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Revista Dr Plinio 277

Abril de 2021

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Publicação Mensal<br />

Vol. XXIV - Nº <strong>277</strong> Abril de 2021<br />

Combatividade, perspicácia<br />

e ousadia em defesa da Fé


Disse “sim” para a<br />

vocação e a realizou<br />

Congregation of the Sacred Hearts of Jesus and Mary<br />

Padre Damião, considerando a existência de pessoas imersas<br />

num infortúnio profundo, com a doença horrível da lepra,<br />

sentiu tanta compaixão e um tal desejo de ajudá-las a carregar<br />

essa infelicidade tremenda, que teve um movimento interno de<br />

alma de ir à Ilha Molokai, onde havia um imenso leprosário, para<br />

cuidar dos leprosos.<br />

Certo dia, pregando um retiro para eles, disse-lhes: “Meus filhos,<br />

eu queria vos dizer que hoje, mais do que nunca, sou dos vossos, porque comecei a sentir em mim os<br />

primeiros sintomas da lepra.”<br />

Morreu leproso, contente por ter ajudado aqueles coitados a suportar com alegria e resignação a<br />

doença da qual acabou contagiado, dando por bem empregado seus sofrimentos.<br />

Foi a graça de Deus que deu a ele uma especial sensibilidade e clareza de vistas para perceber os<br />

padecimentos daquela gente e o quanto ele era dotado de recursos pessoais, de graça, de bondade, de<br />

consolação para atenuá-los. Então, por amor a Deus, decidiu renunciar a todas as alegrias desta vida<br />

para imergir naquele oceano de dor.<br />

É uma vocação. Esta graça especial bateu em sua alma, como quem bate numa porta, e perguntou:<br />

“Meu filho, queres fazer esse sacrifício? Queres ir para o meio dos leprosos? Queres correr o risco<br />

de ficar leproso, para fazer o bem àqueles infelizes?”<br />

Ele respondeu: “Sim!”<br />

Nessa hora começou um caminho. Ele disse “sim” para<br />

a vocação e a realizou.<br />

Sydney B. Swift (CC3.0)<br />

(Extraído de conferência de 24/8/1991)<br />

São Damião em seu leito de morte<br />

William Brigham (CC3.0)<br />

São Damião com os meninos da<br />

colônia de leprosos de Kalaupapa,<br />

Molokai, em 1889, ano de sua morte.


Sumário<br />

Publicação Mensal<br />

Vol. XXIV - Nº <strong>277</strong> Abril de 2021<br />

Vol. XXIV - Nº <strong>277</strong> Abril de 2021<br />

Combatividade, perspicácia<br />

e ousadia em defesa da Fé<br />

Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

em 1982.<br />

Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

ISSN - 2595-1599<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Roberto Kasuo Takayanagi<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Virgílio Rodrigues, 66 - Tremembé<br />

02372-020 São Paulo - SP<br />

E-mail: editoraretornarei@gmail.com<br />

Impressão e acabamento:<br />

Northgraph Gráfica e Editora Ltda.<br />

Rua Enéias Luís Carlos Barbanti, 423<br />

02911-000 - São Paulo - SP<br />

Tel: (11) 3932-1955<br />

Segunda página<br />

2 Disse “sim” para a vocação e a realizou<br />

Editorial<br />

4 Fecundidade sobrenatural da<br />

Igreja, uma verdade de Fé<br />

Piedade pliniana<br />

5 Oração da noite<br />

Dona Lucilia<br />

6 Uma luz se apaga no tempo,<br />

para brilhar na eternidade<br />

Reflexões teológicas<br />

10 Cristo gladífero e<br />

nossa vida espiritual<br />

A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

15 A marcha da Contra-Revolução<br />

e da Revolução<br />

Calendário dos Santos<br />

24 Santos de Abril<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum............... R$ 200,00<br />

Colaborador........... R$ 300,00<br />

Propulsor.............. R$ 500,00<br />

Grande Propulsor....... R$ 700,00<br />

Exemplar avulso........ R$ 18,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

editoraretornarei@gmail.com<br />

Hagiografia<br />

26 O apóstata que se tornou Santo<br />

Luzes da Civilização Cristã<br />

31 Soldados do Senhor<br />

Deus dos exércitos<br />

Última página<br />

36 Características do batalhador da Santíssima Virgem<br />

3


Editorial<br />

Fecundidade sobrenatural da<br />

Igreja, uma verdade de Fé<br />

Muita gente se admira da atitude dos Apóstolos a propósito da Ressurreição. O Redentor tinha predito<br />

que ressurgiria dos mortos. Porém, tendo Ele expirado na Cruz, os Apóstolos se deixaram dominar<br />

por um abatimento que fazia transparecer claramente toda a vacilação que lhes ia na alma. E São Tomé<br />

quis tocar com os dedos o Salvador, para crer na objetividade da Ressurreição.<br />

Contudo, também nós estamos sujeitos a semelhante fraqueza. Embora creiamos com toda a firmeza na Ressurreição<br />

de Nosso Senhor Jesus Cristo, há outra verdade que Ele afirmou de modo insofismável e a respeito da<br />

qual sua palavra não é menos infalível do que quando predisse sua Ressurreição: é a fecundidade sobrenatural<br />

da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, que permanecerá de pé, sobranceira em relação às investidas de todos<br />

os seus inimigos, até a consumação dos séculos, sempre capaz de atrair pela graça os homens de boa vontade.<br />

A Igreja jamais perderá este dom de atrair as almas. Negá-lo implica em negar que Jesus Cristo é Deus ou<br />

que os Evangelhos são livros inspirados. É, pois, negar a própria Religião. Mas esta verdade que todos aceitam,<br />

todos a possuem em igual extensão, veem-na com igual clareza, tiram dela as mesmas conclusões?<br />

Nos dias turvos que atravessamos, quando vemos a heresia se dilatar e ameaçar o mundo inteiro, quantos julgam<br />

a Igreja tão ameaçada que se sentem inclinados a concessões doutrinárias perante os atuais dominadores do mundo?<br />

Hoje em dia a paganização dos costumes penetrou em todas as esferas da sociedade e cavou um abismo cada<br />

vez mais profundo entre o espírito da Igreja e o da época. À vista disto, muitos aconselham concessões morais<br />

capazes de reconciliar a Igreja com esta sociedade sem cujo apoio se receia que a Esposa de Cristo venha a<br />

sofrer um colapso.<br />

À vista da formação de correntes pseudocientíficas cada vez mais contrárias aos ensinamentos infalíveis da<br />

Igreja, quantos desejariam que ela, se não alterasse as verdades já definidas, ao menos não explicitasse sua doutrina<br />

em pontos ainda controversos, em que qualquer definição por parte do Catolicismo poderia tornar as divergências<br />

com a nossa época ainda maiores?<br />

Ora, a Doutrina Católica é um conjunto de verdades. Desde que nesse conjunto uma só verdade fosse adulterada,<br />

a Doutrina Católica já não seria ela mesma. Assim, tentar acomodá-la, adaptá-la, ajeitá-la é trabalhar para<br />

que ela perca sua identidade consigo mesma; em outros termos, é tentar matá-la.<br />

Logo, achar que o apostolado não é possível sem essa adaptação é julgar que a Igreja só pode vencer morrendo!<br />

A mania de condescender leva muita gente a procurar dilatar os espaços intelectuais reservados à dúvida. Em<br />

presença de uma afirmação deduzida da Doutrina Católica, a pergunta deveria ser: Posso incorporar mais essa riqueza<br />

ao patrimônio de minhas convicções? E não: Que razões posso descobrir para duvidar também disto?<br />

Se a Revelação é um tesouro e a difusão do Evangelho um bem, quanto mais esse tesouro se espalha e esse<br />

bem se distribui, tanto mais contentes devemos ficar. Muitos, entretanto, acham o contrário: “Quanto mais<br />

se ocultam os desdobramentos lógicos da Revelação e se encurtam as consequências do que está no Evangelho,<br />

tanto mais caridoso se é! Como Deus teria sido caridoso se tivesse imposto uma Moral menos severa! Por que<br />

não previu Ele que em nosso século essa Moral seria um trambolho indifusível? Corrijamos a obra de Deus: encurtemos<br />

o que nela está por demais longo, empanemos a luz do que brilha demais, e assim teremos beneficiado<br />

largamente a humanidade.” Quanta gente, na prática, raciocina assim!<br />

Proceder assim não reflete o receio de que a Igreja já não conte com o apoio de Deus e, se não se baratear, já<br />

não possa arrastar as turbas? Essa dúvida sobre o auxílio sobrenatural que Deus dá à Igreja não se parece muito<br />

com a que se sentiu antes da Ressurreição?<br />

Reflitamos nisto e peçamos a Nosso Senhor que, fazendo ressuscitar em nós os tesouros das graças que rejeitamos,<br />

voltemos novamente àquela ortodoxia virginal de Fé e àquela perfeição de vida que talvez o pecado nos<br />

tenha roubado. *<br />

* Cf. O Legionário n. 448, 13/4/1941.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Piedade pliniana<br />

Mateus S.<br />

Oração<br />

da<br />

noite<br />

Flávio Lourenço<br />

Nós Vos agradecemos,<br />

ó Mãe do Bom Conselho,<br />

todas as graças<br />

e favores que nos alcançastes<br />

ao longo deste dia. Perdoai<br />

nossas infidelidades e aceitai<br />

nossa fadiga como merecida<br />

reparação por nossas faltas.<br />

Obtende-nos um repouso<br />

favorecido por vossos santos<br />

Anjos, sob vosso olhar puro<br />

e materno, a fim de que o<br />

despertar amanhã nos encontre<br />

sempre prontos a lutar cada<br />

vez mais por Vós, e assim<br />

amar-Vos com um fervor sempre<br />

crescente. Assim seja.<br />

Virgem do Bom Conselho - Igreja de<br />

Santo Agostinho, Cádiz, Espanha<br />

5


Dona Lucilia<br />

Uma luz se apaga no<br />

tempo, para brilhar<br />

na eternidade<br />

No dia 21 de abril de 1968, Dona Lucilia entregava a alma a Deus,<br />

encerrando sua peregrinação terrena. A serena ação de presença que<br />

a caracterizava continuaria, porém, a se fazer sentir junto a <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />

