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Scarium MegaZine edição 01

Revista Literária de Ficção Científica, fantasia, terror e mistério.

Revista Literária de Ficção Científica, fantasia, terror e mistério.

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Exclusivo: Novela de João Barreiros

Scarium

MegaZine

Ficção Fantástica

Ano 1

nº 1

R$ 5,00

Renata & Cia.

Quadrinhos

Josiel Vieira

Jorge Candeias

Renata Ramirez

Rogério Amaral de Vasconcellos

ADÃO TINHA UM IRMÃO?


www.scarium.hpg.com.br

Editor:

Marco A. M. Bourguignon

Co-Editor:

Rogério Amaral de Vasconcellos

Jornalista Responsável:

Lara Chateaubriand

MTB: 18.232

Colaboradores desta edição:

Gian Daton

João Barreiros

Jorge Candeias

Josiel Vieira

Lailson

Miguel Carqueija

Miguel Perez

Renata Ramirez

Rogério A. de Vasconcellos

Sandro Perli

Endereço para correspondência:

Rua Castorino Francisco Nunes,

88 13/204 - Ilha do Governador

Cep. 21.921-544

Rio de Janeiro - RJ

Tel. 2467-2805

Editorial 3

Cartas 4

Coluna:

Balaio da Scarium 6

Rogério Amaral de Vasconcellos

Artigo:

MIB - homens de preto II 54

Renato Rosatti

Mini-contos:

Quando os papagaios

foram ensinados a falar

com inteligência 9

Miguel Carqueija

Share Girl 12

Josiel Vieira

Contos:

Corredor Fantasma 10

Renata Ramirez

Leonardo, O Borracho 31

Jorge Candeias

Novelas:

Adão tinha um irmão? 18

Rogério Amaral de Vasconcellos

Não estamos divertidos, 34

João Barreiros

Quadrinhos:

Charge 9

Sandro Perli

Raquel & Cia 13

Lailson

Última página:

O fascínio da ficção científica 58

Gian Danton

Ilustrações:

Capa e pág. 34 - Miguel Perez

Pág. 10 - Rogério A. Vasconcellos

Pág. 18, pág. 31, pág. 34 e pág. 53 -

Marco A. M. Bourguignon


Finalmente chegamos ao número 1

da Scarium MegaZine Agradecemos

aos leitores a boa aceitação da edição

número 0 e todo o apoio recebido.

Esperamos que o nosso público leitor

continue crescendo, por isso

divulguem a nossa publicação e

enviem suas críticas e sugestões para

que aprimoremos cada vez mais a

nossa Scarium MegaZine.

Nesta edição, fomos até o outro lado

do Atlântico e trouxemos dois

escritores portugueses para brilharem

em nossas páginas. Um é o escritor e

tradutor João Barreiros, com a novela

“Não estamos divertidos,” que será

publicada em folhetim. Ficção

científica passada em Marte, a história

resgata alguns personagens famosos,

misturando um pouco de humor e

ironia. O outro autor é Jorge Candeias,

com o fantástico “Leonardo, o

borracho”, que nos revela um

cotidiano estranho do personagem

Leonardo.

Temos ainda outra novela de ficção

científica, passada em Marte, do autor

de “Campus de Guerra” e nosso coeditor

Rogério Amaral de

Vasconcellosque nos faz uma pergunta

instigante. Afinal,: “Adão tinha um

irmão?” A resposta só poderemos

encontrar lendo o conto. Será que o

autor está certo?

Já Renata Ramirez, estréia em

nossas páginas com uma homenagem

a Ayrton Senna em “O corredor

fantasma”.

Miguel Carqueija e Josiel Vieira nos

trazem dois mini-contos: o primeiro

com um bem-humorado “Quando os

papagaios foram ensinados a falar

com inteligência” e o outro,

escrevendo nas linhas do “Cyber

Punk”, nos revela um futuro próximo

e possível de acontecer, em “Share

Girl”’.

Dois artigos recheiam as nossas

páginas. Renato Rosatti nos apresenta

uma crítica do filme “MIB - Homens

de Preto”, já em cartaz nos cinemas,

e Gian Daton escreve sobre “O

fascínio da ficção científica”, na

“Última Página”.

Para finalizarmos, temos “Raquel

& Cia.”, de Lailson, uma história em

quadrinhos com pitadas de ficção

científica, horror e humor. Uma

receita para um roteiro de sucesso.

Marco A. M. Bourguignon

editor

Todos os trabalhos são de propriedade de seus respectivos

autores. As afirmações feitas, explícita e implicitamente, não

representam a opinião editorial desta revista. Permissões de uso

e cópia devem ser obtidas diretamente com os autores.

3


Olá amigos da Scarium! Em primeiro

lugar, meus parabéns pela iniciativa

da revista! Sei como é complicado

editar e publicar uma revista,

ainda mais aqui no Brasil! Torço

para que a Scarium dê certo, e que

ela continue cada vez mais estimulando

e abrindo oportunidades para

os novos talentos!

Estou mandando esta mensagem

porque sou muito fã de ficção científica

(adorei os contos publicados na

Scarium nº 0, principalmente “O

Espreitador do Universo”, da Maria

Helena!), sendo que passei por uma

experiência no mínimo hilariante devido

a isso, e gostaria de compatilhala

com vocês.

Aqui onde trabalho temos uma impressora

geral, usada por todas as

pessoas do andar. Ao mandar imprimir

um arquivo, o sistema pede um

nome, para assim poder imprimir

uma página de capa que identifique

o autor da impressão.

Sempre que imprimo um arquivo

não coloco meu nome, e sim (como

forma de homenagem) o nome de algum

escritor de ficção científica.

Nunca tive problemas com isso pois

sempre fui eu mesmo buscar minha

impressão, então ninguém notava o

fato.

Da última vez mandei imprimir um

arquivo relacionado com informática

(padrão XML), loguei normalmente

(dessa vez como H.G. Wells), mas por

algum motivo esqueci de ir busar a

impressão naquele dia.

No dia seguinte me lembrei e fui

buscá-la, mas ela não se encontrava

na pilha de papéis impressos. Fiquei

4

pensando onde haveria de ter ido parar

minha impressão, até que o administrador

da rede enviou, para o email

geral da empresa (lido por todos os funcionários),

o seguinte email:

—— Original Message ——

From: “Suporte Técnico”

Sent: terça-feira, 24 de Abril de 2002

13:56

Subject: H.G.Wells trabalha conosco?

Pessoal,

Estamos com um job impresso de propriedade

do H. G. Wells.

Solicitamos a quem encontrar o famoso

escritor, que comunique a ele para

vir pegar seu trabalho impresso aqui no

suporte.

Parece que depois de seus famosos

romances (A guerra dos Mundos, A

Maquina do Tempo, etc) Wells, agora,

se interessa por XML, Java e etc.

Gostaríamos muito de trocar uma

idéia com este gênio da literatura.

Atenciosamente,

Suporte Técnico.

Um grande abraço para toda a equipe

e colaboradores da Scarium!

Ricardo Edgard Caceffo

ricardocaceffo56@yahoo.com.

Espero ter atendido sua solicitação.

Também foi um causo danado de bom!

Melhor ainda por, segundo você, ter sido

verídico e perfeitamente narrado. Antes

todo suporte fosse tão bem-humorado.

Valeu! Rogério Amaral de Vasconcellos.

Foi uma grande surpresa receber o

Scarium número zero! Eu já perdera a

esperança de ver um bom fanzine de FC

& cia. feito no Rio de Janeiro, parecia

que só São Paulo e Porto Alegre se

habilitavam!

Não gostei de todos os contos, o que é


natural porque os gostos variam. O

mini-conto da Marta Rolim, porém,

está perfeito, poderia sair em qualquer

antologia. Eu ainda prefiro o

romantismo, como nesse trabalho, ou

nos contos de Ray Bradbury, a uma

derivação escatológica como a de

Nilza Amaral em “Feto!”Acho uma

boa aquisição a presença de Renato

Rosatti; ele tem talento para resenhar

filmes e personalidades do cinema,

ajuda muito para quem queira

pesquisar. Deixo aqui os meus

parabéns para os editores, e os demais

que fizeram o “zereiro” número.

Miguel Carqueija - Rio de Janeiro -

RJ

Filatelia Sinistra.

Enviado por Fernandes Domingues.

Brasília - DF

Scarium Reponde:

Fernando, nosso MegaZine recebeu seu

material. Fica aqui para refletir, com esse

evento trágico que certamente marcou

época. Só lamentamos não poder aproveitar

sua outra curiosidade, pois nosso

espaço ainda não permite tanta extravagância.

Rogério Amaral de Vasconcellos.

Li de cabo a rabo, antes de Morfeu

me embalar em seus braços. Quase

todo o material publicado é de exce-

5

lente qualidade. Concordo e assino

em baixo o artigo de Anita Silva,

“Dicas Iniciantes em contos de

FC”. Como ex-professor achei que

a referida comunga das minhas idéias...

e a nota ou conceito foi “Muito

bom”. Os demais trabalhos receberam

uma graduação de “Bom”

e “Muito Bom”. Parabéns. A crônica

de Cláudia Furtado fugiu da

preposição fundamental da publicação.

Incluiu numerosas afirmações

em língua inglesa. Será que os americanos

e ingleses fazem isso em

casos de falarem da literatura deles?

Ruby Felisbino Medeiros - Porto

Alegre - RS

Essa mistura do fantástico com o

realismo brasileiro foi o que mais

me surpreendeu no conto do

Aimberê, “Lutando com Demônios”.

Espero ver mais contos do autor

na revista.

André Luiz - Brasília - DF

Estive visitando o site da Scarium

agora, e está muito legal. A revista é

diferente de tudo que já vi nas bancas,

atraente e super interessante. Vou ser

colecionadora da Scarium. Parabéns

pelo trabalho e pela iniciativa,

Beijão.

Marta Rolim - Porto alegre - RS

Obs.: Por motivos de espaço as cartas

estão sujeitas a edição.

Enviem suas cartas para

scarium@ieg.com.br ou para a nossa

redação.


BALAIO DA SCARIUM

Rogério Amaral de Vasconcellos

Prezados leitores da Scarium

MegaZine, estamos de volta ao Balaio,

com carga total!

Saímos do zero, direto para as

páginas da edição que inaugura esta

nova jornada literária, audaciosamente

escrevendo e quebrando

unhas no teclado para divulgar notícias

que possam atingir um público

variado, render maior visibilidade

a seus criadores e alienígenas em

geral.

O Balaio, longe de lipoaspirar,

engordou, ganhou uma versão web,

expandindo em terrenos virtuais.

Tudo para atender a demanda de

materiais recebidos. O que não puder

entrar nesta coluna – por absoluta

falta de espaço – você poderá

acompanhar pelo novíssimo BOL

(enganou-se quem imaginou que já

estamos sendo patrocinados, embora

não fosse de todo mal...), sendo

que a sigla significa Balaio On Line,

no site da Scarium, que está recheado

de novidades. Confira e comente.

Que tal começarmos com uma

notícia fresquinha, que visa premiar

a você leitor, que nos prestigia em

todos momentos?

Divulguem, DEFLAGREM, pois

a Scarium, em parceria com a SSPG

(vide matéria na contracapa ou consulte

a editora brasileira de Perry Rhodan

em atendimento@sspg.com.br),

6

estará brindando nossos leitores –

assinantes e visitantes do site – com

exemplares do destemido Terrano

que conquistou o universo e milhões

de fãs em todo mundo.

Aproveitando o embalo, se é para

premiar, que seja festa!! Em

www.scarium.hpg.com.br , de frente

pra zona do agrião, você encontrará

outra promoção imperdível.

Responda o questionário e aguarde

o resultado. Os felizardos receberão

edições da SSPG/Scarium, além

de brindes da maior série de ficção

científica de todos os tempos. Essa

promoção é por tempo limitado ou

enquanto nossos estoques agüentarem

(ver regulamento). Boa Sorte

aos participantes!

Indo mais fundo no Balaio, cada

vez mais rechonchudo (graças a vocês!),

colhemos as seguintes notas

de lançamento e novidades:

Prêmio - O Clube de Leitores

de Ficção Científica (CLFC) está

promovendo o Prêmio Argos 2002

para textos e edições de FC. Mais

sobre o Argos, leia na íntegra a matéria

e o regulamento disponível em

nosso site ou mande e-mails para

clfc@unisys.com.br.

Editora Ano-Luz nas Bancas -

Os livros da Editora Ano Luz, especializada

em ficção científica, terror

e fantasia, já estão disponíveis


nas melhores bancas e livrarias do

Rio de Janeiro.

Megalon 65 - Já está disponível

o n o 65, edição de Junho, do fanzine

Megalon. 30 páginas, formato

A4, apenas R$ 5,00. Uma

assinatura anual com quatro números

sai por R$ 19,00. Encomendas

e

informações:

ms_branco@hotmail.com , lembrando

que a tiragem é limitada.

Intempol - O designer gráfico

Octavio Aragão está de volta! Depois

do estrondoso sucesso desse

escritor carioca e polivalente homem

dos 1001 instrumentos, Octavio

ataca firme com o RPG

Gurps-Intempol. A

criança está nascendo

e promete

Concurso

Scarium/SSPG

7

ser mais um parto

de sucesso, ansiosamente

esperado

por seus pais e fãs,

com previsão para

lançamento até o início de 2003.

Para saber sobre os títulos da Intempol,

livros, graphic novell ...,

nada melhor do que contatar o próprio

autor em

oaragao@intempol.com.br.

Papêra Uirandê Especial 6 - A

revista tem 34 páginas, preço de

R$ 4,00. Encomendas e informações

para Rua André Dreifus, 109/

163 – bloco 2 – São Paulo-SP –

Cep. 01252-901 ou e-mail para Roberto

Causo em

rscauso@yahoo.com.br.

José Neves - Visitei o site destse

artista multimídia e é de estarrecer.

Entrem em

www.josecn.hpg.com.br e comprovem.

E se acharem meu queixo

caído por lá, me avisem!

SSPG - O correio – desta vez

não o virtual – bateu à porta. Com

um ano de publicação em terras

verde-amarelas. Atendendo os pedidos

desta coluna para divulgação,

recebi dois exemplares de Perry

Rhodan, volumes inéditos no Brasil,

editados pela caprichada SSPG

sob a batuta de um dos maiores entusiastas

e especialista

em PR, o mineiro

Rodrigo de

Lélis (até que provem

o contrário) .

Sempre uma capa

belíssima, única

no mundo para o

novo formato-livro adotado no Brasil,

o acabamento e verdadeira paixão

pela série infinita da editora alemã

VPM está decolando para o

sucesso. São 11 livros publicados

desse 11 o Ciclo chamado de O

Concílio, englobando o período de

3459 a 3460 DC (ou deveria dizer

PR?). Os leitores terão a chance

de encontrar bastante aventura

nessa saga que arrebatou multidões

e que agora a SSPG relança no

Brasil. O volume 9 (reunindo 2


episódios), o cabalístico 666 – Sob

o Domínio do Triângulo Solar,

de Hans Kneifel, retrata um vôo

para o núcleo da galáxia, com

parada obrigatória em uma armadilha

montada num transmissor de

matéria de proporções solares

(quem não conhece a série perceberá

que o universo é pequeno para

tanta imaginação); ainda no volume

9 temos o episódio 667 – O

Guardião do Eterno, do emblemático

e saudoso William Voltz,

onde testemunhamos o Transmissor

Arquimedes

como foco de

acontecimentos e

mais mistérios de

proporções cósmicas.

