesse toda a pousar a Norte do Equador.
— E está... — concorda Wells. — Devemos ser os únicos nesta latitude.
44
O que não implica que os marcianos, se é que ainda existem alguns, estejam
a destruir provas, a queimar documentos...
— Ah, — concorda Jules, de novo em pé, a sacudir do escafandro areia,
folhas esmagadas e palhetas retorcidas. — Dispositivos de homem morto.
Bombas relógio como fazem os anarquistas. Tic tic tic boum!
— Mas se é assim — suspira o jovem Edgar, com o bloco de notas de
momento esquecido no chão —, não acham que corremos o risco de...
— Precisamente! — concorda Wells. — Estamos todos feitos ! Mais tarde
ou mais cedo. As coisas nunca são tão simples como as que enfrentam os
heróis dos seus pulps, meu caro Edgar...
Depois de ultrapassarem os blocos oxigenadores, dispostos em arcos de
círculo concêntricos a partir da periferia da cratera, como que para cortar as
correntes de ar e poeira, ei-los perante o parque de estacionamento, também
ele em arco, à volta da pirâmide central: Mini trípodes aos milhares. Com os
pés recolhidos contra o ventre como uma aranha falecida. Pelo menos Wells
considera que são mini trípodes, feitos para deslocação e não para a guerra,
como os monstros imensos que espezinharam Londres. Alguns estão a
desfazer-se em ferrugem, sinal que ninguém lhes mexe há muitos anos. Outros
parecem mais recentes, com um simples risco ou escamadela, as luzinhas de
aviso nos quadros de comando a pulsar num tom ambarino, rodízios e molas
a chiar num stand-by que desta vez será para sempre.
Curioso, Moreau inclina-se sobre o assento do mais próximo — não vá o
cabo Bell ensarilhar-se numa junta mais cortante —, enfia as luvas no interior
das cavidades cilíndricas que antes recolhiam os tentáculos, informa o grupo
que lá bem no fundo do receptáculo, onde os membros vestigiais dos monstros
conseguiam chegar, detectou alavancas e botões. Um processo de controle
demasiado complexo e inútil para um ser humano. Mas eficaz para quem
tem oito braços disponíveis.
Entretanto, Jules espeta a bengala no assento espumoso, faz notar como
ele é macio e submisso, sinal que a carne dos octópodes é frágil e que os
suportes estão ali para assegurar a sobrevivência do cérebro durante as agruras
e estremeções da locomoção.
— Já pensaram — insiste Moreau —, que uma espécie como esta não
poderia evoluir fora de água? O peso do corpo, do crânio, é demasiado para
a elasticidade dos tentáculos. Como é que se deslocaram antes de terem
máquinas capazes de fazer isso por eles? Onde é que estão os famosos oceanos
primordiais? Como é que transformaram guelras em pulmões?
— Só mistérios e perplexidades... — comenta Wells num risinho maldoso.
— A não ser...
45
— Mais dites, mon cher ami, éblouissez-nous avec les perles de votre
eloquence… — exclama Jules, a escarafunchar com a ponta espigada da
bengala as vísceras de uma caixa de controle posta ao ar.
— ...bom, a não ser que houvesse um meio de transplantar órgãos de uma
outra espécie...E colá-los onde antes só havia guelras. Mas...caso assim seja,
eis-nos perante um pequenino problema...
— Força, soldado Moreau ! — encoraja-o o sargento Carter.
— ...o pequenino problema é o que se vai passar com as gerações
seguintes... Duvido que os implantes, as modificações sistêmicas, tenham
um efeito hereditário... O Dr. Mendel fez experiências curiosas com
ervilheiras, sabiam? Sobre a transmissibilidade dos caracteres adquiridos...
Porém, se perdermos um braço, será que os nossos filhos também nascem
sem ele? Decerto que não...
— Há a considerar o caso do alcoolismo — comenta Wells só para causar
confusão. Este tipo de conversas em situações anômalas fazem-no pensar
que está preso numa novela do velho Jules, onde página sim, página não, o
leitor é atormentado com milhares de pormenores irrelevantes para o processo
narrativo. — Pois filho de pai alcoólico, é, em norma, alcoólico também...