abrindo-lhe uma nova perspectiva daquele horizonte no qual já o<br />

havia inserido desde tenra infância, quando lhe ensinou a dizer os<br />

nomes de Jesus e Maria antes mesmo de saber falar papai e mamãe.<br />

Durante sua vida, Dona Lucilia<br />

teve todas as formas<br />

de ternura possíveis. Entretanto,<br />

quando ela ficou bem idosa<br />

notei que sua afetividade se expandia<br />

mais comedidamente. Não podia<br />

nem um pouco imaginar que fosse<br />

por querer-me menos, mas pensei<br />

que se tratava da falta de vibratilidade<br />

própria à velhice.<br />

Delicadeza de alma<br />

levada ao extremo<br />

Algum tempo depois de seu falecimento,<br />

porém, soube de um fato<br />

encantador, que a exprime por inteiro.<br />

Ela contou a alguém que havia<br />

programado começar a me agradar<br />

menos alguns anos antes de morrer,<br />

para que eu não sentisse tanto sua<br />

falta quando isto acontecesse. Quer<br />

dizer, até lá chegou a previdência.<br />

Fotos: Arquivo <strong>Revista</strong><br />

6


Dona Lucilia em março de 1968<br />

É uma delicadeza de alma levada<br />

ao último ponto. Porque o egoísmo<br />

moveria a pessoa a pensar: “Quando<br />

eu morrer, que falta ele vai sentir<br />

de mim?” Contaram-me de um senhor<br />

a quem os filhos não respeitavam<br />

como deviam, e que os censurava<br />

dizendo: “Quando eu morrer, vocês<br />

vão sentir a minha falta.” Nunca<br />

ela disse uma coisa destas, mas nunca,<br />

nunca, nunca…<br />

Acho que só a ouvi falar da própria<br />

morte uma vez, com papai. Em<br />

certa época do ano, havia pores do<br />

sol muito bonitos sobre a Praça Buenos<br />

Aires 1 , que se faziam notar de<br />

nossa sala de jantar. Os dois estavam<br />

contemplando o entardecer quando<br />

mamãe se aproximou dele e apoiou<br />

a mão sobre seu ombro. Eu fiquei assistindo<br />

à cena, interessado naturalmente<br />

na ação dela. Então ela disse:<br />

“João Paulo, vamos fazer uma combinação?<br />

Aquele de nós que morrer<br />

depois do outro, quando vier aqui à<br />

janela e encontrar esse pôr do sol,<br />

reza uma Ave-Maria pelo que já faleceu.”<br />

Com certeza ela rezou muitas<br />

Ave-Marias, pois morreu quase<br />

dez anos após meu pai.<br />

Sala de jantar do apartamento<br />

de Dona Lucilia<br />

Em meio ao sofrimento,<br />

contemplando o Céu<br />

que se aproximava<br />

A morte de mamãe se passou do<br />

seguinte modo. Eu ainda me encontrava<br />

em vias de completar o restabelecimento<br />

da crise de diabetes que<br />

tivera, e jantávamos a sós em casa.<br />

Com 92 anos, minha mãe já não estava<br />

inteiramente lúcida e, por isso,<br />

eu falava bem devagarzinho, para<br />

ela poder entender e participar da<br />

conversa. Parecia muito entretida,<br />

olhando-me fixamente e procurando<br />

acompanhar o que eu dizia.<br />

Enquanto estávamos assim, na<br />

tranquilidade de nossa casa, a morte<br />

se apresentou. Ela começou a dizer<br />

que sentia como que uns algodões<br />

em torno do pescoço, que lhe<br />

tiravam o ar e incomodavam muito.<br />

Não havia algodão algum, ela estava<br />

em condições normais. Então percebi<br />

que se tratava de algo grave.<br />

Embora o médico recentemente a<br />

tivesse examinado e achasse que o coração<br />

dela estava normal para aquela<br />

idade, de imediato mandei chamá-<br />

-lo. Com a ajuda da empregada que a<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em março de 1968<br />

auxiliava, levei-a para o quarto e ela<br />

se deitou. Havia chegado o fim de sua<br />

vida: era uma crise cardíaca fortíssima,<br />

acompanhada de asfixia.<br />

Após examiná-la, o médico me<br />

disse baixinho: “O coração está em<br />

condições péssimas, de repente…<br />

Ela chegou ao fim da vida. O senhor<br />

precisa se preparar.”<br />

Naturalmente passei o dia 20 de<br />

abril inteiro junto à cama dela, conversando,<br />

rezando e procurando consolá-<br />

-la. No meio da falta de ar, ela mantinha<br />

uma calma que me deixava pasmo.<br />

E com resolução, olhando sempre<br />

para a frente. Eu notava que ela tinha<br />

consciência de que estava morrendo;<br />

via a morte chegar, mas via também o<br />

Céu se aproximar!<br />

Estando ainda muito debilitado,<br />

no fim do dia fui descansar.<br />

Enquanto as vastidões<br />

da Terra pareciam ficar<br />

desguarnecidas...<br />

Na manhã seguinte, acordei e perguntei<br />

por ela a um médico amigo que<br />

tinha lhe assistido durante a noite. Tomei<br />

o café e li um pouquinho do jornal,<br />

7


Dona Lucilia<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na Missa de sétimo dia de<br />

Dona Lucilia, em 27 de abril de 1968<br />

com a intenção de ir logo vê-la, quando<br />

vieram avisar-me que ela estava in extremis:<br />

“<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, se o senhor quiser<br />

alcançar Dona Lucilia com vida, venha<br />

logo, porque ela está morrendo.”<br />

Eu havia sofrido uma amputação<br />

no pé direito e ainda estava com dificuldade<br />

de locomoção. Levantei-me<br />

como pude e fui para o quarto dela,<br />

contíguo ao meu. Quando cheguei, o<br />

médico disse: “Ela morreu.”<br />

O médico contou que, de repente,<br />

o coração dela falhou e mamãe sentiu<br />

que se aproximava a morte. Percebendo<br />

que eu ainda estava convalescente,<br />

teve tanta delicadeza que não me mandou<br />

chamar. Antes de morrer, ela fez<br />

um grande nome do Padre, assim resoluto,<br />

do alto da cabeça até o peito, e<br />

com esse glorioso sinal da cruz expirou.<br />

Eu entrei no quarto… o que poderia<br />

fazer? Não sei quantas décadas havia<br />

que eu não chorava. Nessa ocasião chorei<br />

copiosamente, caudalosamente…<br />

De imediato, o que eu mais pensei<br />

foi que aquele firmamento de beleza<br />

moral, que era a alma dela para<br />

mim, ia se afastar de minha vista.<br />

E essa ideia era muito<br />

dolorosa.<br />

De outro lado, tinha<br />

a sensação da destruição<br />

e da catástrofe próprias<br />

à morte. Apesar de crer<br />

na vida eterna, eu sabia<br />

que a morte é um castigo<br />

pelo pecado original<br />

e a desintegração de<br />

um dos elementos constitutivos<br />

do ser humano.<br />

Ora, ali estava aquela<br />

que havia me dado a vida.<br />

Aquele corpo que eu<br />

venerava tanto ia ser comido<br />

pelos vermes, reduzido<br />

a pó, e até o último<br />

dia, quando a trombeta<br />

do Anjo soasse, ela<br />

estaria fisicamente na<br />

inanidade da sepultura.<br />

É claro que isto me trazia<br />

dor também.<br />

Mas o que me causava uma espécie<br />

de asfixia – e constituía a dor mais<br />

profunda – era pensar que uma alma<br />

tão nobre, tão venerável, à qual<br />

eu queria tanto, afastava-se do mundo<br />

dos vivos, que ficava cada vez mais<br />

desprovido de grandes almas. E algo<br />

da estética do universo visível se ressentia.<br />

No tremendo apagar de luzes<br />

prenunciativo de uma terrível crise na<br />

Santa Igreja, uma alma dessas ia para<br />

o Céu e deixava as vastidões da Terra<br />

desguarnecidas. Como filho da Igreja<br />

Militante, isso me doía, embora houvesse<br />

mil pensamentos para me consolar,<br />

como o de que ela ia pertencer<br />

à Igreja Gloriosa.<br />

Essas eram as considerações que me<br />

vinham ao espírito, misturadas com mil<br />

recordações difusas da vida dela.<br />

...um horizonte se<br />

abria na eternidade<br />

Depois fui para o meu quarto e<br />

preparei-me para ficar velando o corpo<br />

dela durante sua permanência em<br />

casa e acompanhá-lo até o cemitério.<br />

Enquanto me aprontava, de repente<br />

a tristeza sumiu de minha alma e,<br />

apesar da dor, senti uma serenidade<br />

extraordinária, que era como que uma<br />

ajuda dela, solícita até nesse ponto.<br />

Dirigi-me ao salão de casa onde o<br />

corpo dela estava exposto, e começaram<br />

a chegar os familiares e conhecidos.<br />

Mais tarde fui até o cemitério<br />

em que seria enterrada, mas não<br />

desci para acompanhar o corpo, porque<br />

as minhas condições não o permitiam.<br />

Voltei então para casa. Era<br />

a primeira vez que ali entrava sem<br />

sua dona estar presente… O que eu<br />

podia fazer? Rezar, deitar-me, adormecer.<br />

E a vida continuou…<br />

Daí por diante, a figura de Dona<br />

Lucilia como que passou desta vida<br />

para a minha alma. Lembro-me dela<br />

frequentemente – as reflexões que estou<br />

fazendo mostram bem isso –, mas<br />

sem lamúrias. Diante de mim se abriu<br />

um novo horizonte, na ponta do qual<br />

estava Nossa Senhora e a Santa Igreja<br />

Católica. Nem se tratava de um horizonte<br />

novo, mas um horizonte em<br />

que, pela ação de Dona Lucilia, antes<br />

mesmo de saber dizer papai e mamãe<br />

eu sabia dizer Jesus e Maria.<br />

Nessas condições, a ausência dela<br />

apenas ampliava minha perspectiva:<br />

minha mãe passava a residir no horizonte<br />

que eu devo encontrar quando<br />

chegar minha vez de fechar os olhos<br />

e entrar para a eternidade.<br />

Imaginando o<br />

anelado reencontro<br />

Como se dará esse encontro?<br />

Eu não ouso pensar nisso! Por incrível<br />

que pareça, eu medito a respeito<br />

do Céu com certo cuidado. Porque<br />

a vida é tão dura, e o Céu tão atraente,<br />

que existe o perigo de o homem querer<br />

ir logo para o Céu e deixar a luta.<br />

Agora, por exemplo, posso cair morto<br />

– acontece com tantos homens de minha<br />

idade –, ser julgado e entrar para<br />

o Céu. Tratar-se-ia de uma tal vantagem,<br />

que eu não ouso pensar no Céu!<br />

8


Quando entrarmos afinal no Céu,<br />

nós teremos, desde o primeiro instante,<br />

a visão beatífica. Veremos a<br />

Deus em toda a sua infinitude, glória<br />

e perfeição, de maneira que ficaremos<br />

completamente invadidos por<br />

esse conhecimento pessoal d’Ele.<br />

Ao mesmo tempo, contemplaremos<br />

a humanidade santíssima de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo, depois Nossa<br />