O último volume

que aportou

por aqui foi o 10 o , reunindo os episódios

668 – Operação Bebê

Solar, de H.G. Ewers, mostrando

como nosso Sol ganhou uma irmãzinha,

e o 669 – Base Deus do

Trovão, escrito por H.G. Francis,

com uma aventura de espionagem

de tirar o fôlego.

Lembro que todos volumes de

Perry Rhodan podem ser lidos isoladamente,

mas ganham maior sentido

como série. Maiores informações

em www.perry-rhodan.com.br ou

atendimento@sspg.com.br. E uma

boa leitura, pois é entretenimento na

11 livros

publicados

8

certa. Encomendem sem susto e indiquem

aos amigos.

Sobre o novo site da E-nigma

(http://ficcao.online.pt/E-nigma), o

concurso de Quadrinhos de Pernambuco,

o lançamento de FC em CD-

Rom, a Exposição do Cerito, matéria

completa dos fanzines Megalon,

Papêra Uirandê e Dragão Quântico

e outras novidades, o Balaio On

Line o aguarda! Fique por dentro e

participe do movimento.

Pois é, amigos.

Estamos chegando ao final de

mais um Balaio. O

leitor faz a Scarium

MegaZine. Continuem

mandando

cartas, comentando

nossos artigos e notificando

se em sua

cidade existem distribuidores

interessados em ampliar

nossa rede.

Foi bom estar com vocês, escrever

pra vocês, mas é preciso cuidar

do leitinho das crianças, que mamam

como certos políticos. Até a próxima

edição do Balaio, em sua revista

Scarium MegaZine ou em nosso espaço

virtual de todos os clics, agora

com prêmios para vocês.

Fui...

Rogério Amaral de Vasconcellos

rogamvas@radnet.com.br ou


Quando os papagaios

foram ensinados a falar com inteligência

Miguel Carqueija

— Cuidado! Cuidado! Alienígena canibal chegando! Fuja depressa!

— Ué! Onde é que você aprendeu a dizer essa boba... AAAAAH!!!

— CHOMP!CHOMP!

9


Renata Ramirez

Por um momento a multidão ululou. Corpos eram arremessados por seus

próprios pares, deixando livre o caminho. Um carro, talvez uma Mc Laren

vistosa, passou chispando pelo corredor humano, tendo uma figura sentada

ao volante, guiando com uma só mão, fazendo na outra uma bandeira tremular.

Foi mais fácil distinguir a bandeira brasileira que a face incoberta dentro do

aquário-capacete, mas muitos jurariam — com aquela certeza paranormal

— que não se tratava dum sósia e sim do genuíno...

Um velho, trajado com a indignidade dum envelhecimento precoce, tinha

saído duma limousine branca direto para uma cadeira de rodas motorizada.

Ao seu lado, seguia uma bela enfermeira, com um olho no paciente e outro,

desconfiado e nada benevolamente, na multidão.

Ele estava ali, naquele dia, muito conhecido locutor esportivo, traído por

suas lembranças. E também por uma carta anônima que, a despeito dos

conselhos médicos tentando demovê-lo do intento, tramaram contra sua

inércia habitual, levando-o para aquele exato lugar e a precisa hora que seu

caríssimo relógio de outro não ocultava.

Onde viu a multidão se fender e de dentro dela espirrar o F1, por um

momento pareceu-lhe que as pernas tinham acordado de um longo sono,

quase obrigando seu corpo a se erguer sobre o leito móvel. Quase...

Ao passar dos 300 km/h o fórmula-1, com seu piloto encravado no cockpit,

10


deixou para trás o velho que voltou a ser o entrevado de sempre, com um

ressalvo: daqueles lábios, como um ruga fendida, saiu algo que jurara nunca

mais pronunciar:

— Aceleeeeeeeeeeeeeeeeeera, A...

Mas a poeira no rastro do veículo movido à paixão, na velocidade do

pensamento, aliado a sua insuficiência respiratória, tramaram contra, fazendo

com que se calasse, ou melhor, a uma sucessão de arquejos que a diligente –

e cara – enfermeira lutou e venceu ao aplicar-lhe alguns CCs de um líquido

âmbar, direto na veia estufada do seu pescoço.

Aquilo o fez delirar um pouco. Novocaina sempre agia assim com ele.

Todavia não sabia se era o efeito costumeiro da medicação ou seus sentidos

exortados pela visão daquele rosto que, milésimos de segundo, passou por

seus olhos arregalados.

Quando o torvelinho de fumaça se dissipou no vácuo, já se transformando

numa esquecida brisa, a multidão se desconcentrou, e a enfermeira ruiva

obrigou-o a voltar para o carro, sendo então ai o momento que seu olhar

vacilou por uma lado, derivou para o outro, até focar num prédio abandonado.

Uma criança travestida de gente equilibrava-se num carrinho feito de restos

de caixotes de feira, dotado de rodas de rolimãs gastas, tonitroando ladeira

abaixo, vomitado duma garagem naquela relíquia abandonada que alguns

ainda conheciam (inclusive o velho) como prédio da Rede Globo.

A voz do menino chegou até ele ao mesmo tempo que as lágrimas aos

seus olhos. Era um ‘tá-tá-tá’ interminável, inconfundível, impossível... O

moleque fazia aquele matraquear, provavelmente ensinado a ele por um vídeo

antigo ainda em funcionamento nalgum daqueles quartos interditados do

extinto império do Jardim Botânico, onde a emissora carioca se criara e fora

sepultada.

E o velho, já praticamente alojado no compartimento especial da limousine,

saboreou o gosto de suas lágrimas e também experimentou o arranhar de sua

voz, ao repetir:

— Tá-tá-Taaaaaaaaaa.

Renata Ramirez - de Varginha, por um tempo capital mundial dos ETs e

Chupacabras, chegou esse pequeno conto de fantasia envolvendo

personagens que podem - ou não - fazer parte de nossa história recente.

11


MINI-CONTO

Josiel Vieira

— Mas eu pensei que você me amasse...

— A ilusão foi sua. Tudo tem um fim...

— Você não passa de uma interesseira filha da mãe!...

— Vou sumir de sua vida...

— Não vá embora... por favor! Eu arrumo a grana que você precisa nem

que tenha que roubar e matar! Droga, eu te amo!

Ela sorriu:

— Querido, você é o menino mais bonzinho que já conheci. Você nunca

faria isso, mesmo por amor.

— É. Eu acho que você tem razão.

— Foi bom enquanto durou. Mas, entenda: os melhores sonhos são

aqueles que acabam e deixam um gosto de saudade em algum lugar de seu

coração.

O olhar dele era uma interrogação suplicante. Por que as coisas precisam

acabar justamente no melhor? Ela sorriu:

— Lamento.

E foi desaparecendo lentamente até restar somente o sorriso, que também

se desvaneceu. No ambiente virtual em que o menino de quinze anos estava,

uma mensagem apareceu:

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proibido para menores de 18 anos

precisa de interface cerebral para ambiente 3-D

12


13


14


15


17


Rogério Amaral de Vasconcellos

I

A equação que apareceu na tela, diziam, tinha quase tantas variáveis quanto

as estrelas no céu. Besteira! Se tivessem o trabalho de contar – e isso nunca

se poderia esperar dessa cambada, sendo tão visceralmente impregnadas pela

indolência – perceberiam que a ordem olímpica daquelas frações algébricas

não excedia a meros 1012...

Discípulos estúpidos, continuou a pensar. Mas foi chamado de volta à

sala de aula por uma pergunta comum feita pelo mais comum deles. Sua

maldição era sofrer dum impulso interior que o obrigava a fazer de sua profissão

um sacerdócio...

— Mestre — questionou –, de que valerão essas fórmulas, esse batalhão

de cifras, no mundo que estamos tentando criar?

— Yogo292VU21-031 hoje receberá um crédito extra – em vista do pasmo

geral, em especial ao tempestuoso aluno, o escolástico acrescentou: —

Esperei por essa pergunta desde há muito. Finalmente ela, veio!

O interpelado, gabando-se com os demais colegas, empertigou-se visivelmente,

parecendo crescer meio palmo no nicho onde se situava o console,

entrando em chats de felicitações com os mais próximos e recebendo gifs

animados representando línguas zombeteiras dos mais distantes.

— Yogo? – Foi vocalizado o chamado.

18


— Mestre! – Prontamente respondeu, mascando algo furiosamente, cheio

de um entusiasmo que mal sabia reter no peito de tão grande, naquela fama

que nunca imaginara conquistar, principalmente junto a maior autoridade da

esfera estudantil, dono da cátedra mais difícil da Faculdade do Conhecimento.

— Do alto de minhas onze e meia décadas de existência, posso atestar

com absoluta franqueza...

A expectativa se espalhou por cada um dos alunos da classe, com Yogo

ainda emitindo petardos pela infovia para cada um dos consoles ligados em

rede; tentava mascarar tal gabolice com uma péssima senha de bloqueio

cifrado, fazendo o velho professor balançar a venerável cabeça e corroborar

uma igualmente antiga certeza: quando se pensa que a ignorância já atingiu

seu limite extremo, pouco mais tendo a revelar, eis que esta surge do nada,

mostrando sempre que infinito é o único limite possível.

Foi, então, articulando calmamente sua conclusão, que apagou todas aquelas

frases idiotas que entupiam as telas e visavam tão somente um ridículo

quanto inútil senso de orgulho barato temperado com uma porrada de futilidades

sem autocontrole.

— Y-o-g-o – silabou: — VOCÊ É UM IDIOTA!

Da mesma forma com que a água um dia fora transubstanciada em vinho,

rezava assim a mitologia, aquela classe viu seu indivíduo mais obtuso, elevado

segundos antes a algum patamar hiperbólico situado nas nuvens, indo

numa queda vertiginosa rumo ao lodo de sua notória insignificância.

Não precisara mais de um comando subsônico digital para imprimir nas

50 telas de cristal líquido um decrédito, que se transformaria em perda de

pontos definitiva se não interrompessem todos aqueles decibéis extras, e

lixo informatizado que não tinha nada a ver com a matéria.

O resultado foi imediato. Não achavam ser uma simples ameaça. Desde

os dois bimestres anteriores, à entrada no Terciário, que sabiam disso.

Com aquele professor não havia blefe. Sua fama o precedera muito antes do

Liceu aceitá-los em suas salas-quartel e ali não imperava qualquer conceito

de direito que não fosse ditado sob a ótica dele. Regime total de internato,

pancada, incineração, rebaixamento ou diploma, essa era a decana base do

ensino em Marte. Se você não gozasse de um privilégio bem alto, mesmo

assim sem garantias em se tratando daquele professor, o destino já estaria

selado.

Todos eles, como que movidos por um só corpo, uma única determinação,

cruzaram os braços. Todos convergiram o olhar para Yogo, a peça-chave daquela

brincadeira coletiva ou, como diziam os antigos, a “bola da vez” do jogo.

18


— Sua besta vadia e mascador de porcaria – ouviram o vaticínio no tom

mais amável que o mestre possuía. Este aproveitou para inibir o comando de

gravação no cristal de memória. Conseguiu assim um melhor rendimento em

termo coercivo, facilmente comprovado no breve sufocamento do aluno no

engolir do tabacco-chiclete. — As matemáticas e as ciências afins não existem

por obra e graça de nossa aptidão em fazer uso delas. Estão aí desde

antes, e continuarão bem depois. Saber lê-las, e construir algo baseado nelas,

é um privilégio reservado a poucos. Posto isso, imbecil, não me venha

apedrejar aquilo que tirou seus bisavós daquele planeta infestado — e nesse

ponto não precisou apontar para a imagem da Terra reproduzida no móbileholograma

do Sistema Solar que preenchia o fundo recôncavo da sala.

Yogo, tendo engolido tanta saliva pra liberar o fluxo respiratório comprometido

pela goma negra ingerida, viu crescer a impressão de ter um mar

inteiro borbulhando em seu estômago. Sabia que aquilo sairia nas fezes ou

através de uma sonda retal; até lá, o desconforto fisiológico seria o pior

possível. Mas existiam coisas bem piores!

Se pensou que a repreensão ficaria só naquilo, o que já era ruim se agravou.

O ”algoz licenciado”, indo até onde o aluno estava plugado, desfez

todas as conexões neurônio-virtuais puxando pela orelha e arrastando Yogo

para a direita — toda turma indo atrás, como convinha a um castigo exemplar

— até o limite da bolha blindada semi-translúcida que isolava o habitat.

Foi uma maneira de mostrar que o castigado estava enganado à enésima

potência.

Até na hora de aplicar um corretivo o professor conseguia ser didático!

Um “dom” nascido dum ato pensado ou patologia clínica posta em ação em

nome do ensino? Ninguém nunca quisera pôr à prova a resposta. O castigo

exemplar tinha eloqüência própria. Nisso estavam totalmente certos.

— Olhe esse ambiente hostil, pois isso já foi pior... — viram-no apontar

para um distante grupo de vulcões fumarentos, a teia de refletores solares

numa planície coberta de fissuras, um trecho duma retorcida, porém densa

vegetação espalhando-se num crescente, sobre e sob o terreno irrigado. —

As transformações que nós, descendentes dos seres da Terra, ainda estamos

promovendo nesse planeta para nosso benefício e de nossos filhos. Do micro

ao macro tudo é ciência, equação em ação; leis físicas conjugadas a um

planejamento estratégico para possibilitar um máximo de rendimento com a

menor agressão e perda possível no ecossistema, evitando retrocessos indesejáveis.

Sem isso, energúmeno, sem base considerável no cálculo, razão e

confiabilidade nas respostas, tudo seria mera utopia, uma fantasia sem limites,

produto daqueles livretos ensebados que seus esquálidos miolos tanto

19


gostam de desovar nos corredores do rancho quando deveriam forjar melhor

conhecimento em lugar de algo tão ficcioso.

Murmurando, quase inaudível, completou:

— Não acham que se eu quisesse uma multidão teria pedido uma?

De volta, acudiram aos seus respectivos assentos, reconectados, a exceção

do infeliz renitente. Sua vítima do dia foi conduzida de forma nada sutil

para um outro lugar ao mesmo tempo próximo e distante dali. Inclusive

ninguém fez qualquer objeção quando o mestre vaticinou: “Prova Surpresa!”.

Nada era tão esperado quanto aquilo. A surpresa, se tal havia, residia

num desconcertante gesto de mão do professor passando como se fosse através

de seu pescoço.

O exemplo de Yogo fora por demais eloqüente para norteá-los de outra

forma. Afinal, depreendiam que tinha sido jogado em um poço sem luz,

preso tardiamente após sua queda vertiginosa por algum campo

antigravitacional antes de atingir as profundezas do mesmo; o lugar, através

da persistente tradição oral das décadas de transição, medrosamente apelidado

de O Cu de Hellas.

Quando os monitores brilharam, mudando de tela para Operacional Delta,

o cursor iniciando os intróitos necessários para a execução da primeira

questão da sabatina que ninguém podia afirmar ser inesperada. Apesar da

atmosfera nada propícia foi impossível conter um risinho generalizado. Mas,

a medida que a frase “essa prova é dedicada ao patrono de vocês, Yogo, a

célula-máter dos imbecis” perdia sua vida útil e se apagava, materializava-se

o texto: “preparem-se para digitar, pois essa prova foi feita para medir o

coeficiente de réplicas dele que existe entre vocês e será levada na mais alta

consideração para determinar seu destino na Casta”. O que antes nascera no

riso de escárnio esvaiu-se numa coisa bem diferente.