— Question de mauvais sang, mon vieux ! — diz Jules, com o fôlego
recuperado. — Mas a mim, o que mais me interessa, é a mecânica deste
sistema locomotor. Expliquem-me por que é que uma criatura com oito
tentáculos se desloca num veículo de três pés?
— Não vejo o problema... — insiste Wells, num tom implicativo — Um
coxo faz o mesmo. Com a ajuda das muletas. Primeiro, o pé válido. Em
seguida, os apoios. E assim por diante. Talvez os marcianos precisem dos
outro cinco tentáculos livres para manejar outros sistemas do trípode. Como
os canhões de calor...
— Meus senhores — lembra o sargento Carter, observando a sombra que
se vai estendendo sobre a cratera. — Devido ao adiantado da hora, sugiro
que deixemos este debate para mais tarde, ok? Temos de procurar um abrigo
seguro antes que a noite caia e a temperatura ambiente desça ainda mais.
Falta-nos ver Londres antes de entrar na pirâmide...
— Parbleu, c’est vrai!
— O meu sargento não podia ser mais perspicaz! — comenta o soldado
Edgar com a espingarda assente na cova do braço, sempre a tirar notas e
rabiscos.
Wells sabe que devia ser essa a sua função. Cronicar. Reportar. Deixar
um fragmento de si mesmo para a posteridade. Mas não lhe apetece. Afinal
quer lá saber. A enormidade de tudo isto ultrapassa-o. Está perdido numa
46
cratera de um outro mundo, rodeado pelos destroços de uma tecnologia que
a humanidade raivosa veio roubar. Atormentado por uma sensação cada vez
mais avassaladora de dejá vu. Rodeado de provincianos, pedantes e arrivistas.
E com poucas horas de vida disponível.
Wells suspira, olha para o céu que escurece, esse céu quase coberto pela
nuvem de poeira libertada pela explosão distante, e ao olhar vê mais um
relâmpago de luz a refletir-se no lençol de grãos oxidados em suspensão.
Por baixo das botas, o chão gelado estremece devagarinho e lá no seu íntimo
sabe que a devastação continua, que as frias inteligências que outrora
governavam Marte prosseguem, mesmo mortas, numa campanha implacável
de destruição de provas incriminatórias.
— Então, vamos lá — diz-lhes, puxando-os pela corda Bell. — Se temos
que ir mesmo...
VI
O modelo de Londres — que o sargento Carter descobriu pela primeira
vez, à distância, pelo único periscópio ainda operacional do cilindro — é
quase perfeito, à escala, deformado apenas pelo círculo que controla a
pirâmide como um planisfério em forma de roda de carroça. Mas é
tridimensional, prédios, jardins, palácios e enxovias encontram-se
reproduzidos com minucioso cuidado, com uma altura de meio metro. O
grupo passa por cima de Londres com toda a cautela — à exceção do velho
Jules que não vê bem onde pôs as botas — e, ao passarem notam, que Londres
está dividida em zonas hexagonais, pintada com cores diferentes: verde,
vermelho, amarelo, como se os marcianos tivessem sentido a necessidade de
marcar setores muito específicos.
— Que vem a ser isto ? — pergunta o sargento Carter. — Os cavalheiros
têm alguma sugestão? Hexágonos? Por que não círculos?
— C’est un mape tridimensionnel — exclama Jules. — Et solide, quand
même…Une carte militaire…
— Óbvio que sim… — concorda Wells, olhando de esguelha para o
escrevinhar frenético do soldado Edgar. Irritante o tipo! — E as cores indicam
locais a destruir...Quanto aos hexágonos, bom, um hexágono tem seis pontos
de acesso, seis vetores de convergência...ao passo que o círculo poucos pontos
tem compatíveis com os outros círculos mais próximos...Em termos militares,
um mapa assim desenhado... — E depois resolve calar-se ao descobrir que o
tempo de atenção do grupo é limitado, que já passou a outros assuntos. Blast
them all!
— E o verde será para...
— Verde para arrasar por completo... Ali ao fundo o Palácio Real... Tower
47
Bridge... O Parlamento... estão pintados de verde. E foram de fato destruídos
pelos invasores...Vermelho para poupar... Mas garanto-vos que não entendo
o critério de escolha... Para quê ignorar certas zonas e arrasar outras?