Senhora e, a seguir, todos os Anjos e<br />

Santos. Para compreender o que isso<br />

significará, basta considerar que os<br />

Anjos, mesmo os de coros inferiores,<br />

são de tal natureza que, quando aparecem<br />

aos homens, com frequência os<br />

deixam apavorados. No Céu não cabe<br />

esse temor, mas sim admiração. E tais<br />

maravilhas nós conheceremos na luz<br />

de Deus.<br />

Vamos também reencontrar as pessoas<br />

que amamos na Terra, mas de<br />

modo muito diferente do que as conhecemos,<br />

porque estarão revestidas<br />

da glória do Céu. E nós mesmos estaremos<br />

mudados, pois a mesma glória<br />

nos revestirá.<br />

Será um encontro indizível, a respeito<br />

do qual vale a pena cogitarmos,<br />

mas reconhecendo que a palavra humana<br />

é incapaz de transmitir a realidade.<br />

Mas eu tenho certeza de uma coisa.<br />

É que, quando eu reencontrar<br />

minha mãe, nós, por<br />

assim dizer, nos abraçaremos<br />

e nos oscularemos, como<br />

o fazíamos em vida depois<br />

de uma muito longa<br />

viagem. E assim como ela,<br />

à noite, só ficava tranquila<br />

quando eu retornava à casa,<br />

tenho a impressão – e é uma<br />

mera impressão – de que<br />

Dona Lucilia terá um gáudio<br />

especial vendo que, afinal,<br />

eu cheguei ao Céu!<br />

Entretanto, pelo o que<br />

eu conheço dela, essa alegria<br />

não seria tão completa<br />

se eu arranjasse um jeito de<br />

ir para o Céu antes da hora.<br />

Mamãe seria propensa – para falar<br />

em termos desta Terra – a me perguntar:<br />

“Filhão, por que você cessou<br />

a luta antes da hora?” E ela poderia<br />

me aconselhar, em tom de afetuoso<br />

reproche: “Eu aguentei até 92 anos.<br />

Você não quis aguentar até o fim?”<br />

“Tome um pequeno gole<br />

de minha felicidade”<br />

Muitos anos depois do falecimento<br />

de Dona Lucilia, certo dia tive um<br />

sonho com ela.<br />

Vi uma figura vaga, com aparência<br />

entre uma pessoa real e uma fotografia,<br />

na qual pareceu-me ver mamãe<br />

como ela está na última fotografia<br />

que tirou em vida. Olhei com mais<br />

atenção. Então me comovi muito e exclamei:<br />

“Mamãe!” Ela assentiu confirmando,<br />

mas sem deixar inteiramente<br />

o aspecto, por assim dizer, fotográfico.<br />

Disse a ela uma porção de coisas,<br />

como a queria bem, e chorei – para<br />

mim bastante, porque não sou dado<br />

a chorar. Ela se comprazia muito em<br />

notar o quanto eu sentia sua falta e<br />

me emocionava por vê-la. Sorria<br />

como uma pessoa muito feliz e,<br />

no fundo, levemente dava a entender<br />

que percebia o quanto eu<br />

estava sofrendo, mas que, para<br />

quem estava no Céu, esses sofrimentos<br />

não eram nada.<br />

Sobretudo guardei as expressões<br />

de fisionomia dela, as mais afetuosas<br />

que se possa imaginar. Mas, ao mesmo<br />

tempo, mamãe parecia desejosa<br />

de me fazer compreender o quanto<br />

ela era feliz e que isso deveria me<br />

deixar alegre. Tratava-se como que de<br />

um ensinamento: “Meu filho, veja, eu<br />

estou no Céu e sou tão sensível ao seu<br />

sofrimento. Contudo, isso não perturba<br />

a minha alegria, porque vejo que a<br />

vida terrena é um átimo e que, se você<br />

for fiel, tudo se resolverá. Vendo-<br />

-me assim, tome um pequeno gole de<br />

minha felicidade.”<br />

Quando acordei, percebi que se<br />

tratava de um sonho, mas a sensação<br />

de proximidade dela era tão viva que<br />

me impressionou muito. v<br />

(Extraído de conferências de 1982,<br />

1983, 1984, 1986 e 1994)<br />

1) Localizada no Bairro Higienópolis, em<br />

São Paulo, próxima ao apartamento em<br />

que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> residia com seus pais.<br />

Dona Lucilia em março de 1968<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 22 de abril de 1994<br />

9


Reflexões teológicas<br />

Samuel Holanda<br />

Pórtico do Juízo<br />

Final - Catedral de<br />

Amiens, França<br />

Cristo gladífero e<br />

nossa vida espiritual<br />

Ao longo dos séculos, Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo manifesta aos fiéis diferentes<br />

tonalidades de suas infinitas perfeições,<br />

segundo as necessidades de cada tempo.<br />

Numa época como a nossa, em que<br />

a Igreja e a sociedade se encontram<br />

assaltadas e aflitas, qual de seus<br />

atributos deseja o Redentor realçar?<br />

Movidos por um modo peculiar de<br />

contemplar Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />

os cruzados realizaram proezas santíssimas<br />

e grandiosas; seus nomes ficaram<br />

marcados na História até o fim dos<br />

tempos. Por outro lado, também é certo<br />

que, apesar de muito diversa, a forma<br />

de considerar o Homem-Deus nos séculos<br />

XIX e XX era santíssima e grandiosa,<br />

e levou muitas pessoas a pratica-<br />

Anoção que o Bem-Aventurado<br />

Urbano II e os que,<br />

como Godofredo de Bouillon,<br />

atenderam ao seu apelo pela libertação<br />

do Santo Sepulcro tinham<br />

a respeito de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo era tal que acendia neles o entusiasmo<br />

pela Cruzada. Quer dizer,<br />

no entender desses varões a personalidade<br />

do Redentor continha aspectos<br />

que despertavam em suas almas<br />

o espírito de cruzado.<br />

Ora, o modo de ver Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo a que me habituaram na<br />

minha infância não conduzia de forma<br />

alguma a isso! Faltava, portanto,<br />

um determinado elemento que havia<br />

necessariamente n’Ele, mas que<br />

a “heresia branca” 1 , somada a outros<br />

desfalques do tempo, retirou de sua<br />

Pessoa adorável.<br />

Para compreender bem este tema,<br />

temos de levar em conta alguns pressupostos.<br />

“Nuances” diversas no modo<br />

de considerar Nosso Senhor<br />

Flávio Lourenço<br />

10


em atos santos insignes, representando<br />

todo o sacrifício do espírito humano<br />

e uma santidade autêntica, embora parecesse<br />

que nela não estivesse presente<br />

aquilo que movia os cruzados.<br />

Percebe-se com facilidade que se<br />

trata de uma questão espinhosa. Mas<br />

vamos analisá-la com confiança em<br />

Nossa Senhora de que chegaremos a<br />

uma solução séria, sólida e ortodoxa.<br />

O modo de os medievais verem<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo continha<br />

algo próprio ao período particularmente<br />

guerreiro e militante no qual<br />

viveram. Não se tratava de uma consideração<br />

subjetiva, mas real, que fazia<br />

reluzir atributos especiais da Pessoa<br />

d’Ele. Contudo, sem negar essas perfeições,<br />

em tempos posteriores Ele as<br />

deixou mais na sombra e manifestou<br />

outras, que precisavam ser realçadas.<br />

Portanto, não se pode dizer que tenha<br />

havido algo de defectivo nesse<br />

processo. Mas indiscutivelmente nele<br />

se introduziu um desvio, de maneira<br />

que, quando a época do combate se<br />

apresentou novamente sob a forma<br />

de uma Cristandade tão assaltada e<br />

tão aflita que só se reergueria com<br />

uma Cruzada, os homens encontravam-se<br />

impedidos de ver a<br />

perfeição que Nosso Senhor então<br />

manifestaria.<br />

Sub-reptício exagero<br />

na “mudança de cores”<br />

Quando estudamos a vida dos<br />

Santos do século XIX canonizados<br />

pela Igreja, cuja santidade, portanto,<br />

nos inspira toda a confiança,<br />

notamos com alguma frequência<br />

lances que mostram haver<br />

neles o espírito de Cruzada.<br />

Entretanto, o modo de<br />

apresentar tais Santos ao público<br />

põe na surdina esses fatos,<br />

ainda que sem ocultá-los<br />

inteiramente.<br />

Houve, por conseguinte,<br />

uma certa “mudança de cores” na<br />

consideração da Pessoa de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, disposta<br />