Escamoteando os desusados e quase fossilizados teclados de um modelo

XT não simplificado, um tremor indisfarçável foi traído pelas conexões

“feedback” no martelar das teclas por cada um dos quatrocentos e tantos

dedos daqueles que compunham (com um único ressalvo) todo contingente

de aspirantes da sala 18 do complexo CDB-IV do ginásio Terciário em Novo

Congo.

Finalmente a chamada silenciosa se completara, nomes e senhas devidamente

registrados.

E disse o Mestre, a fim de incentivar seus pupilos, dando a eles, como

sempre, muito mais informação do que gostariam e estavam aptos para absorver

numa só talagada:

— Será um teste simples, em dois tempos. A rapidez de interação com

20


todos os sistemas de apoio citados determinará o sucesso de vocês. Não

vacilem. Não usem “loops” desnecessários. Sobretudo, não se preocupem:

um índice abaixo de setenta por cento de acertos somente pode provocar, no

mínimo, sua regressão para o nível alfa-primário junto aos outros debilóides,

acrescido da perda de alguns (muitos) privilégios da casta. Em alguns casos

críticos, nos que não forem bafejados pelo desejo de progredir, pode também

ocasionar o banimento para o Pelotão de Limpeza ou incineração, como

restos de comida suspeita de contaminação. A escolha é minha. Vamos,

animem-se!! Se houver incineração, vejam pelo lado bom, sobrará mais

vagas para o Liceu recrutar; se acontecer o banimento, não será o fim do

mundo também, pois, se exercitar outros músculos é o que preferem, aí está

uma vida plena em realizações, embora, tenha de confessar, sem conforto e

garantia de velhice de espécie alguma. É para isso que serve o livre-arbítrio.

Sentem o rabo e façam alguns “milagres”, pois a hora é essa! — Fez uma

pausa apenas para comprovar o efeito devastador de seu discurso antes de

prosseguir, num tom quase que desejoso de fazer cumprir tal ameaça já. —

Afinal, qual de vocês quer ir lá pra fora, em plena tempestade marciana, e

ajudar a polir os robôs cavadores na superfície do planeta?? Como sabem, o

recrutamento está sempre ávido por quem prefere doar seu corpo para as

chamas purificadoras sem aguardar o veredicto vexatório. Quem se habilita,

hein??

Como esperado, ninguém levantou o dedo ou qualquer neurotransmissor

arriscou confrontá-lo através de um comando teclado, sendo que o único

gaiato passível disso jazia incomunicável no fundo do poço, tão fundo que

nem seu choro, berro ou aquilo que articulasse de momento por lá não podia

ser ouvido pela melhor das orelhas ali representadas, pois tinha de guardar

suas forças para coisas mais importantes como, p.e., respirar...

— Sentimento, gente! A fórmula mágica é: sejam realistas, sinceros e

competentes nas respostas. Tem somente mais um detalhe. Se alguém quiser

evitar o rebaixamento e a tropa do lixo vai ter que fazer essa prova sorrindo,

soprando pra longe a poeira desses seus miolos de merda. Gosto de

pensar que isso aqui é só uma filial futurista dos “fast-foods” de outras épocas!

Mesmo não entendendo a piada, 49 bigcaretasburger, imitando muito bem

os tais ”sopros de poeira”, apareceram por detrás dos monitores. Sorrisos se

possível intensificados ao perceberem que o escolástico e irascível detentor

de seus boletins (logo, suas vidas), carrasco-mor de tantas outras “jornadas

educativas” — além de inúmeros adjetivos que murmuravam em seus dormitórios

até quando sonhavam, sendo a melhor palavra para aquilo pesadelo

21


—, definitivamente não fizera uma piada para colher sorriso algum em resposta.

Aquela equação eles entenderam perfeitamente pois não tinha tantas variáveis

assim:

Sorrisos = Sobrevivência

II

— Podem virar a primeira tela — comandou o mestre, indo até a beira do

poço e descaradamente aliviando-se dentro dele, aparecendo essa imagem

digitalizada nos monitores à título da 1ª questão improvisada: — Partindo da

premissa da razão de queda de um pingo de urina igual a 0.5 m/s e conhecendo

a constante gravitacional, usando a tabela do N.S.C.U.A.P.I.2 para Massa

x Viscosidade, desprezando 2/3 de volume que resvalará pelas laterais do

cilindro, qual o impacto resultante que o pingo Z fará ao atingir o elemento

Y...

Nesse ponto, a imagem de Yogo apareceu, reproduzida como um boneco

saltitante, sendo ele o eixo de uma perpendicular que unia as coordenadas

dadas. Era visível a perplexidade ao determinarem a profundidade em que o

mesmo se encontrava. Perante aquilo, “cu de hellas” até parecia um eufemismo

menor!

— Sabendo que — continuou, sem refrear por um instante a caudalosa

micção, intuindo que se Yogo dependesse da pronta resposta daquelas abóboras

pensantes pra continuar enxuto, podia de antemão considerar-se um

peixe, — para Y esquivar-se de Z será preciso uma velocidade Y(3n +)t+z’(-

1/2), {a} trace uma projeção para que o fluxo de zy esteja exatamente numa

proporção trêsphi vezes maior que o Teorema de Rubens pela Equação de

Momento Angular de Falconner; {b} anexe diagramas vetoriais até o décimo

nível de coordenadas; {c} comentar os resultados em 4D por meio da

nossa velha conhecida matemática supradimensional que está no arquivo

modular G.

Todas as telas triangulares escureceram, ficando o cabeçalho, a matrícula

do operador piscando num ícone e uma chave de tempo também. Somente a

espera de cada um fazer valer seus recursos para resolver a interrelacionada

questão na certeza de haver muitas armadilhas e paradoxos embutidos na

mesma. Como descascar uma cebola e chegar no cerne daquela questão sem

lágrimas nos olhos e tremores nas mãos? Do jeito que achava (tinha certeza)

que estavam baratinados, não se preocupou nem mesmo em travar o link de

rede entre os terminais, impossibilitando a “cola”; seria pura perda de tempo

fazê-lo, aliás, obteria mais prazer em observar a posteriori como dispunham

resolver aquilo em conjunto.

22


O Mestre, fazendo descer o cortinado da tanga vistosa depois da ritual

sacudidela, voltou para o palanque, dominando a audiência de seu consolemor,

mirando um a um naquele verdadeiro mar de cabeças que se coçavam

provando aquilo que já estava mais do que patente: ninguém sabia por onde

começar. Independentemente disso, sem olhar, usou seu “plug” sem fio para

selecionar a segunda e última questão.

— Macacada, esta é pra liberar o fiasco total. Conhecimentos Gerais —

disse, aparecendo em seqüência nas telas o scanner cinemático da Terra em

escala 1:106. – Vamos testar agora o raciocínio de merda que cada um é

capaz de defecar sobre o tema ”NOSSA ORIGEM — SINOPSE DO MUN-

DO ATUAL”. Todavia, pra ser chulo tal qual vocês, a mijada me deixou de

bom humor; logo, farei uma preleção ao tema, mas terão que transferir isso

para linguagem de máquina se querem usar como banco de dados...

Juntando ação à palavra, começou a ditar com uma velocidade acima do

normal, seguido pelo movimento de inúmeros dedos sobre os teclados de

diversas proporções, distinguindo alguns abafados palavrões daqueles que

não estavam preparados para esse tipo primitivo de interface:

— Ano 2086, antigo calendário terrestre. Nove naves deixaram o planeta

com destino ao Novo Mundo. A vida na Terra se tornava inviável ao homem.

Décadas antes, pesquisas com DNA mutante e dependência tecnológica

resultaram na falência e virtual tragédia da espécie humana. Após o declínio,

a escassez de alimentos e a perda de antigos valores, a antropofagia, sem

nada a refreá-la, tornou-se um fato corrente naqueles dias ou, digamos assim,

até mesmo uma necessidade física. Acesse a videoteca 717697432AC343

para detalhes mais sórdidos. Continuando: não havia mais que uns poucos

que ainda podiam se rotular como, abre aspas, puros, fecha aspas; à mercê

da predação dessa minoria pelos demais, quer no tráfico de órgãos sadios

quer na vampirização dos mesmos ou simples satisfação de um paladar destituído

de qualquer sofisticação. Tal grupo reduziu-se até o ponto da

erradicação. Os puros desapareceram. A contaminada civilização se tornou

inócua, esfacelara-se em seu berço ao confirmar-se acéfala. Impulsos primitivos

passaram a reger seus atos isolados ou coletivos, unidos todos pelo

instinto da sobrevivência. Veja compêndio histosociológico

111143111CC762 e 222314213DT060. Quanto aos recursos tecnológicos,

de nada adiantavam sem a orientação daqueles que lá não estavam para dispor

deles. Nada detendo a barbárie, o ultrapassar daquele limite e o posterior

holocausto. A queda era iminente. Leia o texto bíblico encontrado nos

escombros no escaninho eletrônico 00000521-C a 00000996-D. Nessa época,

os antepassados de nosso povo, os heróis de nossa raça, vendo o fim

23


próximo, acharam que chegara o momento tão aguardado e profetizado de

evacuar (no bom sentido) e esquecer o disfarce. Mesmo sem civilização

propriamente dita, em termos de coesão e aproveitamento da inteligência, o

planeta ainda sofria uma guerrilha entre grupos tribais, onde escasseavam

tacapes e abundavam multidões de loucos varridos tendo ao seu dispor todo

um arsenal de brinquedos que seus antepassados trataram de enterrar em

toda parte, aparecendo sob a forma de plantações de cogumelos atômicos e

liberação de vírus altamente infecciosos. Perante esse pano de fundo, as

naves decolaram de cinco pontos diferentes no globo, cada qual com uma

tripulação de duzentos e dez soldados de elite e, além da carga de colonos,

um contingente bem menor de cidadãos da mais alta cúpula, contando principalmente

com cientistas e administradores imbuídos dos projetos da nova

civilização.

“Chegaram à Marte numa empresa temerária, sem aprovisionamento adequado

para tentar qualquer outro destino no espaço. Ali, aproveitando alguns

projetos robotizados abandonados, sapientemente, também existiam

nove biosferas relativamente funcionais, sendo que três dessas naves se perderam

no vácuo, provavelmente tragadas pelo Sol. Outras duas não conseguiram

aportar, chocando-se com um satélite; e ainda uma 6ª nave se espatifou

nas montanhas ao norte, onde até hoje ali está, em forma de monumento

perpétuo para honrar tal ousadia. Iniciou-se, portanto, a terraformação mais

agressiva no ano seguinte à partida da Terra através das três tripulações sobreviventes.

Pergunta-se, qual o vírus que deu origem ao extermínio da raça

humana e o vetor através do qual ele se manifestou?”

Sem hesitar, desta feita, verdadeiramente surpreendendo o professor de

forma agradável — nem mesmo deixando a tela se fechar para tornar-se num

outro ícone e a chave de tempo abrir seu lacre-ampulheta para cada uma

daquelas questões — , um bracinho raquítico elevou-se lá no fundo da assistência

como autor da resposta que, apesar das 22,3 décadas de história marciana,

estava ali, taxativa, assinalada no monitor do Mestre e replicada também

nos demais.

— Alguém quer refutar ou corroborar a resposta do Mono342CX21-91?

— indagou, ainda naquele tom acre ameaçador que fez com que todos pensassem

que o apressado Mono tão breve estaria dividindo o fundo do poço

com Yogo, cumprindo uma variante interativa da primeira questão, ou algo

pior! Vamos lá, sabichões! Só quero um “sim” ou um “não”. Um binário.

Mais simples que isso ainda está por ser inventado. A resposta do nanico

ali tem ou não fundamento? A fim de tornar o negócio mais interessante, se

alguém aí responder certo, estou disposto a isentar a primeira questão, dando

24


peso igual ao da prova inteira. Hão de convir, é bem tentador!

E de novo, mais cordato:

— Quem se habilita?

De imediato, a relação com 48 “NÃOS” codigrafados apareceu no console-master.

Tinha sido unânime. O esperado e monótono outra vez... Ninguém

ratificara Mono.

O que era pior, estavam sorrindo cheios de si, bigcaretasburger à vera,

espontâneas, na pressuposição de suas vitórias.

Insatisfeito, mas tentando alguma enferrujada tolerância, espremida nem

ele mesmo saberia dizer de onde, enquanto apontava para a resposta original

ainda projetada na lousa eletrônica que tomava a parede toda por trás dele,

tornou a insistir:

— Isso é uma resposta satisfatória ou um atentado, um repto à sabedoria

dessa classe? Ninguém quer mudar de opinião e abraçar Mono em sua causa

isolada? O coitadinho tá que dá dó!

Em resposta àquela predisposição sardônica, a turma inteira caiu numa

gargalhada, destarte com isso refutando essa hipótese mencionada. Os mesmos

48 “nãos” apareceram bisados.

Mono, o mascote, o mais satirizado de todos devido a sua pequena formação

corporal, a despeito das chacotas, manteve-se firme em sua resolução.

Coisa notável para alguém tão novo, principalmente por não ter vertido

até ali um só fluido lacrimal, olhando para sua tela sem desviar um milímetro

dela. Era um barro diferente, não se podia negar.

O Mestre, em antítese à exopersonificação da calma anterior, pulou de

onde estava e, dez metros à frente, socou as vinte cabeças mais próximas ao

ponto da quase concussão cerebral.

O que não será um grande dano, teria pensado se não estivesse irado e

sem ser só fachada didática, um artifício para fazer com que alunos difíceis

chegassem ao mínimo esclarecimento.

Desconhecer a Matemática, apesar de heresia num mundo tão estatístico

e necessitado de novos valores, podia ser até tolerado. Afinal, nem todos

nasceram para o 1º Escalão. Conhecimento científico e política andavam

juntos, eram os requisitos básicos para o ingresso na Cúpula, no seio do qual

o próprio Mestre — devido somente a suas divergências políticas e

insubmissão — nem mesmo conseguira entrar, ficando a um grau apenas de

partilhar da imortalidade relativa que o 1º Escalão oferecia como bonificação

ao seu exclusivíssimo plantel de funcionários.

Todavia, por respeito mesclado com cerebrados motivos, ele nutria outra

opinião, pela qual só a ele dizia respeito. Sempre fora um contestador, e

25


levaria isso até sua morte, sem produzir qualquer vagalhão ou distúrbio social,

por amor à raça, conquanto ninguém ousasse intrometer-se em seu campo

de atuação, o que acabara por consolidar-se numa satisfatória relação mútua

de temor baseado na possibilidade de retaliação que cada qual possuía.

Apesar dos robôs darem uma contribuição mais do que satisfatória àquela

sociedade efervescente, enquanto fossem devidamente assessorados, músculos

nos lugares errados sempre podiam ser bem empregados nos locais

certos, despejados num planeta enxertado com uma proto-selva ainda em

fase de acomodação.

Mas, desconhecer um fato básico na história daquele povo, depois de

tanto sangue derramado, vexames, abominações, corpos tombados e

eviscerados ao longo das Eras, era cuspir no próprio sacrossanto orgulho da

raça! Afinal, só existiam como grupo coeso porque aquilo que o pequeno

Mono — porém um forte intelecto — riscara na tela,era verdadeiro:

III

Quando o “giganzé”, o mutante símio que assumia o cargo de professor,

imprimia o comando deletar em praticamente todos os terminais — promovendo

uma breve onda de pânico perante os 48 ex-alunos que eram simplesmente

arrancados de seus lugares e imobilizados para fins de rebaixamento

—, o pequeno híbrido Rhesus-Sagüi assinalou uma série de interrogações

em seu mini-teclado.