— Talvez houvesse traidores entre os brits — responde Edgar, com o
lápis apontado na direção de Wells. — E os marcianos sabiam disso. Sabiam
que depois da Terra conquistada, a administração da população humana
sobrevivente teria de ser entregue a alguém...
— O cavalheiro importa-se de retirar o que disse? E já! — vocifera Wells,
de súbito patriótico, com a voz deformada pelo sistema quase inoperante do
fonador Bell.
— Então, soldado Edgar... — zanga-se o sargento Carter. — Quer ser
punido? Olhe o respeito! Alguém lhe pediu a sua opinião? Faço-lhe notar
que estamos a falar de aliados! A integridade do povo britânico não é para
ser posta em causa!
— Mas as zonas... A separação cromática...
— Caro Edgar — diz-lhe Moreau com uma palmadinha no ombro, o
outro braço estendido a afastar Wells de um conflito inevitável — nesta cratera
vemos Londres. Quem sabe o que não veremos nas outras? Uma cratera
dedicada a uma cidade da Terra, pas vrai, Monsieur Verne? Também elas
divididas em sistemas de cores. Com zonas a poupar e a calcinar... Os
marcianos morreram todos. Acho que nunca vamos saber ao certo qual o
sentido destas divisões...
— En effect... — insiste Verne, varrendo com a ponta da bengala as
miniaturas que fizeram a glória do Império britânico. E ao passar da ponta
de aço, os prédios desabam, submissos, com se estivessem ali desde há
milhares de anos a aguardar este sopro de destruição divina. — Zut, alors —
prossegue o indômito aventureiro, apontando com a bengala para um
hexágono mesmo em Picadilly Street. — E se o vermelho é, como afirmam
os cavalheiros, para poupar, o que me dizem a este aqui, que é definitivamente
escarlate?
Wells espreita-lhe por cima do ombro, deixa-se cair de joelhos e a náusea
volta a subir-lhe à garganta. Se pudesse vomitar, vomitava. Mas a verdade é
que não tem mais nada no estômago além dos relentos ácidos de uma papa
vitaminada que ingeriu há muitos meses atrás. Tem medo porque o velho
Jules está precisamente a indicar o local onde se situava o seu clube de
jornalistas, clube onde estava na noite em que os trípodes incendiaram
Londres. Uma zona demarcada com uma tonalidade dez vezes mais intensa
do que o vermelho desmaiado das outras. Como se... Como se...
E antes que Wells se possa levantar, desviar a atenção do soldado Moreau,
48
do piloto Edgar e do sargento Carter — como se fosse obrigação sua explicarlhes
a razão de ser daquelas marcas — , Jules, já desinteressado da descoberta
inexplicada, volta a dar sinais da sua argúcia:
— Não é que eu me queira meter ao barulho — lembra o venerando
autor, com uma bota a macerar a Catedral de Westminster e o dedo do braço
livre agora apontado na direção da boca da pirâmide já tão próxima. — Mas
vem aí alguém. Os cavalheiros importavam-se de prestar um pouco mais de
atenção ao environement ?
— Como?
— Vem aí alguém! E esse alguém, cavalheiros, não se parece nada com
um marciano!
O grupo vira-se em uníssono na direção da boca próxima da pirâmide. O
sargento Carter levanta a metralhadora, destravando o carreto das balas de
cavorite. O piloto Edgar artilha a Mauser. O soldado Moreau saca da
Winchester. Durante alguns instantes, ninguém consegue coordenar-se. Wells
tenta pôr-se de pé para acabar de tropeçar no cabo Bell que o une a Verne.
Dois dos cabos soltam-se, pondo ponto final nas comunicações do grupo.
Jules desaba de novo, desamparado, sobre Wells, espremendo-o contra a
curvatura de Regent Street. O logotipo das Edições Hetzel, debruado a ouro
na espádua do escafandro, do francês cola-se-lhe à curvatura da bolha do
capacete. Quer ver o que se passa, afastar a forma derrubada de Verne, que
apesar das fibras de cavorite e da débil gravidade marciana pesa que se farta.
Mas Verne comporta-se como aquelas baratas que uma vez de costas, numa
mais se endireitam. Limita-se a espernear. E a dizer sacrébleu. Enquanto
isso, os três soldados disparam, disparam e disparam.