pela Providência<br />

por causa das circunstâncias;<br />

mas houve também<br />

uma certa subtração,<br />

que exagerou essa<br />

diferença de tonalidade<br />

e fez com que o colorido<br />

próprio à Idade<br />

Média estivesse mais<br />

ausente do nosso panorama<br />

do que legitimamente<br />

deveria estar.<br />

Assim, a “heresia<br />

branca” retardou a<br />

evolução geral dos fiéis<br />

na direção que os acontecimentos<br />

pediam e<br />

foi, portanto, nociva<br />

sob esse ponto de vista.<br />

Ademais, ocultou<br />

ou pelo menos subestimou<br />

algo que não deveria<br />

ter ocultado nem<br />

subestimado, acabando<br />

por criar uma situação<br />

muito difícil para<br />

nós. Com efeito, nossas<br />

almas só darão inteiramente<br />

o grande dos<br />

grandes se postas diante<br />

de uma perspectiva e<br />

de uma adoração a Nosso Senhor que<br />

abarque todos os elementos próprios a<br />

despertar o espírito de cruzado!<br />

A alma de cruzado da<br />

Carmelita de Lisieux<br />

Algo muito característico nesse<br />

sentido são as imagens de Santa Teresinha<br />

do Menino Jesus que comumente<br />

vemos, as quais a representam<br />

desfolhando pétalas de rosas.<br />

Quem, dos que rezam a Santa Teresinha<br />

diante dessas imagens e se<br />

extasiam com a santidade dela, tem<br />

a noção de que em sua autobiografia<br />

a Carmelita de Lisieux manifesta desejos<br />

ousadíssimos?<br />

Ela almejava fazer em favor da<br />

Igreja tudo quanto fosse necessário,<br />

Santa Teresinha do Menino Jesus<br />

representando Santa Joana d’Arc<br />

naquele tempo, para salvar as almas.<br />

Então dizia: “Queria corroer-me de<br />

penitências; queria ser missionária<br />

em terras longínquas; queria – agora<br />

vou acrescentar alguns anseios imaginados<br />

– ser professor, e do alto de<br />

uma cátedra prestigiosa desbaratar o<br />

erro dos infiéis; queria ser Bispo, para<br />

do púlpito reivindicar os direitos<br />

da Igreja.” E daí para fora 2 .<br />

A certa altura ela afirma: “Queria<br />

ser um cruzado, para brandir o ferro<br />

contra os inimigos que avançassem<br />

sobre a Igreja!” 3<br />

Ora, a maioria dos devotos de Santa<br />

Teresinha não tem ideia de que isso<br />

estava em seu espírito e, ao ler este<br />

último trecho, talvez até desviassem os<br />

olhos por uma espécie de pudor, julgando<br />

que tal declaração desfiguraria<br />

Divulgação<br />

Godofredo de<br />

Bouillon - Bruxelas<br />

11


Reflexões teológicas<br />

Danilo I.<br />

Bem-aventurado Urbano II convocando<br />

a Cruzada - Basílica de Nossa<br />

Senhora de Luján, Argentina<br />

a beleza moral que viam nela. Porque,<br />

segundo pensam, Santa Teresinha devia<br />

possuir uma forma de doçura que<br />

não era compatível com um cruzado.<br />

Tanto é assim que isso se verifica<br />

mesmo na veneração a Santa Joana<br />

d’Arc, apresentada em geral com<br />

couraça e com todo o apresto de uma<br />

Santa que comanda um exército. Não<br />

há, por exemplo, imagens que a representem<br />

numa atitude de combate.<br />

Sabe-se que ela matou durante as<br />

batalhas, mas chocaria vê-la praticando<br />

o ato de matar, devido a uma ideia<br />

deformada e meio instintiva de santidade<br />

que nos foi transmitida.<br />

Trata-se de formar o<br />

espírito de Cruzada<br />

Cria-se, então, uma espécie de<br />

contradição interna em nós. Decidimos<br />

levar nosso espírito de Cruzada<br />

até o fim, mas nos chocamos com<br />

essa imagem da santidade difundida<br />

em nossos dias, na qual, de fato, há<br />

muito de verdadeiro. Esta é precisamente<br />

a questão: houve mudanças<br />

de matiz legítimas, e houve subtrações<br />

fraudulentas. A tal ponto que<br />

o comum das pessoas jamais imaginaria<br />

Nosso Senhor presente e falando<br />

pelos lábios do Bem-Aventurado<br />

Urbano II na convocação da Cruzada,<br />

que visava libertar a sepultura<br />

d’Ele das mãos dos infiéis.<br />

O resultado é que os elementos<br />

capitais da Cruzada estão ausentes<br />

da meta que comodamente consideramos<br />

como nossa. Torna-se necessária<br />

uma espécie de engenharia para<br />

introduzi-los no nosso panorama<br />

religioso, pois estamos tão habituados<br />

a outra coisa que, por nós mesmo,<br />

não conseguimos.<br />

No dia em que nos abrirmos para<br />

essa perspectiva, nos sentiremos muito<br />

mais livres, sem peias nem amarras,<br />

para tomar a lança e seguir em frente.<br />

Não se trata aqui de partir numa Cruzada,<br />

mas de formar o espírito de Cruzada,<br />

o qual ficou toldado para nós.<br />

Richard Bareford (CC3.0)<br />

Cristo gladífero, o único<br />

ideal capaz de despertar<br />

o espírito de Cruzada<br />

Se olhássemos o Santo Sudário, na<br />

dignidade ali estampada encontraríamos<br />

vários elementos para nos ajudar<br />

nesse passo. Com efeito, o espírito<br />

que animava os cruzados era uma<br />

graça, com o auxílio da qual eles fizeram<br />

maravilhas; logo, nesse espírito<br />

se refletia Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

Assim, para formar a imagem do Salvador<br />

enquanto cruzado, sem dúvida<br />

é legítimo olhar para os cruzados!<br />

O Apocalipse apresenta Nosso Senhor<br />

avançando a cavalo com uma espada<br />

entre os lábios (cf. Ap 1, 16; 19,<br />

15). Esse era o modo usado por certos<br />

guerreiros para portar mais uma<br />

arma. Se a espada se quebrava ou<br />

caía da mão durante a batalha, eles tiravam<br />

outra da boca e continuavam a<br />

lutar. Quer dizer, o Apocalipse O representa<br />

ultracombativo!<br />

Bem, quanto essa figura parece incompatível<br />

com a ideia que temos de<br />

Nosso Senhor! Notamos, portanto,<br />

uma espécie de defeito psicovisual que<br />

se introduziu em nossa alma, o qual<br />

Legião Estrangeira durante<br />

desfile pelas ruínas romanas de<br />

Lambésis, Argélia, em 1958<br />

12


amarra o nosso voo e nos impede de<br />

chegar aonde quereríamos.<br />

Eu insisto muito sobre necessidade<br />

da piedade junto aos membros de nosso<br />

Movimento, e nunca me saciarei de<br />

insistir, mas percebo que, se esse ponto<br />

se introduzisse na nossa piedade como<br />

deve, teríamos muito mais um voo,<br />

facilidade e élan para cem coisas, entre<br />

as quais a prática da virtude da pureza.<br />

Porque essa impostação prepara<br />

maravilhosamente a alma para a castidade.<br />

Contudo, isso nos falta, pois enquanto<br />

a graça nos chama para um lado,<br />

uma noção de piedade cheia de<br />

“senões” nos retém em nosso voo.<br />

Quase se poderia dizer a esse respeito<br />

uma palavra da Escritura que o coro<br />

paroquial da Igreja de Santa Cecília<br />

cantava quando eu era congregado mariano:<br />

“Diripuisti vincula mea, Domine<br />

virtutum, Domine virtutum (Sl 116, 16)<br />

– Rompestes meus grilhões, ó Senhor<br />

dos exércitos.” Lembro-me que ouvia<br />

esse refrão e pensava com os meus botões:<br />

“Isso é tão magnífico, e faz minha<br />

alma voar! Mas o pessoal desta igreja,<br />

inclusive o coro que está cantando, não<br />

entende o seu significado. E mesmo se<br />

alguém desse a tradução, eles não compreenderiam,<br />

de tal<br />

maneira a ideia de virtude<br />

se deixou monopolizar<br />

por um aspecto<br />

magnífico, esplêndido,<br />

que é a clemência<br />

e a pena de quem<br />

sofre.”<br />

Então, só pode haver<br />

um ideal capaz<br />

de despertar o espírito<br />

de cavalaria: Nosso<br />

Senhor visto enquanto<br />

gladífero! Somente<br />

quando contemplarmos<br />

Nosso Senhor<br />

assim, chegaremos<br />

aonde queremos.<br />

A mais alta<br />

postura do<br />

espírito humano<br />

Disso decorre o seguinte:<br />

nossos problemas<br />

se simplificariam<br />

muito e nossas<br />

almas voariam muito,<br />

no momento em que<br />

fôssemos capazes de,<br />

com uma verdadeira<br />

alma de artista, representar<br />

Nosso Senhor<br />

assim, ou quando recebêssemos<br />

uma graça pela qual de fato<br />

O compreendêssemos, de modo experimental<br />

e até visual, assim!<br />

Por quê? Porque o ideal de cavalaria<br />

é a mais alta postura do espírito<br />

masculino e, enquanto tal, capaz de<br />

influenciar o feminino.<br />

Quer dizer, embora uma dama não<br />

possa ser cavaleiro, quando ela admira<br />

o ideal de cavalaria em seu interior<br />

se levanta uma nobreza – não me refiro<br />

à nobreza aristocrática, mas à nobreza<br />

de alma – que, sem tirar-lhe em<br />

nada a delicadeza, a eleva acima da<br />

própria debilidade feminina.<br />

Percebe-se aqui como a figura meramente<br />

feminina, sem ideal de cavalaria,<br />

ressente-se de uma certa debilidade<br />

que o movimento feminista explora.<br />

Porque este procura completar<br />

a mulher com uma nota de força que<br />

a dama romântica do século XIX não<br />

tinha. É evidente. E, constatando essa<br />

debilidade, lhe diz: “Você não percebe<br />

que é uma fracalhona, que a impostação<br />

de sua alma e de sua pessoa<br />

não estão bem?” Grande parte da<br />

modernização da mulher decorre, em<br />

última análise, de que a admiração<br />

pela cavalaria lhe foi retirada.<br />

Uma senhora assim compreenderia<br />

um marido que corresse os riscos<br />

do comerciante ou do self-made<br />

man, mas não compreenderia o homem<br />

que corresse os riscos da Legião<br />

Estrangeira 4 , por exemplo.<br />

Александр Мень (CC3.0)<br />

13


Reflexões teológicas<br />

Norman Saunders (CC3.0)<br />

Também o homem do século<br />

XIX, inclusive os nobres, em via de<br />

regra havia perdido o espírito de cavalaria.<br />

E, por essa razão, degenerava<br />

no nobre de bigode lustroso – no<br />

qual passava não sei que forma de<br />

vaselina perfumada –, cabelos bem<br />

arranjados e maneiras nada cavaleirosas.<br />

Uma vingança da realidade<br />

Resultado: a admiração da humanidade<br />

começou a passar para os atores<br />

de cinema imbuídos de certas formas<br />

de heroísmo não cavaleiroso, mas<br />

cavalar – como, por exemplo, o Tom<br />

Mix e outros atores de filmes de faroeste<br />

–, ou para os que corriam riscos<br />

fabulosos com as fortunas jogando<br />

na bolsa, porque eram homens que tinham<br />

ainda um pouco daquela fortaleza<br />

de espírito que os outros haviam<br />

perdido.<br />

Então, a vingança da realidade<br />

contra a ablação do espírito de cavalaria<br />

foi o movimento feminista para<br />

as mulheres e o movimento cowboy<br />

e self-made man para os homens.<br />

Desse modo, para os moços do meu<br />

tempo o tipo humano europeu parecia<br />

ligeiramente degradado e ligeiramente<br />

vaselinoso, em comparação<br />

com o homem bem-sucedido do<br />

sistema norte-americano.<br />

Donde uma impossibilidade de<br />

se voltar para a tradição, porque<br />

dela havia sido arrancado um elemento<br />

moral integrante fundamental:<br />

o espírito de Cruzada. v<br />

(Continua no próximo número)<br />

(Extraído de conferência de<br />

9/9/1989)<br />

1) Expressão metafórica criada por <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> para designar a mentalidade<br />

sentimental que se manifesta na piedade,<br />

na cultura, na arte, etc. As pessoas<br />

por ela afetadas se tornam moles,<br />

medíocres, pouco propensas à<br />

fortaleza, assim como a tudo que signifique<br />

esplendor.<br />

2) Eis o trecho da Santa da Pequena<br />

Via a que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> se refere: “Apesar<br />

de minha pequenez, desejaria<br />

iluminar as almas como os profetas,<br />

os doutores. Tenho a vocação de ser<br />

apóstolo… desejaria correr a Terra,<br />

propagar teu Nome e fincar tua<br />

Cruz gloriosa<br />

no solo infiel. Ó<br />

meu amor, uma<br />

só missão não<br />

seria suficiente.<br />

Gostaria também<br />

de anunciar<br />

o Evangelho nas<br />

cinco partes do<br />

mundo, até nas<br />

mais longínquas<br />

ilhas… Queria<br />

ser missionária,<br />

não só durante<br />

alguns anos, mas<br />

gostaria de sê-<br />

-lo desde a criação<br />

do mundo<br />

e até o final dos<br />

séculos… Mas,<br />

sobretudo, meu<br />

bem-amado Salvador,<br />

desejaria<br />

derramar meu<br />

sangue por Ti<br />

até a última gota…<br />

[…] Como<br />

Tu, esposo adorado,<br />

queria ser<br />

flagelada e cru-<br />

cificada… Queria morrer esfolada<br />

como São Bartolomeu… Como São<br />

João, queria ser mergulhada no óleo<br />

fervente, queria sofrer todos os suplícios<br />

infligidos aos mártires… […]<br />

Jesus, Jesus, se eu quisesse escrever<br />

todos os meus desejos, teria de pedir<br />

que me emprestasse teu livro da vida;<br />

aí estão relatadas as ações de todos<br />

os Santos, e essas ações gostaria<br />

de tê-las realizado por Ti…” (SAN-<br />

TA TERESA DO MENINO JE-<br />

SUS E DA SAGRADA FACE. Manuscritos<br />

Autobiográficos. In: Obras<br />

Completas. 2. ed. São Paulo: Loyola,<br />

2001, p. 212).<br />

3) “Sinto em mim outras vocações, a de<br />

Guerreiro, a de Sacerdote, a de Apóstolo,<br />

a de Doutor, a de Mártir, enfim,<br />

sinto a necessidade, o desejo de realizar,<br />

para Ti, Jesus, todas as obras<br />

mais heroicas… Sinto na minha alma<br />

a coragem de um cruzado, de um<br />

zuavo pontifício. Queria morrer num<br />

campo de batalha pela defesa da Igreja”<br />

(Idem, p. 211).<br />

4) Legião Estrangeira Francesa, ramo<br />

do Exército Francês criado em 1831<br />

e formado por soldados de infantaria<br />

eximiamente treinados.<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em setembro de 1989<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