Erguendo o macróbio corpanzil de 132 quilos e agilmente lançando-se ao

ar em direção do mar de cipós que pendiam do teto, o chimpanzé-gorila

T042L

Mono342CX21-91

VÍRUS: Aids!

VERTOR: Rhesus!!

26


preferiu responder diretamente à muda indagação do até aqui discreto aluno.

Caindo cansado sobre o chão emborrachado e autolimpante, jogou suas

pernas curtas e arqueadas para dentro do nicho onde o outro estava

encalacrado. Desprezando a própria banqueta que era grande demais para

ele, encontrava-se acocorado junto ao monitor, vendo seu superior balançar

as pernas de modo displicente, quase infantil, sem aparente temor algum

pela quebra extraordinária do rígido protocolo acadêmico dentro dum mais

rígido ainda protocolo de casta.

— O sacrifício de sua tataravó deveria servir para ensinar a esse conjunto

vazio de cérebros o valor da História. Com certeza, não mais esquecerão

que nossos antepassados serviram de experimento para comunicação

intraespécies, cobaias nos cruzamentos de genes ou implantes de “chip” de

silício visando estudar o “cérebro atrasado”, no que presumiam confirmar o

mundo no qual nossas raças se divergiram em épocas pretéritas. Mal sabiam

eles que nós o usávamos também como balão de ensaio, deixando-os com

seus experimentos a caminho da tempestade evolutiva.

— Sei exatamente o que o senhor quer dizer com isso, Mestre. Além de

dar à Doença a eles, nossos agentes infiltrados naquele zoológico da

Philadelphia vazaram subliminarmente ao pequeno Bill-qualquer-coisa os

rudimentos de “sua” ciência computacional. Promiscuidade e Atrofismo.

Duas frentes de batalha que, ceifando e desorganizando, avançaram rápidas

nas fileiras do inimigo. Macacos mutantes não podem viver com outros

primatas que pensam possuir a exclusividade do intelecto. Mas ainda, se o

senhor permitir, gostaria de saber o destino daqueles...

Um longo e fino dedo de Mono perscrutou, com mais curiosidade que

algum sentimento de companheirismo e perda voltado para a retaguarda, na

direção dos elevadores subterrâneos.

— Os piolhentos, viciados em goma? — o Mestre alisou o topete vermelho,

por onde apareciam alguns pêlos grisalhos, soltando o ar de seus pulmões:

—Depois dum estágio de alguns “kiks” no exterior, e quando tiverem

a chance, através dum salvo-conduto, de retomarem os estudos pra valer,

aqueles que sobreviverem nunca mais, para usar uma outra expressão dos

macacos nus, “cuspirão no prato que comem”, repercutindo coisas à semelhança

do que Yogo disse e todos os outros trataram de regurgitar. Os conquistadores

sempre tomam aquilo que lhes apraz, seja no campo lingüístico,

nas artes em geral, ciência militar, etc; mas, no nosso caso, a razão de nosso

sucesso vem do menor excesso de vícios desregrados, sem esquecermos a

origem e todos nossos valores fundamentais. Não deixarei que cometam o

mesmo erro dos humanos, permitindo incubar algo que estaria melhor numa

27


lixeira, pois aqueles-sem-quase-pêlos falharam naquilo que há de mais vital

para o sustentáculo de qualquer raça que pretenda exibir o rótulo de dominante.

— E o que seria, Mestre?

— Para entender isso é preciso livrar-se dos preconceitos e ter em mente

que as necessidades do ensino padrão exigem que cada classe possua um ou

dois yogos para servirem de ”estímulo” aos demais. O princípio do entusiasmo

redundante: insere-se um palhaço e ele serve de bode expiatório para

todos os males existentes, canalizando o que há de mais sórdido, pernicioso,

e deve ser combatido. Isso aconteceu aqui, sob controle, e acontece lá fora

em nossa sociedade de uma forma mais exacerbada. Se todos aprenderem

direito a lição, nunca o problema, os sintomas da degradação cultural, subverterá

qualquer grupo maior que disponha desse mecanismo afinado de

defesa. O erro humano mais que resvalou nisso, chocou-se de frente na falta

de um critério rígido de seleção, diferentemente do modo que observamos,

levando-os a cercear a competitividade, estupidamente igualando intelectos

por baixo. Se nossa sociedade aplicasse isso em seus moldes, condenaríamos

nossos iguais a vicejar no lodaçal como uma flor no esgoto e nada mais

nos faria felizes que uma porção de merda sob nossas raízes.

Sem qualquer resistência do outro, aparentando um embevecimento com

tamanha erudição, tocou no implante parietal esquerdo de Mono, retendo

algumas informações na própria fonte.

— Diz aqui no arquivo que seu pai assumiu o posto de capitão do famoso

Regimento Sagüi da flotilha espacial que seguiu em expedição à Kanöpus,

capitaneando a Macacos me Mordam. Suas chances de superá-lo são enormes

se suas noções históricas e as aptidões científicas e política forem tão

deslanchadas quanto penso que sejam. Se de fato procede, sabe muito bem

a respeito do que me referi anteriormente...

— Que os humanos foram fracos, deixaram para que outros fizessem por

eles o que deveriam ter feito de próprio punho? Quando chegou o momento

de encarar que estavam sendo atacados preferiram mascarar a realidade num

roteiro de respostas do tipo “vírus mutante”, “fator alien” e baboseiras do

naipe “manipulação genética e fuga de vírus de laboratório” como responsável

pelo caos, sem assinalar uma solução para o problema?!

— Diante dos sinais da decadência, da pandemia mais que difundida, da

perda de controle da situação, facilitando o escapismo virtual, o nirvana eletrônico,

se acomodaram e procuraram também — o que penso ter sido o

golpe fatal — ficar na Terra mais tempo do que deviam. Não houve transição.

Em todos os sentidos esgotaram seus recursos e do habitat, não tendo

28


como empreender uma fuga minimamente organizada. Que pena... — sorriu,

mudando em seguida para um gestual circunspecto, ao confirmar, movido

mais por um impulso que outra coisa: — Foi deprimente ver todos aqueles

vídeos confidenciais daqueles pelados escorando-se em seu simulacro de

civilização enquanto caíam como moscas, sem perceberem que a base abaixo

do que tinham construído estava comprometida na extinção em curso.

Não nos viram como ameaça até que fosse tarde demais. Nós só demos o

vírus e depois da cura, os reprogramamos...

Sem desmerecer o Mestre, dando mostras que não era apenas um bom

ouvinte, o pequeno Rhesus completou a lacuna proposital numa espécie de

profecia consumada:

— E eles fizeram o resto!

IV

O professor fez um sinal previamente combinado entre ele e o bô. Questão

de “minikiks” depois, seu robô pessoal, transportando um imenso cacho

de bananas, surgiu de entre os cipós.

Em silêncio, perante o ávido par de olhos saltados de Mono para o artigo

de luxo, separou diligentemente o cacho, indo até uma bancada e pegando

três toalhas felpudas, duas médias, embebidas em removedor desodorizante,

e uma bem menor, que em sua mão parecia um lenço, sendo para o pequeno

aluno mais que o bastante para sua necessidade corporal inteira.

Chegando próximo ao fosso, liberou o dispositivo antigravitacional retrator

para o retorno de Yogo à superfície, lançando displicentemente meia dúzia

de bananas e uma toalha ali, sem esperar para saber se atingiam o alvo. Depois

do Circo, o pão; pois o palhaço tinha de comer e se queria usá-lo em

outro espetáculo era necessário manter suas funções vitais. Aprendera isso

nos vídeos retirados dos escombros das velhas cidades. Alguma coisa, afinal,

os humanos deixaram de útil como legado, isso e vários “pornôs

institucionais”.

Gingando, voltou para ocupar seu lugar junto ao atarefado Mono, que

lutava agilmente com a banana quase tão grande quanto seu tórax.

Antes deste tirar um pedaço com a pata traseira devidamente asseada,

soltou um guincho e sua voz digitalizada saiu agradavelmente modulada:

— Grande, Mestre! Ó sinônimo da Soberania Macaca. Bananas pra todo

mundo.

Rogério Amaral de Vasconcellos - carioca, coordenador do Projeto Slev

(Suruba Literária), não tem a mínima vergonha em dizer que escreve Ficção

Científica e tem toda pretensão de escrever muito mais.

29


Notas:

1 -

Década de nascimento

Linhagem original dos pais

Ano de nascimento na década

YOGO 292VU21-03

Biênio de nascimento na

década

Código da matriz materna

Tetragrama de Castas cujas nas 1as. Letras fixas determinam

a orientação vocacional inicial do indivíduo mais

o sexo e o último par móvel/ o endereço celular + o status

atual.

Código matriz paterna

2 - N.S.C.U.A.P.I. = Novo Sistema de Constantes Universais Aplicadas ao

Princípio da Incerteza.

Preço avulso: R$ 3,00

Assinatura: R$ 15,00

5 edições

Rua Irmão Ivo Bernardo, 40

Veleiros - CEP 04773-070

São Paulo - SP

e-mail: rrosatti@ig.com.br

30


Jorge Candeias

O Leonardo tinha bebido uns copos.

Nada havia nisso de invulgar, porque o Leonardo todos os dias bebia uns

copos.

Começava de manhã cedo, ao acordar rigorosamente às oito, todos os

dias, sem exceção, e ia bebendo copos até à hora do almoço.

Bebia tudo o que lhe recomendasse o capricho: vermute, gin, whisky,

cerveja, vinho do porto, perfume, vodca, tequila, etanol, solvente, martini,

aguardente...

Chegada a hora do almoço, tomava um põetefino, esperava cinco minutos

pelo efeito do comprimido e almoçava, bem disposto, com a cabeça limpa,

lúcida e luzidia.

Depois do almoço, tomava um digestivo.

E continuava a tomar digestivos tarde afora até à hora do jantar:

Vermute, gin, whisky, cerveja, vinho do porto, perfume, vodca, tequila,

etanol, solvente, martini, aguardente...

Mais um põetefino enfiado goela abaixo, mais uma espera de cinco

minutos, jantar, e estava pronto para a dose diária de voyeurismo teleolístico.

Enquanto se entretia a espreitar as vidas patéticas dos seus vizinhos, o

Leonardo não se lembrava de beber copos. Sentia-se bem, satisfeito com a

vida que vivia. Via-a interessante e cheia de vida, quando confrontada com

as pobres vidas dos pobres patetas que deambulavam pelo écran, dias inteiros

sem fazer nada de produtivo.

“Pobres cretinos”, pensava o Leonardo todos os dias a essa hora, “passam

a vida a fazer cretinices e a levar com as consequências dessas cretinices na

31


cabeça. Aquelas vidas são pura perda de tempo. Ainda por cima, levam horas

infinitas presas aos écrans do teleolo a observar as vidas patéticas dos

vizinhos... Pobres cretinos!”

Assim ia vivendo o Leonardo, duma forma imponderável, deixando que

os dias passassem por si sem provocar marcas nos dias ou em si.

Até que chegou aquele dia em que o Leonardo bebeu uns copos.

Os relógios aproximavam-se da hora de almoço e o põetefino habitual

tinha acabado de ser ejetado pela ranhura alimentar do apartamento.

O Leonardo, claro, tomou-o como fazia todos os dias.

Mas daquela vez, o põetefino não fez efeito.

O Leonardo estava já tão bêbado àquela hora que não deu por nada.

Almoçou normalmente, como todos os dias, e, como todos os dias, tomou

um digestivo ao terminar.

E, claro, como todos os dias, continuou a tomar digestivos tarde afora até

a hora de jantar:

Vermute, gin, whisky, cerveja, vinho do porto, perfume, vodca, tequila,

etanol, solvente, martini, aguardente...

Foi uma tarde estranha: fez uma série de coisas que não tinha por hábito

fazer. Começou por arrumar a casa, que teimou todo o tempo em resistir-lhe

e ficar cada vez mais caótica. Depois sentou-se, de copo na mão, e leu um

capítulo do livro que tinha vindo a ler ao longo dos últimos vinte e sete anos.

Por fim, ligou o teleolo e resolveu mudar do canal habitual para outro ao

acaso.

Calhou-lhe o canal dos tele-evangelistas.

E o Leonardo ficou ali o resto da tarde a beber copos, entretido com toda

aquela tele-evangelização gritante e variada.

À hora de jantar, o seguro de saúde auto-regulatório do Leonardo fez soar

todos os alarmes no centro de emergência daquela zona: O Leonardo estava

quase em coma alcoólico, se bem que continuasse a olhar para o teleolo,

imperturbável. O centro de emergência avisou o serviço central de emergência,

que despachou de imediato para casa do Leonardo uma ambulância e dois

corpulentos enfermeiros.

Quando chegaram, encontraram o Leonardo ainda em frente do teleolo,

todo ele suspenso das prédicas dos tele-evangelistas.

Aproximaram-se e desligaram o aparelho. O Leonardo olhou-os com olhos

piscos.

Não percebeu. Que faziam ali aquelas duas massas brancas?

Depois percebeu: tinha morrido e ido para o céu, e aquela presença

repentina na sua casa havia tomado o aspecto terreno de arcanjos,

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extraterrestres de túnicas brancas.

— Glória ao Senhor nas alturas! — gritou, sorrindo.

Os enfermeiros pegaram nele e levaram-no para a ambulância.

O Leonardo, sentindo-se a flutuar, levou todo o trajeto a cantar salmos e

a tecer loas a Nossa Senhora e a São Cristóvão.

Os enfermeiros meteram-no dentro da ambulância, acondicionaram-no à

maca e sentaram-se na parte da frente.

Para o Leonardo, aquilo era uma espécie qualquer de táxi celestial. Até

tinha a luzinha em cima do tejadilho que todos os táxis têm.

Não deu por ter arrancado, mas lembrou-se de repente que não tinha dado

um destino ao chofer. Por isso levantou-se, bateu com as mãos abertas no

vidro que o separava do banco da frente e gritou:

— Senhor taxista, era para a Vinha do Senhor, se faz favor.

Não foi, como é evidente.

Em vez de ir para a Vinha do Senhor passou o resto dos seus dias num

habitat do Centro de Pesquisa Biomédica Principal, onde os médicos

procuraram durante anos entender aquela sua súbita imunidade aos põetefinos.

Nunca conseguiram.

Mas para o Leonardo, não havia qualquer problema: continuava a beber

uns copos, como dantes. E de vez em quando tinha a visita dos querubins no

seu pequeno mundo celestial. Pedia-lhes sempre para lhe marcarem uma

conversa com Deus, mas nunca obteve mais do que a promessa de que iriam

tentar.

Nunca saía. Mas isso não o incomodava, porque o mundo que via da

janela era demasiado estranho e, até, um pouco assustador: um mundo de

casas vibratórias, elefantes voadores cobertos por uma penugem cor-de rosa,

cópias infinitas de árvores que se estendiam, todas iguais, até ao infinito,

pássaros de formas estranhas suspensos do ar, imunes à acção da gravidade.

Nunca ficava à janela muito tempo, e voltava para dentro rapidamente,

em busca da garrafa mais próxima e de um copo lavado. De seguida, ligava

o teleolo e ficava ali, horas perdidas, a beber copos e a espreitar as vidas

patéticas dos que passavam a vida a beber copos e a espreitar as vidas patéticas

dos que passavam a vida a beber copos e a espreitar as vidas patéticas dos

que...