E lá ao fundo, qualquer coisa parecida com um avestruz com pescoço de
serpente explode num atropelo de penas e respingos de linfa azulada. Parte
de uma asa feita braço separa-se do resto do corpo. Olhos enormes de cada
lado de um bico móvel, semelhante aos dos psitacídeos, arregalam-se num
estertor que é suposto ser de espanto. As patas enormes estremecem, dobramse
no sentido oposto, e a criatura tomba enfim, vencida pelo poderio bélico
dos indômitos guerreiros. O fato de não estar aparentemente armada não
conta para nada. É um monstro. E os monstros costumam ter finais como
este.
Wells consegue enfim afastar o corpanzil de Jules para o lado. Levantase,
meio a medo, receoso que o choque tenha rasgado o tecido impermeável
do escafandro; mas não, tudo permanece funcional. Bocados de Londres
colam-se ainda ao cinto, mas Wells só tem olhos para a criatura prostrada.
Tem as asas abertas, pernas ao alto, com as garras das patas enfiadas em
49
meias listradas, talvez para proteger os pés da inclemência do solo gelado.
As asas não servem para voar. Possuem dedos nas extremidades. Dedos
sensíveis, móveis, com várias articulações. Ao peito carrega um fole que as
balas perfuraram. O fole funciona ainda, asmático, comprimindo um ar
rarefeito na direção dos pulmões. O fole faz lembrar um acordeão cheio de
botões e luzinhas. Na mão inteira, encharcado em linfa azul, está um paninho
branco.
— Bonito serviço — diz Wells, sem que ninguém o ouça, pois o cabo
Bell continua desligado. — Será que ninguém reparou que este infeliz estava
a render-se?
— Ciel, un autre demon! — comenta Jules, que resolveu levantar-se sem
a ajuda de ninguém.
Solícito, Moreau volta a ligar os cabos, restabelecendo as comunicações.
Depois, guarda a pistola no coldre, debruça-se sobre o cadáver que fumega,
aqui e ali, através das crateras provocadas pelos micro-dardos, toca-lhe com
a ponta dos dedos, comprime o fole que entretanto deixou de funcionar e
comenta a frio:
— Interessante, meus senhores... Aqui está uma outra espécie... Um
avídio... com órgãos manipuladores... talvez mesmo mais eficazes do que
os dos nossos marcianos... tomem nota destes dedos... seis ao todo... E
perigoso, decerto... reparem na curvatura do bico... feito para estraçalhar...
Quanto a este fole, deve funcionar como um compressor de ar. Facilitalhe
a respiração onde a pressão atmosférica for inferior à norma. Uma variante
biomecânica... interessante... E perturbador...porque a minha teoria da carne
plástica, sugeria um órgão transplantado... nunca uma máquina ligada ao
corpo...
— Estava a render-se — insiste Wells.
— Meu caro senhor — ralha o sargento Carter. — Essas decisões
competem aos militares, não ao civis. Muito menos a jornalistas e escritores.
Esta coisa estava a carregar na nossa direção. Com as garras artilhadas.
Estamos em pleno território inimigo. Que queria que nós fizéssemos?
Parlamentar? Better sorry than dead, não acha ?
— De qualquer modo é curioso — diz Verne, dando um ar da sua graça.
— Esta criatura não participou na invasão da Terra. Os marcianos até agora
esconderam-nos a verdade da sua existência... Como se...
Moreau, ainda de joelhos, segura no pescoço mole e serpentóide do
alienígena em busca de um cérebro, que decerto não cabe na extremidade
esguia onde estão localizados bico e olhos. Vê-se que está morto por sacar
de um bisturi e começar uma dissecação in loco. Mas acaba por suspirar,
50
resignado, num som que o fonador interpreta como um silvo.
— Onde é que está o cérebro?
— Cérebro? — insurge-se o sargento Carter. — Você acha que essa coisa
pensa ? Não será antes um animal de ataque? Uma espécie de cão de fila?
— O cérebro estará noutra parte do corpo — sugere Wells. — Não é
obrigatório que a massa cinzenta se localize junto à boca e olhos. Isto é, ou
melhor, foi, um ser inteligente. Capaz de perceber que somos humanos. Um
ser que se veio render. Que queria avisar-nos de qualquer coisa. E que os
cavalheiros, como de costume, resolveram destruir...