14


A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Boaworm (CC3.0)<br />

A marcha da<br />

Contra-Revolução<br />

e da Revolução<br />

O dinamismo pelo qual a Revolução e a Contra-Revolução<br />

caminham nas almas é completamente diferente. A primeira<br />

avança de modo paulatino, como as lavas de um vulcão,<br />

a segunda deve romper o caminho por uma explosão.<br />

Enquanto a perversão se faz gradualmente e por concessões,<br />

a conversão só se realiza mediante grandes esforços.<br />

Na primeira parte deste estudo,<br />

sobre a Revolução e a<br />

Contra-Revolução, vimos<br />

que a maneira de entender a fundo<br />

os fatos históricos é compreender que<br />

eles se passam de acordo com os processos<br />

da Revolução A e da Revolução<br />

B, e foi explicado em que consistia a<br />

diferença entre estes dois processos.<br />

A seguir, será analisado o problema<br />

no terreno individual, para, em<br />

seguida, estudá-lo no campo social.<br />

Três categorias de homens<br />

Por mais que se diga o contrário,<br />

os fenômenos da sociedade humana<br />

só se estudam no homem. A sociedade<br />

é um conjunto de homens<br />

e, portanto, devemos primeiro analisar<br />

quais os princípios que regem<br />

o comportamento dos entes humanos<br />

para, depois, estudarmos o modo<br />

pelo qual eles se aplicam à sociedade.<br />

O primeiro princípio que podemos<br />

enunciar é o da divisão dos homens<br />

em três categorias:<br />

15


A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Gabriel K.<br />

1ª) o miles Christi, o soldado de<br />

Cristo;<br />

2ª) o miles diaboli, o soldado do<br />

demônio;<br />

3ª) e o amicus Christi et diaboli, o<br />

pragmatista. Não encontramos outros<br />

homens sobre a face da Terra, ao menos<br />

nos países de Civilização Cristã.<br />

O miles Christi, ou miles Ecclesiæ –<br />

o que é a mesma coisa –, é um homem<br />

para o qual o principal da vida é servir<br />

à Igreja Católica. Ele compreende<br />

que todo o encanto, toda a beleza,<br />

toda a graça e toda a dignidade da vida<br />

provêm do fato de se servir à Igreja<br />

Católica Apostólica Romana. E devido<br />

a isto, para sua felicidade, para o<br />

seu bem-estar até, mas, sobretudo, para<br />

cumprir o seu dever, ele se consagra<br />

Cristo e satanás, homens relaxados,<br />

indecisos e sem ideais.<br />

Este é sem dúvida o principal,<br />

mas não o único campo da batalha.<br />

Nós, que somos filhos da Luz, procuramos<br />

arrancar para a Igreja também<br />

os filhos das trevas, e estes, por<br />

sua vez, buscam atrair-nos para as<br />

hostes da Revolução. Sabemos, porém,<br />

que estas extirpações são muito<br />

difíceis, e por isso a nossa atuação<br />

se concentra, sobretudo, nos que estão<br />

no meio-termo e que constituem,<br />

assim, o principal campo da batalha<br />

universal.<br />

Ainda no estudo do problema no<br />

terreno individual, passemos agora<br />

ao que poderíamos chamar de as<br />

idades da Revolução e da Contra-<br />

-Revolução. Quando pode um homem<br />

dizer-se revolucionário ou contrarrevolucionário?<br />

Como nascem o<br />

revolucionário, o contrarrevolucionário<br />

e o pragmático?<br />

Um dos pontos da Doutrina Católica<br />

menos compreendido em nossos<br />

dias é o que afirma que a criança, em<br />

via de regra, começa a fazer uso de<br />

sua razão aos sete anos e, a partir desde<br />

corpo e alma ao serviço daquela<br />

que é a Arca da Aliança do Novo Testamento.<br />

O miles Ecclesiæ tanto pode<br />

ser um homem muito inteligente, como<br />

muito ignorante. Ser miles Christi<br />

não é algo que decorra da cultura, mas<br />

da Fé e do amor que se tem à Igreja.<br />

Temos, numa outra categoria – mais<br />

difícil de ser admitida pelo liberal –, o<br />

miles diaboli, o qual é o homem que<br />

ama o mal. Alguém poderia contra-argumentar<br />

que em Filosofia se estuda<br />

que o mal, enquanto mal, não pode ser<br />

amado. Evidentemente isto é correto.<br />

Mas o homem tem muitos modos de<br />

se iludir, pelos quais ele chega a amar o<br />

mal sob alguma razão de bem.<br />

E é por isto que muitos homens<br />

são entusiastas do mal, assim como,<br />

por outro lado, nós contrarrevolucionários<br />

somos entusiastas do bem.<br />

E é capital para esse tipo de homem<br />

extirpar o bem da Terra e implantar<br />

o mal, como para nós é fundamental<br />

implantar o bem e extirpar o mal.<br />

Entre essas duas categorias, temos<br />

a dos que são amicus Christi et diaboli.<br />

São os que gostam um pouco de Jesus<br />

Cristo e um pouco do demônio,<br />

mas que, na verdade, não amam a Jesus<br />

Cristo e sim, de uma maneira relativa,<br />

ao demônio. Pertencem ao número<br />

daqueles que, no dizer da Escritura,<br />

têm por deus o próprio ventre –<br />

quorum deus venter est (Fl 3, 19). Estes<br />

homens amam sobretudo a si mesmos.<br />

Às vezes têm certa simpatia por<br />

Deus, às vezes pelo demônio, buscando<br />

sempre conciliar a luz com as trevas.<br />

São os pragmatistas.<br />

Quando pode um homem<br />

dizer-se revolucionário ou<br />

contrarrevolucionário?<br />

Divididos assim os homens em<br />

três categorias, a vida nesta Terra se<br />

nos afigura como uma batalha universal:<br />

do exército de Cristo contra<br />

o exército do demônio, lutando precisamente<br />

para conquistar os indiferentes,<br />

os que estão divididos entre<br />

Flávio Lourenço<br />

O menino pintor - Museu de<br />

Belas Artes, Gante, Bélgica<br />

16<br />

São Fernando, Rei da<br />

Espanha - Sevilha


sa idade, é capaz de cometer pecados<br />

mortais. Há até um Santo que afirmou<br />

ter visto no Inferno uma criança<br />

de cinco anos; pecou mortalmente<br />

e foi logo condenada aos suplícios<br />

eternos.<br />

Isto cria ao liberalismo uma espécie<br />

de choque, de conflito. Para o liberal<br />

é penoso imaginar que uma<br />

pessoa possa ter responsabilidade<br />

moral a partir dos cinco anos. Entretanto,<br />

é o que a Igreja afirma. Com a<br />

idade da razão, que costuma ser por<br />

volta dos sete anos, o homem começa<br />

a ser moralmente responsável.<br />

Via de regra, é também aos sete<br />

anos que começa a se formar o revolucionário<br />

ou o contrarrevolucionário.<br />

A criança, naturalmente, não tem<br />

conhecimento claro disto. Mas o problema<br />

da Revolução e da Contra-Revolução<br />

começa a se lhe apresentar<br />

no seu microcosmo infantil de modo<br />

a formar um certo panorama, uma<br />

certa visão, na qual a criança vai já tomando<br />

atitudes, as quais, por sua vez,<br />

acarretam uma tomada de posição<br />

nos demais campos, não como coisa<br />

fatal, mas como algo provável.<br />

As crianças boas, as<br />

más e as pragmáticas<br />

Como decorrência do exposto,<br />

podemos classificar as crianças<br />

em três tipos: as boas que se tornarão<br />

contrarrevolucionárias; as más<br />

que serão, em sua maioria, revolucionárias;<br />

e, finalmente, as pragmáticas.<br />

Aquele que na infância é bom,<br />

ama seus pais não só porque eles o<br />

agradam, mas porque sabe, instintivamente,<br />

que são bons. Há uma certa<br />

ideia de bem que, muito confusamente,<br />

mas de maneira muito real,<br />

entra naquele amor. E isto de tal forma<br />

que essa criança perderia grande<br />

parte ou a totalidade do amor que<br />

tem a seus pais se os visse praticar<br />

uma ação que sabe ser má.<br />

Bem outro é o querer de uma criança<br />

pragmática. Ela não ama o bem, e o<br />

próprio amor que tem a seus pais baseia-se<br />

no agrado que eles lhe fazem.<br />

Quando o pai a afaga, a criança pragmática<br />

sente-se satisfeita e lhe quer<br />

bem; quando, pelo contrário, ele a desagrada,<br />

ela se enraivece. Quando a<br />

mãe lhe dá um doce, ela a beija; quando<br />

lhe nega, ela a despreza. Isto decorre<br />

do fato de ela gostar do doce e não<br />

da mãe.<br />

Por fim, temos a criança má que<br />

é bem diferente da pragmática. Seus<br />

múltiplos instintos levam-na a desejar<br />

muitas coisas que os pais normalmente<br />

proíbem. Quer implicar com as outras<br />

crianças, matar mosquitos torrando-os<br />

no fogo, salta sobre os móveis e quebra<br />

os objetos, mostra a língua às visitas,<br />

bate a porta no rosto das pessoas e chega<br />

a chorar de tanto rir com o que fez.<br />

A pedagogia moderna diria que isto é<br />

engraçado, infantil. A Doutrina Católica<br />

vê tal modo de proceder com severidade,<br />

e nos ensina que as crianças devem<br />

ser corrigidas desde pequeninas.<br />

Em suma, a criança boa quer divertir-se<br />

com a consciência tranquila,<br />

caso contrário em nada acha graça.<br />

A pragmática, por sua vez, gosta<br />

também de viver dentro do terreno<br />

da legalidade, não por amor, mas tão<br />

somente porque a ilegalidade traz<br />

amolações. É como alguém que observa<br />

as regras de trânsito unicamente<br />

para não ser multado. A criança<br />

má, por seu turno, apenas se compraz<br />

com a ilegalidade; as coisas somente<br />

são divertidas quando arriscadas<br />

e proibidas.<br />

Os bons, desde pequenos, gostam<br />

de sua família devido à ordem que reina<br />

no lar. Os pragmáticos, quando meninos,<br />

apreciam sua família, em última<br />

análise, porque é uma boa incubadeira<br />

onde se vive em paz. Os maus, desde<br />

tenra idade, têm raiva de sua família<br />

porque nela veem reinar a ordem;<br />

preferem a agitação e o barulho.<br />

Luz primordial e<br />

defeito capital<br />

Seguindo essa trilha, podemos<br />

chegar ao ponto-chave. A criança boa<br />

tem o espírito feito para o sacrifício e<br />

de bom grado se presta a ele. A pragmática<br />

aceita o sacrifício, não porque<br />

seja nobre, mas porque compreende<br />

que fazer isto é de boa política. A má<br />

detesta o sacrifício e é capaz de todas<br />

as lutas para fugir à menor cruz.<br />

Nos bons, ainda em idade infantil,<br />

realiza-se o princípio anima humana<br />

naturaliter christiana 1 ; nos pragmáticos,<br />

desde meninos, há uma prudência<br />

que se pode dizer puramente humana;<br />

nos maus, já na infância, encontra-se<br />

o ódio à lei.<br />

Flávio Lourenço<br />

17


A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Gabriel K.<br />

Menina no campo - Museu Hermitage,<br />

São Petersburgo, Rússia<br />

A revolta e o ódio<br />

que existem nas crianças<br />

más nada mais são<br />

do que concupiscências<br />

desordenadas. Assim,<br />