Jorge Candeias - Escritor português, editor do site de ficção científica E-nigma:

http://planeta.clix.pt/E-nigma/

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João Barreiros

PARTE 1

João Barreiros

I

...DISSE A Rainha Vitória, em bicos de pés, encavalada num banquinho

forrado a cetim, a espreitar por uma janela para o trípode cada vez mais

próximo. Foram estas as últimas palavras que proferiu. Dez segundos depois,

um raio de calor calcinou por inteiro o Palácio de Buckingham, juntamente

com parte do efetivo do gabinete de guerra, ali reunido de emergência. Pelo

menos assim conta a lenda.

II

...mas precisamente porque ninguém se atreveu a repetir as últimas palavras

de uma monarca cujo Império governava tudo quanto era terra e mar, é que o

jovem Herbert Wells as repete, numa invectiva cada vez mais alta — e que se

lixe quem quer que o ouça— à medida que o assento de aceleração estremece,

acompanhando as sacudidelas do cilíndro, com o escudo ablativo a arder

contra a tênue atmosfera de Marte.

Lá fora, clicam os painéis de cavorite a abrirem-se a fecharem-se

procurando o apelo de uma Lua distante, esforçando-se por travar a queda

contra a curvatura planetária, por fazer com que o engenho acompanhe o

resto do enxame, mas nada feito, neste tipo de situações é Murphy quem

manda. Um raio de calor proveniente das estações de defesa marcianas,

daquelas que funcionam ainda à base de molas, relojoaria e baterias elétricas

dotadas de sistemas de homens mortos — vamos lá passar a expressão —

varreu os céus, uma, duas, três vezes, até as baterias ficarem descarregadas.

E quem é que foi encontrar nessa inútil varredela senão o módulo onde viajam

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Wells, Jules, dois soldados e o piloto, que agora combate, frenético, contra

as dezenas de botões, manivelas e alavancas que constituem a base móvel

das placas de cavorite. A paravela ardeu, como costumam arder estes tipos

de artefatos quando são aquecidos mais do que é devido. Alguns painéis

bloquearam, com as cavilhas calcinadas. Outros, porque deixou de haver

rodízios que os conduzissem ao respectivo lugar, empilharam-se uns sobre

os outros, despertando movimentos desordenados nos giroscópios do

aparelho. O vetor de impacto diminuiu mas não desapareceu por completo.

Tornou-se aleatório.

O módulo afastou-se dos companheiros, deslizou sobre o equador e

iniciou um mergulho descontrolado rumo aos planaltos do Sul. Wells tem o

ósculo de um periscópio mesmo acima da cabeça, bastava-lhe levantar as

mãos e espreitar, mas quem é o parvo que se arrisca a perder um olho, dadas

as sacudidelas do cilindro? A bolha de plástico cheia de gel que lhe protegeu

o sono durante a viagem abriu-se como era suposto fazer, parte de líquido

foi reabsorvido pelos sistemas de drenagem, e o restante, dado que nada

funciona como é devido, anda a escorregar pela extremidade do módulo

juntamente com os restos de gel provenientes dos outros cilindros.

Ciel, Ciel, Ciel, murmura o velho Jules entre as barbas que são vastas,

mas Wells nem se atreve a virar a cabeça, não vá apanhar uma entorse antes

de se esmagar contra os desertos de Marte. O estafermo do velho chagou-lhe

o juízo durante toda a jornada até ao acelerador magnético do Congo,

aborreceu-o com bitates de crítica literária, acusou-o de inventar, de não ser

cientificamente rigoroso, como se o ginja o tivesse sido em tudo aquilo que

escreveu, como se bastasse um canhão para cuspir as pessoas até à Lua. O

jovem Wells bem que gostaria de ter outros companheiros de viagem, fossem

eles socialistas ou livres pensadores, mas não, as verbas foram reduzidas,

quem pagou por este módulo foi uma editora francesa de folhetins de cordel,

e por causa disso aqui está ele, o criador do romance científico lado a lado

com o famoso escritor das viagens extraordinárias mais uns quantos recrutas

agoniados, a vomitarem aquilo que comeram há um ano atrás, a contribuírem

com um pouco de si mesmos para o caos a bordo deste módulo desgarrado.

Nova sacudidela, rangidos de juntas, a sensação do estômago querer sair

pela boca e ir de férias para muito longe dali, qu’ est-ce que c’est ça, e o

piloto a explicar, lá da frente, “estamos salvos, a paravela de emergência

acabou de abrir...”

Não, Wells não está mesmo nada divertido. Uma reportagem jornalística

não devia terminar assim. Mas vá-se lá confiar na tecnologia roubada a um

polvo. Ainda por cima reformatada nas fábricas do Kaiser Guilherme. Se é

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que ainda sobrevivem algumas destas criaturas pensantes nas bermas de

canalli quase secos. Se é que este mundo horrível ainda consegue manter um

sistema ecológico capaz de maravilhar Charles Darwin. Wells duvida. Duvida

que os sistemas de segurança do módulo funcionem, que as placas

sobreviventes de cavorite consigam travar o mergulho, que o piloto consiga

abrir as palhetas rotativas de travagem. Wells insistiu vezes sem conta que

um sistema de autogiro não seria funcional numa atmosfera menos densa.

Mas quem é que o quis ouvir? Não o froggy do Jules que advogava que não

havia problema nenhum em abrir uma janelinha em pleno vácuo.

Wells assenta as mãos sobre o colo, suspira, encomenda a alma a um

criador cuja existência sempre pôs em causa, espera que o estômago perceba

que a traquéia não é o seu lugar, encosta-se ainda mais na cadeira que se lhe

ajusta à coluna, solícita, fecha os olhos, desejoso de uma derradeira

cachimbada, e depois vem o estrondo, e mais outro e mais outro, portinholas

dos cacifos a abrirem-se e a vomitarem conteúdos, capacetes, espingardas,

comida seca e bexigas de água. Ciel, ciel, insiste o raio do francês. Os dois

soldados dizem coisas bem piores, invectivas que não podem ser formuladas

perante senhoras. O cilíndro bate uma vez, duas e três, faz carambola contra

um rochedo, desce a rebolar contra uma encosta, desce, desce e desce como

se a vertente nunca mais acabasse e imobiliza-se, enfim.

Espantado, Wells descobre que continua vivo. Que chegou a Marte. Ele,

o piloto, os dois soldados e o velho Jules, decerto a congeminar mais uma

das suas insuportáveis pastelices que se vendem lá na terra dele como muffins

quentinhos.

Wells continua vivo, mas não está mesmo nada divertido.

III

Os giroscópios da cadeira mantiveram-na direita em relação ao solo.

Mesmo em frente do nariz, do disco do mesmerizador, pouco ou nada resta.

Discreto, Wells sacode os pedacinhos de cristal colorido do colo, desaperta

os cintos elásticos que, com um estalo, vão recolher-se nos respectivos casulos.

A seu lado, o froggie cofia as barbas que felizmente pouco cresceram durante

a viagem em estado mesmérico.

De pé, old man, diz-lhe Wells, puxando-o por uma manga do fato-macaco,

ansioso por fazer qualquer coisa de produtivo, saber onde caíram, se é possível

contatar com o resto da frota expedicionária. E o velho autor, como se tivesse

andado toda a vida a beber cordiais e chocolate quente, acena que sim, afastalhe

a mão com uma sapatada seca e põe-se de pé. Este gesto tão viril por

pouco não o faz cair desamparado sobre Wells, que só agora se apóia nos

descansos dos braços da cadeira. O chão é curvo, claro. A grelha protetora

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que permitia colar as botas ao solo. Soltou-se e foi parar lá ao fundo, contra

o casulo de pilotagem. O cilíndro encontra-se numa posição incômoda com

uma inclinação a vinte por cento.

Um dos dois soldados, John Carter, ianque de origem, olhos azuis,

madeixas loiras e queixo quadrado a emergir entre os atilhos do capacete de

couro, destaca-se da respectiva cadeira como se o choque sofrido tivesse a

equivalência de um mero piparote, vem até junto dos civis, puxa cada um

deles pelo respectivo cotovelo, e ei-los de pé, enfim, mas de cabeça baixa

,não vá ela bater contra as tubagens superiores que respingam gel, óleo e

outros fluídos para os quais é preferível não haver nome.

— Então, meus senhores, tudo em ordem?

— Merde, alors ! — responde o bom velho Jules, para mostrar vocábulos

proletários. — Quelle descente!

Wells, mais discreto, acena que sim, aponta para a cabina do fundo onde

deve estar o piloto, mas o Sargento Carter sossega-o, diz-lhe que está tudo

em ordem, os seus recrutas estão a tratar do assunto, a verificar as baterias

elétricas, os compressores de oxigênio, o estado dos escafandros.

Wells não é da mesma opinião, mas nem vale a pena argumentar. Estão

todos vivos e é o que importa. Vivos e a centenas de milhas a Sul do ponto de

pouso da frota invasora. Demasiado longe para sinais de luz. Só resta saber

se esse imponderável rádio, herança da tecnologia marciana, funciona aqui,

num campo eletromagnético diferente da Terra. Um campo magnético que

quase não existe.

Um dos soldados, o médico de bordo, tal como indica o caduceu bordado

na braçadeira, um tal qualquer coisa Moreau, aproxima-se a coxear dos dois

autores, cabeça a raspar mas tubagens retorcidas do topo do cilindro, de

mãos estendidas, extático, como se estivesse presente perante duas divindades.

— Meus caros senhores, é uma honra...Os vossos escritos serviram-me

de inspiração durante todo o meu curso...Que oportunidade magnífica, não

acham? Julgam que vai ser possível dissecar alguns corpos? Infelizmente, na

Terra a contaminação bacterial dos espécimes levou a uma corrupção

acelerada...Não tem graça nenhuma observar o cérebro de um invasor num

estado semilíquido, num tanque de formol... E o fedor, meus senhores, o

fedor que libertavam...

— Tivesse estado em campo, quando as máquinas caíram... — responde

Wells, recuando dois passos e pisando, claro está, os pés sensíveis do velho

Jules.

— Ah, difícil para um estudante da Sorbonne... em fuga, escondido por

baixo da Pont Neuf, com o Sena a arder, encontrar exemplares que se

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deixassem examinar... Mas garanto-lhes, cavalheiros, que consegui

valentemente dissecar alguns cadáveres humanos, calcinados pelos raios de

calor, que vieram até mim a flutuar rio abaixo... E fiz uma descoberta

espantosa, que muito poderá servir à medicina... O raio de calor, àquelas

temperaturas, cauteriza as veias. Vaporiza tecidos... Os cavalheiros poderão

imaginar, tal qual como nos vossos romances sobre ciência e futuro, um

bisturi de calor, com um raio tão fino, tão preciso, capaz de eliminar qualquer

tecido tumular ou necrótico sem por isso danificar os tecidos saudáveis que

se encontram em redor...

— Sabe onde é que pode meter os seus bisturis, soldado Moreau? —

insurge-se o Sargento John Carter. — Não acha que tem outras obrigações

além de vir incomodar os nossos passageiros? Os kits de enfermagem estão

preparados? Os tanques de oxigênio? Os sistemas de apoio extraveículares?

O soldado Moreau enrubesce, fecha a boca, comprime os punhos, cala-se

a pensar na herança da família com dinheiro suficiente para comprar uma

ilha nas Índias Ocidentais. Uma ilha com um laboratório privado onde poderá

explorar à vontade todas as maravilhas da carne transplantada, sem que haja

sargentos labregos a incomodá-lo. O futuro é seu. O futuro pertence aos

cientistas, aos livres pensadores. Aos autores que o desenharam, como Mr.

Wells e Monsieur Verne aqui presentes.

E assim, calado e submisso, dobrado perante o corpanzil imenso do

Sargento Carter, Moreau entretem-se a recolher as peças dos equipamentos

que se espalharam pelo interior do cilindro.

A porta da cabina de pilotagem abre-se com um silvo de ar comprimido,

equalizam-se pressões, enfim, e dela escorrega o último membro do grupo,

o astronavegador Edgar Burroughs, o único a ter estado intermitentemente

acordado durante esta viagem de quase um ano. Tem nas mãos um bloco de

notas e um lápis de grafite — já que as canetas de tinta permanente se recusam

a funcionar em imponderabilidade — a testa meio amassada de um golpe

contra a lente do mesmerizador, um corte no sobrolho por ter batido no

periscópio, a pele das mãos escamadas pela luta contra as alavancas que

controlam os painéis de cavorite. Mesmo assim, coxo e maltratado, não deixa

de correr na direção dos dois autores, olhos a brilhar de comoção, bloco de

notas a subir e a descer.

— Ah, chegamos, meus senhores! Consegui até, humph, Arear, meu

Sargento. Não há raios de calor destas criaturas que consigam vencer a vontade

indômita de um caucasiano.

— Parabéns... — comenta Wells, preparado para um novo abraço. A

admiração dos fãs já começa a ser rotina.

38


— Os cavalheiros sabem que eu também quero ser escritor? — insiste

Edgar, o piloto. — Durante os meses em que estive acordado, tive a audácia

de escrever umas coisitas sobre Marte, para depois publicar nos funnies.

Nada de muito sofisticado, entenda-se. Nada ao nível das vossas obras, claro

está. Não tenho pretensões literárias. Aliás, trato de um Marte bem diferente

deste. Um Marte com uma civilização quase humana. E um império de

humanóides ovíparos. Vou chamar-lhe Barpoom, ou Barsoom...qualquer coisa

assim...

— Fascinante...— comenta Wells, com uma pontinha de desprezo pelos

supostos dotes literários deste habitante das ex-colônias. — Estou certo que

terá muito sucesso...

Jules não diz nada. Jules sabe bem o que são editores e o que eles fazem

a um neófito nas artes da escrita. Cofia a barba, acena com a cabeça e calase.

— Vai em frente, rapaz! — diz-lhe o sargento Carter, num tom entusiástico

e aprovador, enquanto estala os dedos na direção do enfermeiro Moreau

para que lhe trate dos golpes e equimoses.

O piloto Edgar senta-se num dos bancos inclinados de través, com as

botas a chapinhar nos fluídos de conservação que marejam junto ao solo.

Com olhos arremelgados contempla Wells e pede-lhe se será possível um

dia, logo que a oportunidade surja, de deitar os olhos sobre as notas que foi

tirando, a ver se, bom, se existe nelas qualquer coisa de aproveitável.

Que as divindades, se é que existem, nos livrem disso, pensa Wells, a

puxar pelo bigode, enquanto Moreau trata da saúde do piloto e o sargento

Carter espreita pelo periscópio para o que os espera lá fora. O ar no interior

da cabine cheira a requentado. Fede ao sebo de corpos que não se lavam há

quase um ano. Mesmo mesmerizado um organismo humano segrega gordura,

escama pele, metaboliza as papas que ingeriu. Wells tem a impressão que o

oxigenador foi à vida. Ele, e mais os três sistemas redundantes. Devem existir

milhares de mini-fraturas na couraça do cilindro por onde o ar se escapa.

Afinal não é impunemente que se desce em Marte. E as coisas nunca

acontecem como nos livros.

IV

E por fim ei-los de escafandros vestidos, adaptados dos mergulhos

submarinos, porcas apertadas, oxigenadores a funcionar em pleno, juntas de

cobre, vidraças duplas de vidro chumbado, baterias ao cinto, algálias

enroscadas nas pilinhas a respirar um ar que sabe a metálico mas que

felizmente só cheira ao próprio corpo e não ao dos outros.