— Mr. Wells. As suas insinuações começam a pesar — diz o sargento
Carter, afastando-o com uma palmada no ombro.
— Messieurs, n’oubliez pas que Mr. Wells est mon invité — avisa Jules
conciliador. — Convidado pelas Edições Hetzel que pagaram pela manufatura
deste cilindro. Que mesmo que discordemos daquilo que diz, deve ser tratado
com respeito...
— Em parte concordo contigo... — prossegue Moreau, escarafunchando
nas partes íntimas do avídio, desta feita em busca de órgãos sexuais ou
qualquer outro meio de reprodução. — Mas eis-me perplexo... Bom... os
octópodes marcianos têm sangue com glóbulos vermelhos. Sangue em muito
semelhante ao nosso. Alimentam-se desta erva vermelha, uma parente da
nossa couve. São susceptíveis a doenças humanas, como prova a bactéria
que os destruiu na Terra. Mas já é mais difícil de explicar a presença desta
criatura. Não existe no nosso mundo nada que se lhe assemelhe. É diferente.
Como se...
— ... viesse de um outro mundo — sugere Wells, olhando de esguelha
para um sargento Carter, majestoso na sua masculinidade, de mãos apoiadas
no cinto.
— Exato — concorda Moreau. — As teorias de evolução explicam muita
coisa. Os ossos dos Leviathans que têm sido encontrados na África Central.
Porque morrem certas espécies fora dos seus meios naturais. Porque já não
há pássaros Dodos. Acredito piamente, o meu sargento que me desculpe a
heresia, que o mundo não foi criado há seis mil anos atrás, à hora do chá.
Que é muito, muito mais antigo. Que todas as espécies participam do mesmo
esquema de inter-ajuda... Mas Marte é um paradoxo.
— Comment ça ? — pergunta Verne, para preencher o silêncio.
Wells sabe, mas resolve calar-se. A sensação de dejá vu é cada vez maior.
Paranóia, como diria o vienense Dr. Freud. Simples paranóia...
— Um planeta necessita de uma pirâmide de espécies... uma pirâmide
que inclua na sua base o animalúnculo mais simples e vá daí até ao mais
51
complexo... Mas em Marte, não há nada... Não existe cadeia evolucionária...
não se detectam hierarquias...só octópodes. Estas couves vermelhas...Aquelas
barreiras coralígenas... e agora... isto... Como se... como se...
— Todas estas espécies tivessem vindo de outro lado... — diz Wells para
o ajudar, já que o resto do grupo resolveu calar-se num silêncio chocado.
— Exatamente. Como se os polvos marcianos tivessem vindo da Terra
numa passado profundo, mais os corais, mais as plantas... Enquanto que este
passarão...
— Porquoi pas de Vénus ? — sugere Jules, sempre oportuno. — Vênus
deve ter florestas por baixo das nuvens. E oceanos. E uma civilização
avançada... Os Venusianos visitaram a terra, recolheram os polvos primordiais,
trouxeram-nos para Marte, e...
— Pois — resmunga Wells. — Só pode... Excelente argumento para uma
novela... Força, meu caro Jules... Cedo-lhe todos os direitos...
— Vous rigolez encore, Monsieur Wells. Mon oeuvre c’est scientifique.
Moi, je n’invente jamais !
Antes que Wells possa dar-lhe a merecida réplica, a torre no topo da
pirâmide aproveita para disparar de novo contra o turbilhão de poeira que
cobre o céu. Grãos ferrosos vaporizam-se em cintilações de quatro de Julho.
O sol, tímido e pequenote, mergulha sob a borda da cratera rumo ao outro
lado do mundo.
E as luzes acendem-se, como num anfiteatro. Lá em cima, junto aos
coletores eólicos, chapas em arco, até ali baças, incendeiam-se num brilho
que lembra o sol equatorial. Começam por fulgir como a lua, mas é uma
intensidade lúmica que cresce, cresce e cresce, como se no interior das chapas
houvesse um gás capaz de se incendiar num furor frio, até toda a cratera ficar
iluminada como um dia de verão na velha Terra. Algumas das chapas
permanecem negras e baças, riscadas pelo tempo, estaladas pelos impactos
micrometeoritos, derrubadas por uma qualquer tempestade de poeira mais
violenta. Por causa delas, existem ainda zonas de negrura a assombrar a
estrutura da pirâmide. Mas a face dianteira está bem visível. E só então o
grupo percebe o desenho imenso de um olho, mesmo sobre o portal. A imagem
de um olho dourado a brilhar de raiva.