ao chegar à adolescência,<br />

se uma delas ler um<br />

romance em que um policial<br />

e um bandido estão<br />

em luta, naturalmente<br />

ficará do lado do<br />

malfeitor; ela, que nos<br />

brinquedos de criança<br />

era o bandido, acabou<br />

tomando o lado errado<br />

na vida. Como resultado<br />

assim continuará.<br />

E se um dia vier a presenciar<br />

a derrubada de<br />

um governo bom pela<br />

oposição, escolherá esta<br />

facção. Antes de mais<br />

nada é contra tudo, pelo<br />

simples motivo de que<br />

sempre assim o foi.<br />

Quando se lhe colocar<br />

o problema do amor<br />

livre, ela defenderá esta<br />

medida pois desde criança<br />

ardeu em concupiscência.<br />

A partir dos sete anos gostava<br />

de dizer imoralidades; ao chegar<br />

aos vinte será adepta de algum partido<br />

socialista e dirá que as leis a respeito<br />

da moralidade são preconceitos<br />

sem qualquer fundamento.<br />

Em resumo, é desde menino que<br />

começam a formar-se os estados de<br />

espírito. E certo é que todo homem<br />

tem várias idades de revolucionário<br />

e de contrarrevolucionário. Isto<br />

nos leva ao princípio que São Paulo<br />

nos ensina ao dizer que, enquanto<br />

ele era pequeno, pensava como menino,<br />

e depois que se tornou homem<br />

feito deu de mão às coisas que eram<br />

de menino (cf. 1Cor 13, 11). A Revolução<br />

e a Contra-Revolução também<br />

se condicionam a essa regra.<br />

Se analisarmos o homem pragmático<br />

e o confrontarmos com o revolucionário,<br />

veremos que não há diferença<br />

entre ambos; eles são uma só<br />

coisa. O pragmático é um indivíduo<br />

que encontrou o seu prazer em levar<br />

uma vida direita e por isto a leva. O<br />

revolucionário, por sua vez, encontrou<br />

a alegria em ter uma vida má<br />

e, consequentemente, a tem. Mas<br />

os dois procuram seu próprio prazer,<br />

variando apenas no modo de realizá-lo.<br />

Donde se conclui que pragmáticos<br />

e revolucionários pertencem<br />

a uma mesma família, e que de fato<br />

só existem duas raças de pessoas no<br />

mundo: a dos que são de Nossa Senhora,<br />

da ordem, da Contra-Revolução;<br />

e a da serpente, que é a da desordem<br />

e da Revolução.<br />

Sabemos, por outro lado, que há<br />

dois homens dentro de cada homem,<br />

isto é, existe em cada um de nós uma<br />

luz primordial e um defeito capital. A<br />

luz primordial inclina-nos para a Contra-Revolução<br />

e o defeito<br />

capital nos leva para<br />

a Revolução. Mas é preciso<br />

considerar que todo<br />

homem, por mais que<br />

esteja firmemente ancorado<br />

do lado da Revolução,<br />

pode ser levado para<br />

a Contra-Revolução, e<br />

vice-versa. Em outras palavras,<br />

há uma mutabilidade<br />

no homem em relação<br />

a ambos os caminhos.<br />

Não existe – o que<br />

seria desolador – fixidez<br />

em cada uma das rotas.<br />

Modo pelo qual<br />

um homem<br />

passa da Contra-<br />

Revolução para<br />

a Revolução<br />

Isto posto, poder-<br />

-se-ia perguntar de que<br />

modo um homem passa<br />

do caminho da Contra-Revolução<br />

para o da<br />

Revolução.<br />

Em consequência do pecado original,<br />

o defeito capital tem no homem<br />

uma vivacidade assustadora, e com<br />

qualquer pequena concessão se alimenta<br />

e se expande enormemente.<br />

Podemos tomar para exemplo um homem<br />

orgulhoso que seja membro de<br />

uma associação qualquer. Se lhe dissermos<br />

que conhecemos todos os membros<br />

dessa sociedade e que o de maior<br />

valor pessoal é ele, imediatamente nos<br />

julgará um bom homem e um fino psicólogo.<br />

Dirá que o conhecemos bem e<br />

temos a noção exata do que ele é na realidade;<br />

que discernimos bem o aspecto<br />

pelo qual ele é superior a todos, e<br />

que temos bom coração, pois o que os<br />

outros não viram nós percebemos.<br />

O que na realidade fizemos foi dar-<br />

-lhe um veneno. Depois disto, a primeira<br />

vez que alguém o repreender por um<br />

pequeno deslize ele se revoltará: “Co-<br />

18


mo? Eu que sou o mais importante de<br />

todos estou sendo recriminado por esta<br />

criança! Quem é ele para fazer isso?” A<br />

partir de então não tolerará mais nada,<br />

porque o mínimo alimento dado ao defeito<br />

capital tem uma capacidade de inflamação<br />

prodigiosa.<br />

Tomemos, ainda a título de exemplo,<br />

um homem que pratica a pureza e,<br />

de um modo geral, comporta-se bem,<br />

mas que, repentinamente, consente numa<br />

tentação contra a virtude angélica.<br />

Tendo consentido naquele pecado, é<br />

Flávio Lourenço<br />

possível que ele chegue até o fim de sua<br />

ignomínia. Como chegou Davi a pecar<br />

de maneira tão infame? Olhando uma<br />

vez apenas para o jardim vizinho; uma<br />

única concessão foi o bastante.<br />

A preguiça também atua de modo<br />

semelhante. Aproximamo-nos, por<br />

exemplo, de um preguiçoso e lhe dizemos<br />

que deve trabalhar. É mesmo necessário?<br />

– perguntar-nos-á. Nós demonstramos<br />

que sim e, ao terminarmos,<br />

concorda e nos pergunta qual o<br />

serviço que deve ser feito, acrescentando:<br />

“Quero avisá-lo de que sou<br />

muito ocupado.” E antes ainda de lhe<br />

designarmos o trabalho, indagará se<br />

o serviço não é pesado demais. E isto<br />

porque tudo lhe é custoso e difícil.<br />

Se, por outro lado, dissermos a alguém<br />

que combate a preguiça há vinte<br />

anos que passe um dia bem preguiçosamente,<br />

pois vinte anos de trabalhos merecem<br />

um descanso, arrasaremos a sua<br />

alma. No dia seguinte, poderá acontecer<br />

de ele estar na estaca zero e precisar,<br />

assim, recomeçar todo o esforço<br />

como se não houvesse lutado durante<br />

os vinte anos. Tudo isto porque o defeito<br />

capital é de uma vivacidade extrema.<br />

Assim, se um homem fortemente<br />

contrarrevolucionário alimentar, por<br />

meio de uma concessão qualquer, o<br />

seu defeito capital, como este vício<br />

principal tem uma força de expansão<br />

semelhante à dos gases, em breve ele<br />

invadirá todo o homem e o dominará.<br />

É o processo pelo qual alguém se<br />

torna um revolucionário.<br />

Como se dá a conversão<br />

à Contra-Revolução<br />

Rei Davi - Catedral de Santa Cecília, Albi, França<br />

Qual o processo pelo qual alguém<br />

se torna um contrarrevolucionário?<br />

A resposta a esta pergunta é bem<br />

mais complexa. Encontramos no<br />

Evangelho dois exemplos de tentativa<br />

de formação de um contrarrevolucionário,<br />

uma bem sucedida e outra<br />

fracassada. A primeira é a do filho<br />

pródigo, e a segunda a do moço rico.<br />

Este é caracteristicamente o pragmático.<br />

Era bom, mas queria a vida fácil<br />

e alegre. Encontrou-se com Nosso<br />

Senhor, e o Divino Mestre lhe apresentou<br />

um programa antipragmático.<br />

Ele o recusou, e seguiu seu caminho.<br />

O filho pródigo era também eminentemente<br />

um pragmático. Achava<br />

aborrecida a casa paterna, tinha sede<br />

de aventuras e queria conhecer a<br />

cidade. O pai, vendo as proporções<br />

a que haviam chegado esses maus<br />

desejos, teve a única atitude cabível<br />

nestas situações extremas: deu ao fi-<br />

19


A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Samuel Holanda<br />

lho o quinhão que lhe era devido e<br />

permitiu que partisse.<br />

Dois homens passaram a coexistir<br />

no filho pródigo. De um lado, levava<br />

em si um resto de amor à casa paterna,<br />

mas, de outro, muito amor à vida<br />

de orgia e dissipação. Na cidade perdeu-se<br />

completamente, mas com isto<br />

surgiu dentro dele uma recordação<br />

antiga; o resto de amor que ainda<br />

conservava à casa de seu pai aflorou<br />

à superfície e o mau filho lembrou-<br />

-se do lar paterno. Pela primeira vez<br />

na vida, teve saudades de sua casa.<br />

Dentro de si uma imagem velha, embotada,<br />

semiesquecida, a imagem do<br />

lar começa a aparecer diante de seus<br />

olhos e a tornar-se viva. E tendo entrado<br />

em si, disse: “Levantar-me-ei e<br />

voltarei à casa de meu pai” (Lc 15,<br />

18). Aquele antigo ideal reviveu em<br />

seu interior e ele retorna para a casa<br />

do pai, onde é recebido de braços<br />

abertos.<br />

Todo homem, por mais que se tenha<br />

pervertido, leva dentro de sua<br />

alma uma figura completa dos ideais<br />

de bem e de verdade para os quais<br />

foi criado. Porém, à medida que vai<br />

decaindo na virtude, produz-se um<br />

embotamento em sua consciência<br />

de tal forma que aquela figura tende<br />

a desaparecer; vai sendo sepultada,<br />

mas não destruída, tal como na<br />

lenda bretã da catedral submersa: de<br />

quando em vez ela surge à tona do<br />

mar e tantas recordações de bem, de<br />

moral, de virtude, de fé sobem à tona<br />

da alma do pecador e começam,<br />

repentinamente, a tocar os seus sinos.<br />

Vem, então, a possibilidade da<br />

conversão. O velho ideal se ilumina<br />

e o homem volta a vê-lo brilhar.<br />

Do exposto se conclui que a conversão<br />

para a Contra-Revolução só se<br />

dá quando, de uma maneira intensa,<br />

completa e radical, for até o fundo da<br />

personalidade. A conversão tem que<br />

se basear em um princípio fundamental<br />

daquela alma, que domina todos os<br />

outros, e deve, então, restaurá-la em<br />

toda a sua pureza. Enquanto a perversão<br />

se faz por pequenas etapas e por<br />

concessões, a conversão só se realiza<br />

mediante grandes esforços. Para que<br />

a conversão seja possível, é necessário<br />

empregar grandes energias e despertar<br />

os primeiros princípios. O dinamismo<br />

pelo qual a Revolução e a Contra-Revolução<br />

caminham nas almas é<br />

O filho pródigo - Museu do Prado, Madri<br />

completamente diferente. A primeira<br />

anda passo a passo, a segunda deve<br />

romper o caminho por uma explosão.<br />

Se queremos promover a Contra-<br />

-Revolução não podemos seguir, pois,<br />

a mesma marcha da Revolução, mas<br />

temos que fazê-la por outro processo,<br />

tirando do fundo das almas a cathedral<br />

engloutie submersa pelas ondas do vício.<br />

Os motivos são outros, e a técnica<br />

completamente diferente.<br />

Os métodos da<br />

Revolução e da Contra-<br />

Revolução são opostos<br />

Digamos, agora, uma palavra sobre<br />

o embotamento. O que entendemos,<br />

em linguagem comum, por um homem<br />

embotado? É aquele cujo espírito tem<br />

apenas uns pequenos lampejos, uns<br />