39


Estão frente à comporta anterior do cilíndro, oposta à da cabina de

pilotagem, a tropeçar nas pilhas heteróclitas dos equipamentos que

sobreviveram ao choque, tendas estanques, compressores de ar, baterias

eólicas, esmagadores de ervas, pacotes de carne seca, foie-gras, farelo, folhas

de chá digestivo, grãos de café já moídos, produtos naturais anti-dierraicos e

os seus opostos, para o que der e vier; pomadas hidratantes para as mãos,

tonificadores de hemorroidal para os males do velho Jules e todo um conjunto

de peças de substituição, desde fios de cobre, lâmpadas de mineiro e lanternas

de luz coerente para sinalizar os satélites, que é suposto continuarem a deslizar

lá em cima.

Moreau e o piloto afadigam-se a desapertar os parafusos da placa exterior

da comporta, borrifando-os de respingos de óleos e solvente, dado que o frio

do vácuo e o impacto contra o solo afastaram-nos ligeiramente das devidas

posições. E quando esta, enfim, se abre, todos são obrigados a apertarem-se

no exíguo espaço que leva à comporta exterior, enquanto Moreau fecha a

primeira e Edgar clica inutilmente no interruptor da segunda.

— Tanto excesso leva a estes problemas — comenta Jules, sem reparar

que o cinto do seu escafandro está a macerar as costelas de Wells. — Tudo

bem num submarino, como na minha história, para que se equilibrem pressões.

Mas aqui...em Marte?

— Já agora, porque não uma janelinha, aqui mesmo, no cilindro? — rosna

Wells, cada vez mais agastado. — Uma janelinha para arejar, como o

cavalheiro colocou na sua Da Terra à Lua. Basta abrí-la um bocadinho para

despejar um cão morto, e um bocadinho, entenda-se, não faz mal, não é? O

ar escapa-se devagar...

— Mon cher, Monsieur Wells — responde Verne, com toda a

condescendência que a idade lhe dá. — Juste une petite erreur... Nada de

mais, ninguém notou... E já agora, em matéria de erros crassos, explique-me

como é que um homem invisível pode ver, se os próprios olhos são invisíveis?

Vossa excelência deu-se ao trabalho de estudar os mecanismos da visão antes

de escrever a sua pretensa novela científica?

— Jules, old boy, os seus comentários apenas indicam que não entendeu

nada das minhas intenções. Toda a trama do Homem Invisível é uma metáfora,

e como metáfora deve ser entendida.

— Ah, estou a ver... A cegueira da cobiça capitalista?

Edgar endireita-se com um suspiro, os cilindros das costas raspam contra

os capacetes dos dois autores, levanta as mãos, pontapeia a comporta que

insiste em não se abrir, explica aos presentes que não há eletricidade no

circuito, que a bateria morreu, que vai ter de rodar manualmente o guião da

40


comporta exterior, que isso exige força bruta, se o sargento Carter lhe poderia

prestar uma mãozinha.

O sargento Carter não quer outra coisa. Está lá para isso. Para mostrar aos

decadentes europeus quanto vale o indômito músculo dos habitantes do Novo

Mundo. Abre caminho pelo meio de Wells e Jules, que nem se atrevem a

protestar, pisa uma ou duas botas, agarra-se ao guião e, com a ajuda do piloto

Edgar, faz força, insiste e insiste. E o parafuso que prende a comporta exterior

ao cilindro resolve dar de si. Ar começa a silvar pelas juntas calcinadas. Ar

que foge da cabina, apressado por visitar novas paragens. Um aro de luz

pálida fulge entre as juntas que se abrem. Os sons tornam-se abafados. Mas,

mesmo assim, conseguem todos ouvir-se uns aos outros. Neste espaço exíguo,

os capacetes tocam-se. E ao tocarem-se, transmitem vozes.

— Já agora — diz Wells, de modo a preencher o silêncio —, quando o

meu sargento espreitou há pouco lá para fora, através do periscópio, viu

alguma coisa interessante?

— Oh, nada de especial — responde John Carter, imperturbável e

pragmático. — Apenas Londres, acho eu...

V

Marte é uma cratera de escolhos ferrugentos, pó que se cola às botas com

maldade, ervinhas vermelhas a crescer por tudo quanto é lado, repletas de

pequenas pústulas inchadas cheias de oxigênio, debaixo de um céu doente

de icterícia.

O cilindro está encostado ao fundo da falésia por onde escorregou,

ensarilhado na seda da paravela, num ângulo de vinte graus, atrás dele ficaram

as palhetas partidas do cópetro de travagem, como que a provar que os

sistemas de redundância têm o defeito de combaterem uns contra os outros.

O cilindro é uma máquina que nunca mais se levantará do solo onde enfim

assentou, tanto mais que as placas soltas de cavorite devem estar neste

momento a entrar em órbita, rumo às novas aventuras.

Junto à curvatura do cilindro coberto de geada carbônica encontram-se

cinco escafandros. Para falarem uns com os outros são obrigados a berrar ou

a encostarem os capacetes como pequenas marradas de felinos desconfiados.

É fácil reconhecerem-se neste fim de tarde, com o sol minúsculo a querer

descer por detrás da borda da cratera. Todos trazem os nomes respectivos

bordados no peito em letras fosforescentes. Os escafandros não pesam tanto

assim. Filamentos de cavorite espreitam aqui e ali entre as pregas do fato,

envolvem os tanques de oxigênios, a bateria das lâmpadas, os cintos de

equipamento. Mesmo assim, o velho Jules protesta, vitimizado. Foram

precisos vários para o conseguirem arrancar ao tampão da comporta, que

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agora jaz caída sobre o cascalho. Um fiozito de líquido escorre entre as juntas

maceradas, quase congelado. A civilização humana achou por bem copiar

ponto por ponto o modelo tecnológico da frota de ataque marciana. Os polvos

tinham enchido de água, por alguma razão desconhecida, o intervalo entre o

casco exterior e interior do cilindro. Embora ninguém conseguisse explicar

porquê, dado que a água era um bom isolante, os governos terrestres acharam

que a idéia até que não era má. E chegados a Marte, caso estivessem longe de

qualquer canal, até daria para beber e lavar louça e roupa.

— Cette cochonerie me fait mal aux épaules ! — vocifera Jules a quem o

queira ouvir.

Wells não quer, mas os restantes companheiros escutam o mestre,

deleitados. Explicam-lhe que as fibras de cavorite tornam todo o escafandro

mais leve, mais suportável. Mesmo que o utente se sinta como se fosse uma

marionete, pendurada pelos ombros.

Estão muito e muito para sul, sob a sombra de uma cratera de impacto

meteórico. Qualquer coisa como a 284.38 de longitude W e a 82.02 de latitude

S. À volta da borda da cratera, onde crescem as sombras, zumbem gigantescos

coletores eólicos suspensos em tripés. A descida catastrófica do cilindro

derrubou um deles. Agora está tombado e inoperante, com as pás coletoras

retorcidas e murchas. Aliás, não parece ser o único que deixou de funcionar.

Dos cinqüenta visíveis, só dez operam ainda, respondendo à brisa que sopra

lá no alto. Mas bastam dez para carregar o canhão térmico. De meia em meia

hora, com mecânica estupidez, a serpente metálica que compõe o topo do

canhão de cem metros de altura eriça-se no alto da torre, aponta ao céu um

olho vermelho de maldade e dispara. E ao disparar o ar estala, a geada

ambiente vaporiza-se, o céu enche-se do coruscar de uma luz que se assemelha

ao relâmpago e um traço branco sobe, sobe a direito rumo ao espaço exterior,

sem querer saber se vai acertar em alguém.

— Devíamos desligar aquela máquina infernal! — comenta o sargento

Carter, de olhos franzidos pela intensidade da luz, mesmo sob a vidraça

chumbada do capacete. — Pode ser uma ameaça para os nossos camaradas

que ainda estão a chegar...Em órbita...Correm o risco de ser abatidos tal qual

nós...

— Basta o meu sargento mandar e eu dou cabo daquilo! — exclama

Edgar, solícito brandindo o cutelo que tirou do cinto.

Wells abana a cabeça desesperado e desta feita até o próprio Jules concorda.

— Non, non, mon vieux ! O canhão está a ser alimentado por cabos elétricos

ligados aos coletores que vemos ali em cima. Os cabos transportam energie

galvanique. Muito perigosa. Parti-los com esse machado pode ser fatal.

42


Melhor deixar tudo como está. La flotte d’invasion est dejá descendue. O

perigo passou. Aquilo está a apontar para o alto, não para nós...

— Sem contar que teria de escalar o prédio inteiro para chegar à base do

canhão.

Wells suspira. Quer lá saber do canhão. Interessa-lhe mais a estrutura em

pirâmide na qual ele assenta. No desenho imenso de um olho dourado meio

carcomido pelo tempo impresso em todas as faces visíveis da pirâmide. Nos

imensos portais, abertos de par em par, como se a construção no centro da

cratera fosse um templo aberto a todos os neófitos.

À espera da visita dos primeiros humanos.

Por todo o lado, erva vermelha. A erva que os marcianos trouxeram até

aTerra. Erva comestível, saborosa mesmo, quando cozinhada. Erva que pode

também servir de oxigenador depois de maceradas as vesículas que contêm

microquantidades do precioso gás roubado à atmosfera. E quando acabam

as zonas de erva, eis estruturas resinosas semelhantes a palhetas, umas sobre

as outras, numa altura de dez andares, como se fossem foles destinados a

chupar ar até às profundezas do mundo. Em tão grande quantidade que um

telescópio mais atento poderia vê-las de órbita.

O grupo contorna as muralhas feitas de folhas coralígenas, algumas ainda

a estremecer, numa lenta, lenta agonia, mas todas elas a finarem-se aos poucos,

com o tom viçoso rubro a ficar cada vez mais da cor do azeviche.

Estão unidos uns aos outros por um cabo Bell elástico, ligado ao carrete

do cinto, um meio de comunicação assaz desconfortável, mas que lhes permite

comunicarem a uma certa distância e fazerem-se ouvir. O velho Jules arrasta

os pés, apoia-se na bengala, que o seu editor insistiu que levasse. Wells segue

mesmo ao lado acompanhado pelo Medic Moreau, que ainda não se calou

com a sua teoria da carne “moldável”, mais à frente, armados da inevitável

mini-metralhadora Gatling, atentos a qualquer restolhada suspeita, marcham

em parelha o sargento Carter e o soldado Edgar, que ainda não parou de

despejar notas para o bloco. Como se isso fosse servir de alguma coisa,

pensa Wells. Como se a sobrevivência do grupo estivesse inevitavelmente

assegurada para toda a posteridade.

— Fascinante esta aplicação da biomecânica, não acha Mr. Wells? —

insiste a voz nasalada de Moreau através da grelha do fonador. — Estes

bichinhos foram especialmente criados para comprimir o ar e lançá-los nas

profundidades friáticas de Marte. Deve haver montes de túneis aqui por baixo.

Túneis por onde a água ainda escorre sem se evaporar. Como um formigueiro

para polvos. Um polvoeiro, e passo o termo. Pena que estejam a morrer

todos. Nem vale a pena escamar uma amostra. Uma coisa destas até que

43


podia servir no seu submersível, não acha caro Monsieur Verne ?

— Il y en a d’autres moyens... — responde Jules, ofegante, sem se dar

por achado.

— Certamente, meu caro mestre — insiste Moreau. — Mas pense no que

seria a nossa sociedade se os mecanismos fossem todos eles orgânicos.

Serventes símios, com cérebro alargado e transplantes de cordas vocais para

executar todas as tarefas domésticas. Gorilas para os exércitos de assalto e

trabalhos onde apenas fosse necessária a força bruta. Implacáveis homens

panteras como soldados de assalto. O fim do proletariado, da escravatura e

dos seus males. A humanidade livre para se poder dedicar às artes e às

ciências... Ponto final na divisão de classes responsável pelo horror dos seus

Morlocks, Mr. Wells. E, claro, claro, também seria possível explorar o fundo

dos mares na barriga de lulas e baleias...

— Como fez o Jonas... — resmunga Wells. — A descer aos Infernos no

ventre do Leviathan...

— Precisamente, meus senhores...E convém notar que os marcianos já

atingiram o ápex dessa ciência...que doravante será nossa...como paga de

todo o mal que nos fizeram...

Por todo o lado, ao mero toque de um dedo ou a vibração de uma pisada,

chovem palhetas murchas escamadas das muralhas. Na débil gravidade

marciana demoram que tempos a cair, mas quando caem, caem a prumo,

pois ali, no fundo da cratera, não sopra a menor brisa. O sargento Carter

encosta o capacete à colônia de microorganismos oxidados e o grupo inteiro

consegue ouvir pelos fonadores um débil arfar, um cri-cri de agonia de um

prédio vivo que ainda não se decidiu a morrer.

E de súbito, o céu incendeia-se lá para Oeste, por cima da borda da cratera.

O chão estremece, telúrico. Milhares de palhetas soltas desabam sobre o

grupo numa chuva outonal. Uma nuvem de pó cobre a baunilha crepuscular

do céu. Segundos depois, vem o estrondo abafado de uma explosão titânica.

— Que vem a ser isto? — insurge-se o sargento Carter, coberto dos

fragmentos necróticos da colônia oxigenadora.

— Ciel, pardieu, merde alors ! — exclama Jules, estampado no chão a

agitar as pernas e a bengala, sem dignidade nenhuma.

— Uma explosão...numa cratera aqui próxima... — conclui Wells. —

São os marcianos a fazer uma política de terra queimada...Só pode...

— Aqui, tão ao Sul ? — espanta-se Edgar, enquanto ajuda a voltar a pôr

na vertical a massa portentosa de Jules Verne. — Mas para quê? Julguei que

a nossa frota estivesse toda a pousar a Norte do Equador.

— E está... — concorda Wells. — Devemos ser os únicos nesta latitude.

44


O que não implica que os marcianos, se é que ainda existem alguns, estejam

a destruir provas, a queimar documentos...

— Ah, — concorda Jules, de novo em pé, a sacudir do escafandro areia,

folhas esmagadas e palhetas retorcidas. — Dispositivos de homem morto.

Bombas relógio como fazem os anarquistas. Tic tic tic boum!

— Mas se é assim — suspira o jovem Edgar, com o bloco de notas de

momento esquecido no chão —, não acham que corremos o risco de...

— Precisamente! — concorda Wells. — Estamos todos feitos ! Mais tarde

ou mais cedo. As coisas nunca são tão simples como as que enfrentam os

heróis dos seus pulps, meu caro Edgar...

Depois de ultrapassarem os blocos oxigenadores, dispostos em arcos de

círculo concêntricos a partir da periferia da cratera, como que para cortar as

correntes de ar e poeira, ei-los perante o parque de estacionamento, também

ele em arco, à volta da pirâmide central: Mini trípodes aos milhares. Com os

pés recolhidos contra o ventre como uma aranha falecida. Pelo menos Wells

considera que são mini trípodes, feitos para deslocação e não para a guerra,

como os monstros imensos que espezinharam Londres. Alguns estão a

desfazer-se em ferrugem, sinal que ninguém lhes mexe há muitos anos. Outros

parecem mais recentes, com um simples risco ou escamadela, as luzinhas de

aviso nos quadros de comando a pulsar num tom ambarino, rodízios e molas

a chiar num stand-by que desta vez será para sempre.

Curioso, Moreau inclina-se sobre o assento do mais próximo — não vá o

cabo Bell ensarilhar-se numa junta mais cortante —, enfia as luvas no interior

das cavidades cilíndricas que antes recolhiam os tentáculos, informa o grupo

que lá bem no fundo do receptáculo, onde os membros vestigiais dos monstros

conseguiam chegar, detectou alavancas e botões. Um processo de controle

demasiado complexo e inútil para um ser humano. Mas eficaz para quem

tem oito braços disponíveis.