Fim da primeira parte
Não perca a continuação no próximo número.
João Barreiros é professor de Filosofia em Portugal. Escritor e Tradutor.
Vencedor do Prêmio Nova com os contos “Um dia com Juliana na
Necrosfera” e “A arder caíram os anjos”.
52
Marco A. M. Bourguignon
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www.scarium.hpg.com.br
53
Em 1997, foi lançada a ficção científica
com elementos de humor
M.I.B - Homens de Preto (M.I.B -
Men in Black), dirigida por Barry
Sonnenfeld e estrelada por Tommy
Lee Jones e Will Smith, que contava
a história de uma entidade secreta
do governo americano encarregada
de, eventualmente, hospedar
e principalmente monitorar a ação
de alienígenas na Terra. Como toda
boa conspiração governamental, isso
era feito sob os
olhos do público,
... o filme procura
explorar bem os mitos
populares sobre os medos das
possibilidades de monstros habitarem
os subterrâneos dos metrôs
e os interiores dos armários...
54
Renato Rosatti
porém sem o conhecimento
deles,
onde podíam
o s
tranqüilamente
estar convivendo
com um extraterrestre
ao nosso
lado e nem sabermos
disso. O roteiro
basicamente mostrava uma dupla
de agentes secretos combatendo
um monstruoso alienígena, vindo
numa nave parecida com um
meteoro, que se apossou do corpo
de um fazendeiro e cuja aparência
real se assemelhava a uma gigantesca
barata. Foi um grande sucesso
de bilheteria e trouxe belos efeitos
especiais, principalmente com
os estranhos alienígenas.
Agora, cinco anos depois, foi
produzida a seqüência M.I.B. - Homens
de Preto II (M.I.B. - Men in
Black II), que entrou em cartaz nos
cinemas brasileiros em 12/07/02,
com o mesmo diretor Sonnenfeld
e dupla de atores principais: Will
Smith e Tommy Lee Jones, que interpretam
os agentes secretos “J”
e “K”, respectivamente. Desta vez,
a missão é impedir
a ameaça
de uma temível
alienígena chamada
Serleena
(Lara Flynn
Boyle). Na verdade,
uma
Kylothiana perversa
e horripilante,
uma espécie
de
criatura repleta de tentáculos disfarçada
na pele de uma bela modelo
humana, e que está na Terra
à procura de um misterioso objeto,
a Luz de Zartha, que lhe conferiria
um super poder. Para auxiliála,
ela recruta outro alienígena disfarçado
de humano (interpretado
por Johnny Knoxville), que na ver-
dade tem duas cabeças, uma delas
escondida numa mochila às costas
. O agente “J” tornou-se agora um
dos mais importantes membros do
secreto órgão do governo que monitora
os ET’s e vai atrás do antigo
companheiro “K”, que havia se aposentado
tendo sua memória apagada
e vindo a trabalhar como um pacato
funcionário do correio
chamado Kevin Brown, em uma
pequena cidade em Massachusetts.
Novamente juntos, eles enfrentam
diversas aventuras e situações
hilariantes em meio aos alienígenas
mais esquisitos
do universo.
A trama de Homens
de Preto 2 é ambientada na cidade
de New York e também foi prejudicada
pelos atentados terroristas
contra os Estados Unidos, com a
queda fatal das torres do World
Trade Center...
55
Além dos
problemas normais
de seu
obscuro ofício,
o agente “J”
tem ainda outras
missões
a d i c i o n a i s ,
como administrar
a crise
emocional de um de seus parceiros,
o agente “T” (Patrick Warburton), e
enfrentar seu inevitável romance
com a bela Rita (Rosario Dawson),
funcionária de uma lanchonete e
testemunha de um crime entre alienígenas
(mais tarde, revelando ainda
uma importante participação na
trama).