restos de clarividência, e nada mais.<br />

No fundo de todo pragmático há<br />

resquícios de virtudes católicas embotadas;<br />

ele é por excelência um homem<br />

embotado. Quando se fala de<br />

Jesus Cristo ou da sua Igreja, ele sorri<br />

com um pouco de simpatia, como<br />

um surdo que consegue ouvir as últimas<br />

notas de um concerto. Porém, se<br />

se lhe admoesta acerca de sua concupiscência,<br />

o seu embotamento sofre<br />

uma metamorfose, suas energias entorpecidas<br />

despertam e ele ou procurará<br />

dominar-se, ou correrá até os extremos.<br />

Vejamos a importância disto.<br />

As considerações desenvolvidas<br />

neste ponto são de tal modo importantes<br />

que, antes de passarmos para<br />

outro aspecto do problema, é de toda<br />

a conveniência fazermos um apanhado<br />

geral delas.<br />

Definimos o embotamento e vimos<br />

os seus efeitos com referência<br />

ao problema da Revolução e da Contra-Revolução.<br />

Uma das consequências<br />

mais importantes desses efeitos<br />

– tão importante que se poderia chamar<br />

a filosofia de ação do contrarrevolucionário<br />

– pode ser assim enunciada:<br />

uma é a técnica da conversão,<br />

outra a da perversão.<br />

20


Flávio Lourenço<br />

O jovem rico do Evangelho - Galeria Nacional, Bologna, Itália<br />

Esta última procede das pequenas<br />

concessões. E isto porque o vício capital,<br />

que é a grande mola da perversão<br />

e a raiz da Revolução, é fácil de ser alimentado<br />

e se inflama extraordinariamente<br />

com qualquer pequeno alimento;<br />

à medida que vai recebendo qualquer<br />

coisa cresce, por minúscula que<br />

seja a dose. Devido a isso, o modo pelo<br />

qual se conduz uma pessoa à Revolução<br />

é, em geral, o das concessões<br />

graduais que vão levando os homens,<br />

de ponto em ponto, até os extremos.<br />

Mas para conduzir alguém à Contra-Revolução<br />

temos que usar o método<br />

oposto. Trata-se de ressuscitar,<br />

dentro da pessoa, aquilo que chamamos<br />

a cathedral engloutie, e isto só<br />

pode ser provocado por meio de um<br />

choque muito grande. A tática da<br />

Contra-Revolução é a desses grandes<br />

choques e apelos à consciência.<br />

O demônio tenta o pecador<br />

por etapas a fim de<br />

anestesiar sua consciência<br />

Esta ideia se esclarece se nos ativermos<br />

a outra imagem. O homem se utiliza<br />

de uma tática para fazer uma pessoa<br />

dormir, e de outra para acordá-la.<br />

No primeiro caso, toca-se uma música<br />

lenta e doce até que a pessoa adormeça.<br />

Mas para despertá-la a utilização<br />

do mesmo método não produzirá<br />

o menor resultado. A tática, nesta circunstância,<br />

é tocar o bumbo!... Então,<br />

o vício capital e a Revolução a adormecem,<br />

exatamente quando a Contra-<br />

-Revolução a acorda.<br />

Todos sabemos como a lava caminha.<br />

Imaginemos uma nova erupção<br />

do Vesúvio e a lava correndo encosta<br />

abaixo. Sabemos que pela sua própria<br />

natureza ela não dá saltos, mas pelo<br />

contrário percorre todas as etapas<br />

intermediárias da encosta da montanha,<br />

até chegar ao vale. Imaginemos,<br />

no entanto, que o Vesúvio em sua explosão<br />

venha a expelir uma pedra.<br />

A trajetória desta é inteiramente diversa<br />

da percorrida pela lava. A pedra<br />

salta de um ponto para outro sem<br />

percorrer as etapas intermediárias.<br />

São, portanto, dois processos diferentes.<br />

Um se faz lentamente, enquanto<br />

o outro atinge diretamente o alvo.<br />

Ao analisarmos o indivíduo pragmático,<br />

vimos que ele é um homem<br />

dividido; ao mesmo tempo um amicus<br />

Christi e um amicus diaboli. É um<br />

templo com dois altares, ou um altar<br />

com duas imagens; tem dentro de si<br />

restos de amor a Nosso Senhor e um<br />

forte foco inicial de amor ao demônio.<br />

Vimos ainda que a tática do demônio<br />

consiste em levar para si o pragmatista<br />

por meio de concessões, que<br />

não cheguem a ser tão violentas a<br />

ponto de provocar um choque e fazer<br />

vir à tona a sua cathedral engloutie.<br />

Se o filho pródigo, por exemplo, tivesse<br />

conhecido um vizinho num estado<br />

semelhante ao seu, certamente a<br />

sua história teria sido outra. Se, quando<br />

ele estivesse para sair de casa, encontrasse<br />

alguém de volta da cidade,<br />

após ter comido as bolotas dos porcos,<br />

ter-se-ia produzido nele um grande<br />

choque que o faria compreender o<br />

caminho infame que estava tomando,<br />

e se deteria. Em seu espírito se produziria<br />

uma “cristalização” repentina,<br />

pois perceberia até onde o ia levando<br />

o amor ao demônio e, com o choque,<br />

a sua cathedral engloutie subiria à tona.<br />

Assim, para o demônio a tática inteligente<br />

é ir tentando o pecador por<br />

etapas, de tal modo que a sua consciência<br />

se vá anestesiando sem nunca<br />

receber um solavanco, pois se isto se<br />

der a batalha estará perdida para ele.<br />

Podemos dizer, então, que o demônio<br />

tem interesse em que a pessoa se<br />

torne revolucionária e desça ao Infer-<br />

21


A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Divulgação (CC3.0)<br />

no pela marcha da lava, isto é, de modo<br />

gradual, por etapas. Muito raramente<br />

ele se interessa pela marcha da pedra,<br />

ou seja, pelos fenômenos psicológicos<br />

em que a pessoa, sem perigo de<br />

se reconverter, é atirada do extremo da<br />

virtude ao extremo do vício. Isto traria<br />

consigo o perigo da “cristalização”.<br />

A Revolução tenta evitar<br />

as “cristalizações”<br />

O fenômeno físico da cristalização<br />

é muito conhecido. Se num recipiente,<br />

onde haja uma solução muito saturada,<br />

se colocar um cristal, a solução<br />

toda se cristaliza. O mesmo se dá<br />

com a consciência humana. Ela está<br />

saturada de remorsos. Repentinamente<br />

alguém faz algo muito revolucionário.<br />

Resulta daí um fenômeno<br />

de “cristalização”, isto é, uma volta à<br />

posição inicial. E é isto o que a Revolução<br />

tenta evitar que se realize.<br />

Com base nas considerações precedentes,<br />

fica evidente que a marcha da<br />

lava é o processo normal da Revolução.<br />

Como exemplo muito concreto<br />

e esclarecedor, podemos apresentar<br />

o de uma pessoa idosa que estava<br />

de passagem pelo Vale do Anhangabaú,<br />

em São Paulo, e fez a seguinte<br />

Vale do Anhangabaú em 1895<br />

observação: “Veja que mudança! Eu<br />

comi lambaris pescados no riacho do<br />

Anhangabaú, no tempo em que aqui<br />

só havia chácaras de um e de outro lado.<br />

Hoje o rio está canalizado. Como<br />

tudo isto se transformou!”<br />

Eu, que presenciava o fato, pus-me<br />

a considerar a enorme diferença daquela<br />

São Paulo antiga, em que o Rio<br />

Anhangabaú brilhava ao Sol com suas<br />

chácaras marginais, e de outro lado<br />

a cidade atual com seus arranha-<br />

-céus e avenidas. O Viaduto do Chá<br />

ainda não existia e o trajeto, que hoje<br />

fazemos de automóvel, era realizado<br />

a cavalo. Depois, já no tempo da República,<br />

o viaduto construído era tão<br />

primitivo que se pagava pedágio ao<br />

passar por ele, e o trânsito tão pouco<br />

intenso que os homens que cobravam<br />

esse pedágio avisavam-se mutuamente<br />

de que uma pessoa ia passar,<br />

por meio de um toque de corneta! As<br />

senhoras vestiam saias rodadas, com<br />

todos os costumes próprios da época;<br />

os homens, de cartola, cumprimentavam-nas<br />

respeitosamente; as crianças<br />

tratavam os mais velhos com todo<br />

o respeito e veneração; na velha Faculdade<br />

de Direito, os professores se<br />

apresentavam com a tradicional beca.<br />

Eram outros hábitos, outro mundo!<br />

Como se sentiam naquele<br />

tempo essas pessoas,<br />

esses alunos? Imaginemos<br />

que existisse em São<br />

Paulo, na época dos lambaris<br />

do Rio Anhangabaú,<br />

um grupo de contrarrevolucionários<br />

que profetizasse,<br />

para o ano de 1964,<br />

uma moda segundo a qual<br />

as mocinhas, como as mulheres<br />

nas penitenciárias,<br />

usariam cortados os seus<br />

bonitos cabelos longos, de<br />

que então se ufanavam;<br />

que veriam suas filhas usarem<br />

calças de homem, saírem<br />

sozinhas com rapazes<br />

pelas ruas e até em excursões;<br />

e, além disso, apresentassem<br />

um croquis representando<br />

um maiô de banho em 1964! Essas senhoras<br />

começariam a chorar e a dizer<br />

que não seria verdade. Todos acusariam<br />

esses contrarrevolucionários de<br />

estarem ultrajando a dignidade paulista,<br />

e passariam por desequilibrados.<br />

Pois bem, este estado de coisas, que<br />

apresentado em 1880 provocaria choro<br />

e ranger de dentes, estabeleceu-<br />

-se calmamente no Brasil como em todo<br />

o mundo. E a reação que a geração<br />

do tempo dos lambaris poderia produzir<br />

foi nula, uma vez que toda essa situação<br />

se instaurou de fato na sociedade.<br />

Se se tivesse visto, no início da evolução,<br />

o ponto a que a Revolução chegaria<br />

em 1964, ter-se-ia, seguramente,<br />

dado uma “cristalização” muito forte.<br />

Todos teriam reagido e se defendido.<br />

Porém, como a Revolução caminha pela<br />

marcha da lava – muito lentamente<br />

–, ela foi inteira e pacificamente aceita.<br />

Um fato histórico<br />

ilustra o gradual<br />

avanço da Revolução<br />

Um característico exemplo histórico<br />

do caminhar lento da Revolução é<br />

o conhecido fato da Duquesa de Berry,<br />

nora do Rei da França, que viveu<br />

22


por volta de 1825. O mar, naquele<br />

tempo, era reputado um lugar bravio.<br />

Então, não se lhe admiravam as belezas.<br />

A humanidade levou muito tempo<br />

para compreender o mar, o qual<br />

começou a ser apreciado somente na<br />

época do Rei da França, Carlos X.<br />

Foi então que se iniciaram os banhos<br />

de mar. Este hábito chocava<br />

muito porque na época não se compreendia<br />

como era possível praticar<br />

um ato íntimo da vida, como o banho,<br />

em público. Porém, a Duquesa<br />

de Berry, que era contrarrevolucionária<br />

no plano B, mas revolucionária no<br />

plano A, inaugurou os banhos de mar<br />

numa praia do Norte da França.<br />

Ela ia para a praia com uma roupa<br />

rodada, chegando até aos pés, e acompanhada<br />

de suas damas. O prefeito da<br />

cidade esperava-a à beira-mar, vestido<br />

de casaca. Ele acompanhava a duquesa<br />