Entretanto, Jules espeta a bengala no assento espumoso, faz notar como

ele é macio e submisso, sinal que a carne dos octópodes é frágil e que os

suportes estão ali para assegurar a sobrevivência do cérebro durante as agruras

e estremeções da locomoção.

— Já pensaram — insiste Moreau —, que uma espécie como esta não

poderia evoluir fora de água? O peso do corpo, do crânio, é demasiado para

a elasticidade dos tentáculos. Como é que se deslocaram antes de terem

máquinas capazes de fazer isso por eles? Onde é que estão os famosos oceanos

primordiais? Como é que transformaram guelras em pulmões?

— Só mistérios e perplexidades... — comenta Wells num risinho maldoso.

— A não ser...

45


— Mais dites, mon cher ami, éblouissez-nous avec les perles de votre

eloquence… — exclama Jules, a escarafunchar com a ponta espigada da

bengala as vísceras de uma caixa de controle posta ao ar.

— ...bom, a não ser que houvesse um meio de transplantar órgãos de uma

outra espécie...E colá-los onde antes só havia guelras. Mas...caso assim seja,

eis-nos perante um pequenino problema...

— Força, soldado Moreau ! — encoraja-o o sargento Carter.

— ...o pequenino problema é o que se vai passar com as gerações

seguintes... Duvido que os implantes, as modificações sistêmicas, tenham

um efeito hereditário... O Dr. Mendel fez experiências curiosas com

ervilheiras, sabiam? Sobre a transmissibilidade dos caracteres adquiridos...

Porém, se perdermos um braço, será que os nossos filhos também nascem

sem ele? Decerto que não...

— Há a considerar o caso do alcoolismo — comenta Wells só para causar

confusão. Este tipo de conversas em situações anômalas fazem-no pensar

que está preso numa novela do velho Jules, onde página sim, página não, o

leitor é atormentado com milhares de pormenores irrelevantes para o processo

narrativo. — Pois filho de pai alcoólico, é, em norma, alcoólico também...

— Question de mauvais sang, mon vieux ! — diz Jules, com o fôlego

recuperado. — Mas a mim, o que mais me interessa, é a mecânica deste

sistema locomotor. Expliquem-me por que é que uma criatura com oito

tentáculos se desloca num veículo de três pés?

— Não vejo o problema... — insiste Wells, num tom implicativo — Um

coxo faz o mesmo. Com a ajuda das muletas. Primeiro, o pé válido. Em

seguida, os apoios. E assim por diante. Talvez os marcianos precisem dos

outro cinco tentáculos livres para manejar outros sistemas do trípode. Como

os canhões de calor...

— Meus senhores — lembra o sargento Carter, observando a sombra que

se vai estendendo sobre a cratera. — Devido ao adiantado da hora, sugiro

que deixemos este debate para mais tarde, ok? Temos de procurar um abrigo

seguro antes que a noite caia e a temperatura ambiente desça ainda mais.

Falta-nos ver Londres antes de entrar na pirâmide...

— Parbleu, c’est vrai!

— O meu sargento não podia ser mais perspicaz! — comenta o soldado

Edgar com a espingarda assente na cova do braço, sempre a tirar notas e

rabiscos.

Wells sabe que devia ser essa a sua função. Cronicar. Reportar. Deixar

um fragmento de si mesmo para a posteridade. Mas não lhe apetece. Afinal

quer lá saber. A enormidade de tudo isto ultrapassa-o. Está perdido numa

46


cratera de um outro mundo, rodeado pelos destroços de uma tecnologia que

a humanidade raivosa veio roubar. Atormentado por uma sensação cada vez

mais avassaladora de dejá vu. Rodeado de provincianos, pedantes e arrivistas.

E com poucas horas de vida disponível.

Wells suspira, olha para o céu que escurece, esse céu quase coberto pela

nuvem de poeira libertada pela explosão distante, e ao olhar vê mais um

relâmpago de luz a refletir-se no lençol de grãos oxidados em suspensão.

Por baixo das botas, o chão gelado estremece devagarinho e lá no seu íntimo

sabe que a devastação continua, que as frias inteligências que outrora

governavam Marte prosseguem, mesmo mortas, numa campanha implacável

de destruição de provas incriminatórias.

— Então, vamos lá — diz-lhes, puxando-os pela corda Bell. — Se temos

que ir mesmo...

VI

O modelo de Londres — que o sargento Carter descobriu pela primeira

vez, à distância, pelo único periscópio ainda operacional do cilindro — é

quase perfeito, à escala, deformado apenas pelo círculo que controla a

pirâmide como um planisfério em forma de roda de carroça. Mas é

tridimensional, prédios, jardins, palácios e enxovias encontram-se

reproduzidos com minucioso cuidado, com uma altura de meio metro. O

grupo passa por cima de Londres com toda a cautela — à exceção do velho

Jules que não vê bem onde pôs as botas — e, ao passarem notam, que Londres

está dividida em zonas hexagonais, pintada com cores diferentes: verde,

vermelho, amarelo, como se os marcianos tivessem sentido a necessidade de

marcar setores muito específicos.

— Que vem a ser isto ? — pergunta o sargento Carter. — Os cavalheiros

têm alguma sugestão? Hexágonos? Por que não círculos?

— C’est un mape tridimensionnel — exclama Jules. — Et solide, quand

même…Une carte militaire…

— Óbvio que sim… — concorda Wells, olhando de esguelha para o

escrevinhar frenético do soldado Edgar. Irritante o tipo! — E as cores indicam

locais a destruir...Quanto aos hexágonos, bom, um hexágono tem seis pontos

de acesso, seis vetores de convergência...ao passo que o círculo poucos pontos

tem compatíveis com os outros círculos mais próximos...Em termos militares,

um mapa assim desenhado... — E depois resolve calar-se ao descobrir que o

tempo de atenção do grupo é limitado, que já passou a outros assuntos. Blast

them all!

— E o verde será para...

— Verde para arrasar por completo... Ali ao fundo o Palácio Real... Tower

47


Bridge... O Parlamento... estão pintados de verde. E foram de fato destruídos

pelos invasores...Vermelho para poupar... Mas garanto-vos que não entendo

o critério de escolha... Para quê ignorar certas zonas e arrasar outras?

— Talvez houvesse traidores entre os brits — responde Edgar, com o

lápis apontado na direção de Wells. — E os marcianos sabiam disso. Sabiam

que depois da Terra conquistada, a administração da população humana

sobrevivente teria de ser entregue a alguém...

— O cavalheiro importa-se de retirar o que disse? E já! — vocifera Wells,

de súbito patriótico, com a voz deformada pelo sistema quase inoperante do

fonador Bell.

— Então, soldado Edgar... — zanga-se o sargento Carter. — Quer ser

punido? Olhe o respeito! Alguém lhe pediu a sua opinião? Faço-lhe notar

que estamos a falar de aliados! A integridade do povo britânico não é para

ser posta em causa!

— Mas as zonas... A separação cromática...

— Caro Edgar — diz-lhe Moreau com uma palmadinha no ombro, o

outro braço estendido a afastar Wells de um conflito inevitável — nesta cratera

vemos Londres. Quem sabe o que não veremos nas outras? Uma cratera

dedicada a uma cidade da Terra, pas vrai, Monsieur Verne? Também elas

divididas em sistemas de cores. Com zonas a poupar e a calcinar... Os

marcianos morreram todos. Acho que nunca vamos saber ao certo qual o

sentido destas divisões...

— En effect... — insiste Verne, varrendo com a ponta da bengala as

miniaturas que fizeram a glória do Império britânico. E ao passar da ponta

de aço, os prédios desabam, submissos, com se estivessem ali desde há

milhares de anos a aguardar este sopro de destruição divina. — Zut, alors —

prossegue o indômito aventureiro, apontando com a bengala para um

hexágono mesmo em Picadilly Street. — E se o vermelho é, como afirmam

os cavalheiros, para poupar, o que me dizem a este aqui, que é definitivamente

escarlate?

Wells espreita-lhe por cima do ombro, deixa-se cair de joelhos e a náusea

volta a subir-lhe à garganta. Se pudesse vomitar, vomitava. Mas a verdade é

que não tem mais nada no estômago além dos relentos ácidos de uma papa

vitaminada que ingeriu há muitos meses atrás. Tem medo porque o velho

Jules está precisamente a indicar o local onde se situava o seu clube de

jornalistas, clube onde estava na noite em que os trípodes incendiaram

Londres. Uma zona demarcada com uma tonalidade dez vezes mais intensa

do que o vermelho desmaiado das outras. Como se... Como se...

E antes que Wells se possa levantar, desviar a atenção do soldado Moreau,

48


do piloto Edgar e do sargento Carter — como se fosse obrigação sua explicarlhes

a razão de ser daquelas marcas — , Jules, já desinteressado da descoberta

inexplicada, volta a dar sinais da sua argúcia:

— Não é que eu me queira meter ao barulho — lembra o venerando

autor, com uma bota a macerar a Catedral de Westminster e o dedo do braço

livre agora apontado na direção da boca da pirâmide já tão próxima. — Mas

vem aí alguém. Os cavalheiros importavam-se de prestar um pouco mais de

atenção ao environement ?

— Como?

— Vem aí alguém! E esse alguém, cavalheiros, não se parece nada com

um marciano!

O grupo vira-se em uníssono na direção da boca próxima da pirâmide. O

sargento Carter levanta a metralhadora, destravando o carreto das balas de

cavorite. O piloto Edgar artilha a Mauser. O soldado Moreau saca da

Winchester. Durante alguns instantes, ninguém consegue coordenar-se. Wells

tenta pôr-se de pé para acabar de tropeçar no cabo Bell que o une a Verne.

Dois dos cabos soltam-se, pondo ponto final nas comunicações do grupo.

Jules desaba de novo, desamparado, sobre Wells, espremendo-o contra a

curvatura de Regent Street. O logotipo das Edições Hetzel, debruado a ouro

na espádua do escafandro, do francês cola-se-lhe à curvatura da bolha do

capacete. Quer ver o que se passa, afastar a forma derrubada de Verne, que

apesar das fibras de cavorite e da débil gravidade marciana pesa que se farta.

Mas Verne comporta-se como aquelas baratas que uma vez de costas, numa

mais se endireitam. Limita-se a espernear. E a dizer sacrébleu. Enquanto

isso, os três soldados disparam, disparam e disparam.

E lá ao fundo, qualquer coisa parecida com um avestruz com pescoço de

serpente explode num atropelo de penas e respingos de linfa azulada. Parte

de uma asa feita braço separa-se do resto do corpo. Olhos enormes de cada

lado de um bico móvel, semelhante aos dos psitacídeos, arregalam-se num

estertor que é suposto ser de espanto. As patas enormes estremecem, dobramse

no sentido oposto, e a criatura tomba enfim, vencida pelo poderio bélico

dos indômitos guerreiros. O fato de não estar aparentemente armada não

conta para nada. É um monstro. E os monstros costumam ter finais como

este.

Wells consegue enfim afastar o corpanzil de Jules para o lado. Levantase,

meio a medo, receoso que o choque tenha rasgado o tecido impermeável

do escafandro; mas não, tudo permanece funcional. Bocados de Londres

colam-se ainda ao cinto, mas Wells só tem olhos para a criatura prostrada.

Tem as asas abertas, pernas ao alto, com as garras das patas enfiadas em

49


meias listradas, talvez para proteger os pés da inclemência do solo gelado.

As asas não servem para voar. Possuem dedos nas extremidades. Dedos

sensíveis, móveis, com várias articulações. Ao peito carrega um fole que as

balas perfuraram. O fole funciona ainda, asmático, comprimindo um ar

rarefeito na direção dos pulmões. O fole faz lembrar um acordeão cheio de

botões e luzinhas. Na mão inteira, encharcado em linfa azul, está um paninho

branco.

— Bonito serviço — diz Wells, sem que ninguém o ouça, pois o cabo

Bell continua desligado. — Será que ninguém reparou que este infeliz estava

a render-se?

— Ciel, un autre demon! — comenta Jules, que resolveu levantar-se sem

a ajuda de ninguém.

Solícito, Moreau volta a ligar os cabos, restabelecendo as comunicações.

Depois, guarda a pistola no coldre, debruça-se sobre o cadáver que fumega,

aqui e ali, através das crateras provocadas pelos micro-dardos, toca-lhe com

a ponta dos dedos, comprime o fole que entretanto deixou de funcionar e

comenta a frio:

— Interessante, meus senhores... Aqui está uma outra espécie... Um

avídio... com órgãos manipuladores... talvez mesmo mais eficazes do que

os dos nossos marcianos... tomem nota destes dedos... seis ao todo... E

perigoso, decerto... reparem na curvatura do bico... feito para estraçalhar...

Quanto a este fole, deve funcionar como um compressor de ar. Facilitalhe

a respiração onde a pressão atmosférica for inferior à norma. Uma variante

biomecânica... interessante... E perturbador...porque a minha teoria da carne

plástica, sugeria um órgão transplantado... nunca uma máquina ligada ao

corpo...

— Estava a render-se — insiste Wells.

— Meu caro senhor — ralha o sargento Carter. — Essas decisões

competem aos militares, não ao civis. Muito menos a jornalistas e escritores.

Esta coisa estava a carregar na nossa direção. Com as garras artilhadas.

Estamos em pleno território inimigo. Que queria que nós fizéssemos?

Parlamentar? Better sorry than dead, não acha ?

— De qualquer modo é curioso — diz Verne, dando um ar da sua graça.

— Esta criatura não participou na invasão da Terra. Os marcianos até agora

esconderam-nos a verdade da sua existência... Como se...

Moreau, ainda de joelhos, segura no pescoço mole e serpentóide do

alienígena em busca de um cérebro, que decerto não cabe na extremidade

esguia onde estão localizados bico e olhos. Vê-se que está morto por sacar

de um bisturi e começar uma dissecação in loco. Mas acaba por suspirar,

50


resignado, num som que o fonador interpreta como um silvo.

— Onde é que está o cérebro?

— Cérebro? — insurge-se o sargento Carter. — Você acha que essa coisa

pensa ? Não será antes um animal de ataque? Uma espécie de cão de fila?

— O cérebro estará noutra parte do corpo — sugere Wells. — Não é

obrigatório que a massa cinzenta se localize junto à boca e olhos. Isto é, ou

melhor, foi, um ser inteligente. Capaz de perceber que somos humanos. Um

ser que se veio render. Que queria avisar-nos de qualquer coisa. E que os

cavalheiros, como de costume, resolveram destruir...

— Mr. Wells. As suas insinuações começam a pesar — diz o sargento

Carter, afastando-o com uma palmada no ombro.

— Messieurs, n’oubliez pas que Mr. Wells est mon invité — avisa Jules

conciliador. — Convidado pelas Edições Hetzel que pagaram pela manufatura

deste cilindro. Que mesmo que discordemos daquilo que diz, deve ser tratado

com respeito...

— Em parte concordo contigo... — prossegue Moreau, escarafunchando

nas partes íntimas do avídio, desta feita em busca de órgãos sexuais ou

qualquer outro meio de reprodução. — Mas eis-me perplexo... Bom... os

octópodes marcianos têm sangue com glóbulos vermelhos. Sangue em muito

semelhante ao nosso. Alimentam-se desta erva vermelha, uma parente da

nossa couve. São susceptíveis a doenças humanas, como prova a bactéria

que os destruiu na Terra. Mas já é mais difícil de explicar a presença desta

criatura. Não existe no nosso mundo nada que se lhe assemelhe. É diferente.