São vários os destaques, como:
o divertido cachorro falante alienígena
Frank, que já havia aparecido
rapidamente no filme original e
ganhou mais espaço, desta vez
como um agente MIB, sendo o responsável
por várias cenas engraçadas
envolvendo seus
comentários; a minhoca Jeffrey,
um criatura alienígena gigante de
200 metros de comprimento que habita
os túneis do metrô; as pequenas
criaturas semelhantes a ratos
que vivem num mundo restrito ao
interior de um armário de aço (e
nesses dois últimos casos, o filme
procura explorar bem os mitos populares
sobre os
medos das possibilidades
de
monstros habitarem
os subterrâneos
dos metrôs
e os
interiores dos
armários); os engraçados
quatro
vermes extraterrestres
(que
também apareceram no primeiro filme),
que proporcionam vários momentos
de humor, principalmente
quando tentam ajudar os agentes
secretos no confronto com Serleena
e demonstram tremer de medo; o
momento onde alguns funcionários
dos correios revelam serem extraterrestres
numa brincadeira com os
profissionais desta área; e a cena
onde o agente “K” toca inadverti-
and Magic
(ILM), de George
Lucas. A trama
de “Homens de Preto 2” é ambientada
na cidade de New York e
também foi prejudicada pelos atentados
terroristas contra os Estados
Unidos no trágico e histórico dia 11/
09/01, com a queda fatal das torres
do World Trade Center, as quais apareciam
nas filmagens e tiveram que
ser substituídas evitando uma possível
reação negativa do público americano.
A atriz Famke Janssen estadamente
com o dedo uma esfera
brilhante, mostrando que um simples
toque pode ocasionar a destruição
de um mundo, dependendo
do ponto de vista. Alguns personagens
do filme de 1997 retornaram
agora, como o alienígena contrabandista
Jeebs (Tony Shalhoub),
que tem o poder de regenerar rapidamente
sua cabeça quando estourada,
e o chefe dos homens de preto,
o agente “Z” (Rip Torn).
Curiosamente, o veterano ator Peter
Graves (que atuou como fixo na
nostálgica série
de TV “Missão
Impossível” e
em vários outros
filmes “B” antigos
de horror e
ficção científica)
aparece como o
narrador de um
bizarro programa
de televisão
que exibe casos
insólitos e misteriosos,
além das participações rápidas
do cantor Michael Jackson (tentando
ser um dos homens de preto,
o agente “M”) e do próprio diretor
Barry Sonnenfeld (que não diz uma
só palavra, aparecendo como o pai
de família da casa onde o agente
“K” morava e que retorna para pegar
suas armas num quarto secreto).
Outra curiosidade é uma cena
no quartel general dos agentes
... Homens de Preto 2 acaba
sendo mais um divetido filme,
oportunamente lançado no
período das férias escolares no
Brasil...
56
MIB, onde o funcionário responsável
por guardar a entrada da entidade
está sentado, lendo despreocupadamente
um jornal enquanto, o local
está sendo invadido pela alienígena
Serleena. Na primeira página desse
jornal está escrita uma manchete
sensacionalista, algo irônico como
Satã escapa do inferno!, numa engraçada
relação com os fatos que
realmente estavam acontecendo na
história. O prestigiado maquiador
Rick Baker (que também trabalhou
no primeiro filme e em “Planeta dos
Macacos”, de
Tim Burton) foi
o responsável
pela concepção
fantástica dos
esquisitos alienígenas,
auxiliado
pelos efeitos especiais
da Industrial
Light
va escalada inicialmente
para o papel
da alienígena Serleena,
chegando até a
gravar algumas cenas,
mas teve que
abandonar a produção
por problemas
pessoais, deixando a
vaga para a bela
Lara Flynn Boyle.
Enfim, “Homens
de Preto2” acaba
sendo mais um divertido
filme, oportunamente
lançado no período das férias
escolares no Brasil, repleto de excelentes
efeitos especiais, apesar de
ter uma história curta (somente 88
minutos), simples e até banal. O roteiro
é de Robert Gordon é Barry
Fanaro, não traz elementos novos, o
que parece deixar evidente a intenção
dos realizadores em privilegiar
os efeitos e os fantásticos alienígenas,
que são realmente o grande e
maior destaque, ao invés de investir
numa história mais consistente. Tudo
parece muito previsível e a solução
final para concluir o confronto entre
Serleena e os agentes secretos “J”
e “K” é a esperada e não surpreende,
apesar da cena final ser muito
criativa e encerrar de forma magistral
o filme... Porém, apesar do fraco
roteiro, “Homens de Preto 2” cumpre
seu objetivo de entreter (e com
isso também lucrar...) e vale, principalmente
pelos alienígenas e pela presença
do experiente ator Tommy Lee
Jones, que foi um dos astronautas veteranos
em “Cowboys do Espaço”,
juntamente com Clint Eastwood.
Para quem procura uma diversão
modesta e com toques de humor,
numa aventura de ficção científica
com alienígenas bizarros, esse MIB
II pode ser recomendado como uma
boa opção, que igualmente já conquistou
o público e deu o sinal verde para
a realização de mais uma seqüência,
conforme já anunciado pela produtora
Columbia Pictures.
Renato Rosatti é editor dos fanzines
“Astaroth”, “Juvenatrix” e “Carnage”,
que publicam artigos de cinema
e literatura, contos, quadrinhos e
ilustrações do mundo do horror e
ficção científica.
rrosatti@ig.com.br
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Gian Daton
Um dos gêneros ficcionais mais
capazes de arrebatar multidões e criar
legiões de lãs é a ficção científica.
Algumas das maiores bilheterias de
todos os tempos são filmes de ficção
científica: ET, 2001, Matrix e Guerra
nas Estrelas. Alem disso, há os ruidosos
lãs de Jornada nas Estrelas, Arquivo X
e Perry Rhodan, que nos levam a
perguntar: o que a ficção científica tem
de tão fascinante?
Creio que a resposta pode estar em
duas palavrinhas básicas da cibernética:
informação e redundância. O ser
humano busca a informação, a novidade
e a originalidade. Foge da redundância,
da chatice e da mesmice.
Prova disso é o processo de hipnose.
Ela é um transe provocado pela mente
como uma forma de defesa contra um
estimulo altamente redundante.
O hipnotizador repete à exaustão as
mesmas palavras, sempre num tom de
voz monótono. A mente se nega a
continuar a receber o estimulo e
simplesmente desliga. Nós fazemos isso
no nosso dia-a-dia. Quando alguém
tenta nos contar algo que para nós é
redundante cortamos logo: “Ei, isso eu
já sei!”. Por outro lado, sempre
procuramos novidades. Essa busca de
novidade é a mãe da fofoca e de seu
irmão nobre, o jornalismo.
A ficção científica nos fascina por
apresentar um estímulo altamente
informativo: Através dela, temos
contato com uma realidade
completamente diferente da nossa:
roupas inteligentes, carros que voam e
viagens espaciais.
Tudo na ficção científica é informativo,
dos equipamentos sofisticados aos hábitos
das pessoas. Lembro de uma história da série
de livros Perry Rhodan em que os humanos
encontram seres que vivem em um planeta
alagado. Eles haviam desenvolvido lábios
inferiores salientes para coletar cogumelos
e usavam saias de madeira que lhes
permitiam ir aos locais mais fundos sem
afundar.
Mas nem todo mundo tem a mesma
abertura para a novidade. Pessoas de baixo
repertório preferem programas, livros e
filmes redundantes. O mundo
completamente diferente da ficção científica
as assusta. Quantas vezes não vemos
indivíduos que são absolutamente incapazes
de compreender um filme de ficção
científica? É informação demais para eles.
Não é à toa que algumas pessoas até hoje se
recusem a acreditar que o homem chegou à
Lua.
Se formos procurar os fãs de ficção
científicas, vamos encontra-los entre os
jovens (é notória a abertura para tudo que é
novo dessa idade) e entre as pessoas de maior
repertório: são elas que têm maior
necessidade de informação e as encontram
nas viagens espaciais de Jornada nas
Estrelas ou nos enigmas insolúveis de
Arquivo X.
Gian Daton é jornalista, professor,
roteirista e escritor. Mestre em
comunicação pela Universidade Metodista
de São Paulo.
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Não perca no próximo
número:
Entrevista
com
Gerson Lodi Ribeiro
(Presidente do Clube de Leitores de ficção Científica e Fantasia
Autor brasileiro de História Alternativa)
O Anjo da Morte
de Gian Daton
Novela de Ficção Científica
Um bom emprego
de Carlos Orsini Martinho
Conto de Terror