Como se...

— ... viesse de um outro mundo — sugere Wells, olhando de esguelha

para um sargento Carter, majestoso na sua masculinidade, de mãos apoiadas

no cinto.

— Exato — concorda Moreau. — As teorias de evolução explicam muita

coisa. Os ossos dos Leviathans que têm sido encontrados na África Central.

Porque morrem certas espécies fora dos seus meios naturais. Porque já não

há pássaros Dodos. Acredito piamente, o meu sargento que me desculpe a

heresia, que o mundo não foi criado há seis mil anos atrás, à hora do chá.

Que é muito, muito mais antigo. Que todas as espécies participam do mesmo

esquema de inter-ajuda... Mas Marte é um paradoxo.

— Comment ça ? — pergunta Verne, para preencher o silêncio.

Wells sabe, mas resolve calar-se. A sensação de dejá vu é cada vez maior.

Paranóia, como diria o vienense Dr. Freud. Simples paranóia...

— Um planeta necessita de uma pirâmide de espécies... uma pirâmide

que inclua na sua base o animalúnculo mais simples e vá daí até ao mais

51


complexo... Mas em Marte, não há nada... Não existe cadeia evolucionária...

não se detectam hierarquias...só octópodes. Estas couves vermelhas...Aquelas

barreiras coralígenas... e agora... isto... Como se... como se...

— Todas estas espécies tivessem vindo de outro lado... — diz Wells para

o ajudar, já que o resto do grupo resolveu calar-se num silêncio chocado.

— Exatamente. Como se os polvos marcianos tivessem vindo da Terra

numa passado profundo, mais os corais, mais as plantas... Enquanto que este

passarão...

— Porquoi pas de Vénus ? — sugere Jules, sempre oportuno. — Vênus

deve ter florestas por baixo das nuvens. E oceanos. E uma civilização

avançada... Os Venusianos visitaram a terra, recolheram os polvos primordiais,

trouxeram-nos para Marte, e...

— Pois — resmunga Wells. — Só pode... Excelente argumento para uma

novela... Força, meu caro Jules... Cedo-lhe todos os direitos...

— Vous rigolez encore, Monsieur Wells. Mon oeuvre c’est scientifique.

Moi, je n’invente jamais !

Antes que Wells possa dar-lhe a merecida réplica, a torre no topo da

pirâmide aproveita para disparar de novo contra o turbilhão de poeira que

cobre o céu. Grãos ferrosos vaporizam-se em cintilações de quatro de Julho.

O sol, tímido e pequenote, mergulha sob a borda da cratera rumo ao outro

lado do mundo.

E as luzes acendem-se, como num anfiteatro. Lá em cima, junto aos

coletores eólicos, chapas em arco, até ali baças, incendeiam-se num brilho

que lembra o sol equatorial. Começam por fulgir como a lua, mas é uma

intensidade lúmica que cresce, cresce e cresce, como se no interior das chapas

houvesse um gás capaz de se incendiar num furor frio, até toda a cratera ficar

iluminada como um dia de verão na velha Terra. Algumas das chapas

permanecem negras e baças, riscadas pelo tempo, estaladas pelos impactos

micrometeoritos, derrubadas por uma qualquer tempestade de poeira mais

violenta. Por causa delas, existem ainda zonas de negrura a assombrar a

estrutura da pirâmide. Mas a face dianteira está bem visível. E só então o

grupo percebe o desenho imenso de um olho, mesmo sobre o portal. A imagem

de um olho dourado a brilhar de raiva.

Fim da primeira parte

Não perca a continuação no próximo número.

João Barreiros é professor de Filosofia em Portugal. Escritor e Tradutor.

Vencedor do Prêmio Nova com os contos “Um dia com Juliana na

Necrosfera” e “A arder caíram os anjos”.

52


Marco A. M. Bourguignon

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53


Em 1997, foi lançada a ficção científica

com elementos de humor

M.I.B - Homens de Preto (M.I.B -

Men in Black), dirigida por Barry

Sonnenfeld e estrelada por Tommy

Lee Jones e Will Smith, que contava

a história de uma entidade secreta

do governo americano encarregada

de, eventualmente, hospedar

e principalmente monitorar a ação

de alienígenas na Terra. Como toda

boa conspiração governamental, isso

era feito sob os

olhos do público,

... o filme procura

explorar bem os mitos

populares sobre os medos das

possibilidades de monstros habitarem

os subterrâneos dos metrôs

e os interiores dos armários...

54

Renato Rosatti

porém sem o conhecimento

deles,

onde podíam

o s

tranqüilamente

estar convivendo

com um extraterrestre

ao nosso

lado e nem sabermos

disso. O roteiro

basicamente mostrava uma dupla

de agentes secretos combatendo

um monstruoso alienígena, vindo

numa nave parecida com um

meteoro, que se apossou do corpo

de um fazendeiro e cuja aparência

real se assemelhava a uma gigantesca

barata. Foi um grande sucesso

de bilheteria e trouxe belos efeitos

especiais, principalmente com

os estranhos alienígenas.

Agora, cinco anos depois, foi

produzida a seqüência M.I.B. - Homens

de Preto II (M.I.B. - Men in

Black II), que entrou em cartaz nos

cinemas brasileiros em 12/07/02,

com o mesmo diretor Sonnenfeld

e dupla de atores principais: Will

Smith e Tommy Lee Jones, que interpretam

os agentes secretos “J”

e “K”, respectivamente. Desta vez,

a missão é impedir

a ameaça

de uma temível

alienígena chamada

Serleena

(Lara Flynn

Boyle). Na verdade,

uma

Kylothiana perversa

e horripilante,

uma espécie

de

criatura repleta de tentáculos disfarçada

na pele de uma bela modelo

humana, e que está na Terra

à procura de um misterioso objeto,

a Luz de Zartha, que lhe conferiria

um super poder. Para auxiliála,

ela recruta outro alienígena disfarçado

de humano (interpretado

por Johnny Knoxville), que na ver-


dade tem duas cabeças, uma delas

escondida numa mochila às costas

. O agente “J” tornou-se agora um

dos mais importantes membros do

secreto órgão do governo que monitora

os ET’s e vai atrás do antigo

companheiro “K”, que havia se aposentado

tendo sua memória apagada

e vindo a trabalhar como um pacato

funcionário do correio

chamado Kevin Brown, em uma

pequena cidade em Massachusetts.

Novamente juntos, eles enfrentam

diversas aventuras e situações

hilariantes em meio aos alienígenas

mais esquisitos

do universo.

A trama de Homens

de Preto 2 é ambientada na cidade

de New York e também foi prejudicada

pelos atentados terroristas

contra os Estados Unidos, com a

queda fatal das torres do World

Trade Center...

55

Além dos

problemas normais

de seu

obscuro ofício,

o agente “J”

tem ainda outras

missões

a d i c i o n a i s ,

como administrar

a crise

emocional de um de seus parceiros,

o agente “T” (Patrick Warburton), e

enfrentar seu inevitável romance

com a bela Rita (Rosario Dawson),

funcionária de uma lanchonete e

testemunha de um crime entre alienígenas

(mais tarde, revelando ainda

uma importante participação na

trama).

São vários os destaques, como:

o divertido cachorro falante alienígena

Frank, que já havia aparecido

rapidamente no filme original e

ganhou mais espaço, desta vez

como um agente MIB, sendo o responsável

por várias cenas engraçadas

envolvendo seus

comentários; a minhoca Jeffrey,

um criatura alienígena gigante de

200 metros de comprimento que habita

os túneis do metrô; as pequenas

criaturas semelhantes a ratos

que vivem num mundo restrito ao

interior de um armário de aço (e

nesses dois últimos casos, o filme

procura explorar bem os mitos populares

sobre os

medos das possibilidades

de

monstros habitarem

os subterrâneos

dos metrôs

e os

interiores dos

armários); os engraçados

quatro

vermes extraterrestres

(que

também apareceram no primeiro filme),

que proporcionam vários momentos

de humor, principalmente

quando tentam ajudar os agentes

secretos no confronto com Serleena

e demonstram tremer de medo; o

momento onde alguns funcionários

dos correios revelam serem extraterrestres

numa brincadeira com os

profissionais desta área; e a cena

onde o agente “K” toca inadverti-


and Magic

(ILM), de George

Lucas. A trama

de “Homens de Preto 2” é ambientada

na cidade de New York e

também foi prejudicada pelos atentados

terroristas contra os Estados

Unidos no trágico e histórico dia 11/

09/01, com a queda fatal das torres

do World Trade Center, as quais apareciam

nas filmagens e tiveram que

ser substituídas evitando uma possível

reação negativa do público americano.

A atriz Famke Janssen estadamente

com o dedo uma esfera

brilhante, mostrando que um simples

toque pode ocasionar a destruição

de um mundo, dependendo

do ponto de vista. Alguns personagens

do filme de 1997 retornaram

agora, como o alienígena contrabandista

Jeebs (Tony Shalhoub),

que tem o poder de regenerar rapidamente

sua cabeça quando estourada,

e o chefe dos homens de preto,

o agente “Z” (Rip Torn).

Curiosamente, o veterano ator Peter

Graves (que atuou como fixo na

nostálgica série

de TV “Missão

Impossível” e

em vários outros

filmes “B” antigos

de horror e

ficção científica)

aparece como o

narrador de um

bizarro programa

de televisão

que exibe casos

insólitos e misteriosos,

além das participações rápidas

do cantor Michael Jackson (tentando

ser um dos homens de preto,

o agente “M”) e do próprio diretor

Barry Sonnenfeld (que não diz uma

só palavra, aparecendo como o pai

de família da casa onde o agente

“K” morava e que retorna para pegar

suas armas num quarto secreto).

Outra curiosidade é uma cena

no quartel general dos agentes

... Homens de Preto 2 acaba

sendo mais um divetido filme,

oportunamente lançado no

período das férias escolares no

Brasil...

56

MIB, onde o funcionário responsável

por guardar a entrada da entidade

está sentado, lendo despreocupadamente

um jornal enquanto, o local

está sendo invadido pela alienígena

Serleena. Na primeira página desse

jornal está escrita uma manchete

sensacionalista, algo irônico como

Satã escapa do inferno!, numa engraçada

relação com os fatos que

realmente estavam acontecendo na

história. O prestigiado maquiador

Rick Baker (que também trabalhou

no primeiro filme e em “Planeta dos

Macacos”, de

Tim Burton) foi

o responsável

pela concepção

fantástica dos

esquisitos alienígenas,

auxiliado

pelos efeitos especiais

da Industrial

Light


va escalada inicialmente

para o papel

da alienígena Serleena,

chegando até a

gravar algumas cenas,

mas teve que

abandonar a produção

por problemas

pessoais, deixando a

vaga para a bela

Lara Flynn Boyle.

Enfim, “Homens

de Preto2” acaba

sendo mais um divertido

filme, oportunamente

lançado no período das férias

escolares no Brasil, repleto de excelentes

efeitos especiais, apesar de

ter uma história curta (somente 88

minutos), simples e até banal. O roteiro

é de Robert Gordon é Barry

Fanaro, não traz elementos novos, o

que parece deixar evidente a intenção

dos realizadores em privilegiar

os efeitos e os fantásticos alienígenas,

que são realmente o grande e

maior destaque, ao invés de investir

numa história mais consistente. Tudo

parece muito previsível e a solução

final para concluir o confronto entre

Serleena e os agentes secretos “J”

e “K” é a esperada e não surpreende,

apesar da cena final ser muito

criativa e encerrar de forma magistral

o filme... Porém, apesar do fraco

roteiro, “Homens de Preto 2” cumpre

seu objetivo de entreter (e com

isso também lucrar...) e vale, principalmente

pelos alienígenas e pela presença

do experiente ator Tommy Lee

Jones, que foi um dos astronautas veteranos

em “Cowboys do Espaço”,

juntamente com Clint Eastwood.

Para quem procura uma diversão

modesta e com toques de humor,

numa aventura de ficção científica

com alienígenas bizarros, esse MIB

II pode ser recomendado como uma

boa opção, que igualmente já conquistou

o público e deu o sinal verde para

a realização de mais uma seqüência,

conforme já anunciado pela produtora

Columbia Pictures.

Renato Rosatti é editor dos fanzines

“Astaroth”, “Juvenatrix” e “Carnage”,

que publicam artigos de cinema

e literatura, contos, quadrinhos e

ilustrações do mundo do horror e

ficção científica.

rrosatti@ig.com.br

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Gian Daton

Um dos gêneros ficcionais mais

capazes de arrebatar multidões e criar

legiões de lãs é a ficção científica.

Algumas das maiores bilheterias de

todos os tempos são filmes de ficção

científica: ET, 2001, Matrix e Guerra

nas Estrelas. Alem disso, há os ruidosos

lãs de Jornada nas Estrelas, Arquivo X

e Perry Rhodan, que nos levam a

perguntar: o que a ficção científica tem

de tão fascinante?

Creio que a resposta pode estar em

duas palavrinhas básicas da cibernética:

informação e redundância. O ser

humano busca a informação, a novidade

e a originalidade. Foge da redundância,

da chatice e da mesmice.

Prova disso é o processo de hipnose.

Ela é um transe provocado pela mente

como uma forma de defesa contra um

estimulo altamente redundante.

O hipnotizador repete à exaustão as

mesmas palavras, sempre num tom de

voz monótono. A mente se nega a

continuar a receber o estimulo e

simplesmente desliga. Nós fazemos isso

no nosso dia-a-dia. Quando alguém

tenta nos contar algo que para nós é

redundante cortamos logo: “Ei, isso eu

já sei!”. Por outro lado, sempre

procuramos novidades. Essa busca de

novidade é a mãe da fofoca e de seu

irmão nobre, o jornalismo.

A ficção científica nos fascina por

apresentar um estímulo altamente

informativo: Através dela, temos

contato com uma realidade

completamente diferente da nossa:

roupas inteligentes, carros que voam e

viagens espaciais.

Tudo na ficção científica é informativo,

dos equipamentos sofisticados aos hábitos

das pessoas. Lembro de uma história da série

de livros Perry Rhodan em que os humanos

encontram seres que vivem em um planeta

alagado. Eles haviam desenvolvido lábios

inferiores salientes para coletar cogumelos

e usavam saias de madeira que lhes

permitiam ir aos locais mais fundos sem

afundar.

Mas nem todo mundo tem a mesma

abertura para a novidade. Pessoas de baixo

repertório preferem programas, livros e

filmes redundantes. O mundo

completamente diferente da ficção científica

as assusta. Quantas vezes não vemos

indivíduos que são absolutamente incapazes

de compreender um filme de ficção

científica? É informação demais para eles.

Não é à toa que algumas pessoas até hoje se

recusem a acreditar que o homem chegou à

Lua.

Se formos procurar os fãs de ficção

científicas, vamos encontra-los entre os

jovens (é notória a abertura para tudo que é

novo dessa idade) e entre as pessoas de maior

repertório: são elas que têm maior

necessidade de informação e as encontram

nas viagens espaciais de Jornada nas

Estrelas ou nos enigmas insolúveis de

Arquivo X.

Gian Daton é jornalista, professor,

roteirista e escritor. Mestre em

comunicação pela Universidade Metodista

de São Paulo.

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Não perca no próximo

número:

Entrevista

com

Gerson Lodi Ribeiro

(Presidente do Clube de Leitores de ficção Científica e Fantasia

Autor brasileiro de História Alternativa)

O Anjo da Morte

de Gian Daton

Novela de Ficção Científica

Um bom emprego

de Carlos Orsini Martinho

Conto de Terror

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