dando-lhe a mão, e juntos entravam<br />

no mar; da fortaleza ouviam-se salvas<br />

de canhões, pois ali estava Sua Alteza<br />

Real e era necessário saudá-la.<br />

Era uma cerimônia muitíssimo solene.<br />

No entanto, este fato, pelo processo<br />

da marcha da lava, pôs em moda os banhos<br />

de mar. Tornava-se impossível um<br />

banho de mar com tanto aparato e, aos<br />

poucos, foi sendo feito de<br />

modo mais vulgar.<br />

Por volta de 1925, as<br />

moças tomavam banho<br />

de mar com trajes feitos<br />

de uma espécie de borracha,<br />

largos, apertados nos<br />

joelhos e com mangas. Os<br />

homens, por sua vez, trajavam-se<br />

analogamente, e<br />

ainda com um pouco mais<br />

de recato. Porém, por volta<br />

de 1930, estes últimos<br />

começaram a usar uma<br />

espécie de tanga indígena<br />

que são os calções de banho.<br />

Na praia, as moças<br />

mais recatadas fugiam da<br />

presença deles, pois nunca<br />

se vira coisa semelhante.<br />

Hoje, como se sabe, há<br />

nas praias uma imoralidade sem freios<br />

nem medidas. Praticamente nada mais<br />

falta para o nudismo, que em alguns<br />

lugares já começou.<br />

É a marcha da lava. Gradualmente<br />

chegou-se a esse cúmulo de miséria<br />

moral e, no entanto, não houve reações.<br />

De etapa em etapa, o pragmático<br />

foi arrastado até onde não queria.<br />

E isto explica que a geração de 1880 tenha<br />

presenciado as maiores modificações<br />

que se possam imaginar no plano<br />

A com uma indiferença completa. O<br />

triunfo consistiu exatamente em se caminhar<br />

pela marcha da lava e em evitar<br />

a marcha da pedra, as “cristalizações”.<br />

Revolução sofística e<br />

Revolução tendenciosa<br />

Praia belga no ano de 1900<br />

Poder-se-ia concluir, do acima exposto,<br />

que as ideias e as doutrinas<br />

não têm nenhuma importância. As<br />

considerações feitas levar-nos-iam<br />

à afirmação de que não há mal em<br />

lançar uma doutrina errada, mas que<br />

tudo se processa tão somente pelas<br />

tendências e pelos costumes.<br />

Para responder a esta questão é<br />

necessário distinguir duas categorias<br />

de Revolução A: a sofística e a tendenciosa.<br />

A primeira é feita pelas<br />

ideias erradas lecionadas nas cátedras<br />

universitárias, divulgadas pelos jornais,<br />

livros e demais meios de propaganda.<br />

A segunda é a que produz as<br />

tendências, desperta os maus desejos<br />

e age tendenciosamente no homem<br />

para o levar até onde ele não deveria<br />

ir. Na ordem da importância, a Revolução<br />

nas mentalidades, nos costumes<br />

– a Revolução A tendenciosa –<br />

é a mais importante. A Revolução A<br />

sofística, a que incute o erro e é cronologicamente<br />

posterior à tendenciosa,<br />

é menos importante do que esta.<br />

O sofisma só encontra campo na alma<br />

depravada, que deseja o erro.<br />

Teremos, por último, a Revolução<br />

B que, passando aos fatos, transforma<br />

as instituições, as leis e os costumes<br />

2 .<br />

v<br />

(Continua no próximo número)<br />

(Extraído de conferência de<br />

15/10/1964)<br />

1) Do latim: a alma humana é naturalmente<br />

cristã.<br />

2) Cf. Revolução e Contra-Revolução,<br />

Parte I, Cap. V, “A Revolução nas tendências,<br />

nas ideias e nos fatos”.<br />

The Library of Congress (CC3.0)<br />

23


Gabriel K.<br />

C<br />

alendário<br />

São Cleto<br />

1. Quinta-feira da Semana Santa<br />

Santa Maria Egipcíaca, penitente<br />

(†s. V). Famosa pecadora de Alexandria<br />

que, pela intercessão da Santíssima<br />

Virgem, se converteu a Deus na<br />

Cidade Santa e se consagrou a uma<br />

vida penitente e austera além do Jordão.<br />

dos Santos – ––––––<br />

Flávio Lourenço<br />

Santo Isidoro de Sevilha, Bispo e<br />

Doutor da Igreja (†636).<br />

5. São Vicente Ferrer, presbítero<br />

(†1419).<br />

6. Beato Notkero, o Gago, monge<br />

(†912). Passou quase toda a sua vida<br />

no Mosteiro de São Galo, na Suábia,<br />

atual Suíça, onde compôs numerosos<br />

poemas litúrgicos; era débil do<br />

corpo mas não da mente, gago da língua<br />

mas não da inteligência, assíduo<br />

na oração, na leitura e na meditação.<br />

7. São João Batista de la Salle,<br />

presbítero (†1719).<br />

10. Santos Terêncio e companheiros,<br />

mártires (†c. 250). Na perseguição<br />

do imperador Décio, sofreram<br />

cruéis tormentos e foram decapitados<br />

por praticarem a Fé cristã.<br />

11. II Domingo da Páscoa ou da<br />

Divina Misericórdia.<br />

Santo Estanislau, bispo e mártir<br />

(†1079).<br />

Santa Gema Galgani, virgem<br />

(†1905). Mística ardorosa pela Cruz<br />

de Nosso Senhor, que teve como privilégio<br />

receber os estigmas da Paixão<br />

e morrer no Sábado Santo, aos 25<br />

anos de idade, em Lucca, Itália.<br />

12. Santa Teresa de Los Andes, virgem<br />

(†1920). Carmelita chilena que<br />

ofereceu a vida a Deus pela conversão<br />

do mundo. Morreu aos 20 anos.<br />

13. São Martinho I, Papa e mártir<br />

(†656).<br />

14. São Bernardo, abade (†1117).<br />

Superior do mosteiro de Tiron, perto<br />

de Chartres, França, instruiu e conduziu<br />

à perfeição evangélica os numerosos<br />

discípulos que a ele acorriam.<br />

2. Sexta-feira da Paixão do Senhor<br />

São Francisco de Paula, confessor<br />

(†1507). Fundador da Ordem dos<br />

Mínimos, na Calábria, Itália. Foi célebre<br />

pelos milagres que praticou, pelas<br />

profecias que fez acerca do futuro<br />

da Igreja, e pelos exemplos de grande<br />

austeridade de vida, nascida de uma<br />

profunda humildade.<br />

3. Sábado Santo.<br />

São João, bispo (†432). Bispo de<br />

Nápoles, Itália. São João morreu na<br />

Noite Santa da Páscoa, enquanto celebrava<br />

os sagrados mistérios, e foi sepultado<br />

na Solenidade da Ressurreição<br />

do Senhor.<br />

4. Domingo de Páscoa da Ressurreição<br />

do Senhor<br />

Santa Inês de Montepulciano<br />

8. São Dionísio de Corinto, bispo<br />

(†180). Dotado de admirável conhecimento<br />

da Palavra de Deus, instruiu<br />

pela pregação não só os fiéis de sua<br />

diocese em Corinto, na Grécia, mas,<br />

por meio de cartas, ensinou também<br />

os Bispos de outras dioceses.<br />

9. São Máximo, bispo (†282). Como<br />

presbítero em Alexandria, Egito,<br />

acompanhou no exílio e na confissão<br />

da Fé São Dionísio, a quem sucedeu<br />

na sede episcopal.<br />

Flávio Lourenço<br />

Santa Zita<br />

24


––––––––––––––––––– * Abril * ––––<br />

Flávio Lourenço<br />

15. São Damião de Veuster, presbítero<br />

(†1889). Religioso da Congregação<br />

dos Missionários dos Sagrados<br />

Corações de Jesus e Maria, que se<br />

consagrou à assistência aos leprosos<br />

na Ilha de Molokai. Ver página 2.<br />

16. Santa Bernadette Soubirous,<br />

virgem (†1879).<br />

17. Santa Catarina Tekakwitha,<br />

virgem (†1680). Nascida na região de<br />

Quebec, Canadá, sofreu vexações e<br />

ameaças por ter aceitado o Batismo e<br />

oferecido a Deus sua virgindade.<br />

São Guchiatazade, mártir (†342).<br />

Ver página 30.<br />

18. III Domingo da Páscoa.<br />

Santa Antusa, virgem (†s. VIII).<br />

Sendo filha do Imperador Constantino<br />

Coprônimo, soube empregar todos<br />

os seus bens para ajudar os pobres, redimir<br />

os escravos, restaurar as igrejas e<br />

construir mosteiros, recebendo do Bispo<br />

São Tarásio o hábito religioso.<br />

19. São Leão IX, Papa (†1054).<br />

20. Santa Inês de Montepulciano,<br />

virgem (†1317). Com apenas nove<br />

anos, tomou as vestes das virgens con-<br />

Santo Apolônio<br />

sagradas. Fundou em Montepulciano<br />

um mosteiro dominicano. Sua vida<br />

é repleta de episódios maravilhosos,<br />

sendo abundantes os milagres e as<br />

graças místicas. Faleceu aos 48 anos.<br />

21. Santo Anselmo, bispo e Doutor<br />

da Igreja (†1109).<br />

Santo Apolônio, mártir (†185). Cidadão<br />

romano eminente, foi denunciado<br />

como cristão e fez ante o prefeito<br />

Perennio e o Senado de Roma uma<br />

insigne apologia do Cristianismo. Depois<br />

confirmou com seu sangue o testemunho<br />

da Fé.<br />

22. Santa Oportuna, abadessa<br />

(†c. 770). No território francês, foi célebre<br />

pela sua abstinência e austeridade.<br />

23. Santo Adalberto de Praga, bispo<br />

e mártir (†997).<br />

São Jorge, mártir (†s. IV).<br />

Santo Eulógio, bispo (†387). Bispo<br />

de Edessa, na Turquia, que, segundo a<br />

tradição, morreu na Sexta-feira Santa.<br />

24. São Fidélis de Sigmaringa, presbítero<br />

e mártir (†1622). Sendo advogado,<br />

ingressou na Ordem dos Frades Menores<br />

Capuchinhos, onde se destacou<br />

Santo Estanislau<br />

com pregador. Enviado para consolidar<br />

a verdadeira doutrina na Suíça, foi massacrado<br />

pelos hereges em Seewis.<br />

25. IV Domingo da Páscoa.<br />

São Marcos, Evangelista.<br />

26. Nossa Senhora do Bom Conselho.<br />

Ver página 10.<br />

São Cleto, Papa (†88). Segundo sucessor<br />

de São Pedro a presidir a Igreja<br />

Romana.<br />

27. Santa Zita, virgem (†1278).<br />

Distribuía aos pobres o pouco que lhe<br />

sobrava do salário recebido como empregada<br />

doméstica. Sua santidade foi<br />

reconhecida ainda em vida, e confirmada<br />

por grande número de milagres.<br />

É padroeira das empregadas domésticas<br />

e patrona de Lucca, Itália.<br />

28. São Pedro Chanel, presbítero e<br />

mártir (†1841).<br />

São Luís Maria Grignion de Montfort,<br />

presbítero (†1716).<br />

29. Santa Catarina de Sena, virgem<br />

e Doutora da Igreja (†1380).<br />

30. São Pio V, Papa (†1572).<br />

Gabriel K.<br />

25


Hagiografia<br />

fa wiki (CC3.0)<br />

O apóstata que se<br />

tornou Santo<br />

São Guchiatazade era católico e ocupava alto cargo no Império<br />

Persa. Entretanto, por medo da perseguição, renunciou à Fé.<br />

Um bispo, seu grande amigo, ao ser conduzido à prisão, passou<br />

diante dele e, para não ver o apóstata, desviou os olhos com<br />

horror. Esta muda repreensão tocou-o profundamente e, pela<br />

graça divina, converteu-se inteiramente e foi martirizado.<br />

Onome do santo que vamos<br />

comentar hoje é Guchiatazade,<br />

mártir. Deve ser alguma<br />

coisa muito pouco comum essa<br />

biografia, tirada do livro Les Saints<br />

militaires – Os Santos militares –, do<br />

Abbé Profillet.<br />

Um católico que ocupava<br />

alto cargo no Império persa<br />

A Religião Católica fora pregada<br />

com êxito na Pérsia por São Mateus<br />

e São Bartolomeu. Os cristãos nesse<br />

país eram profundamente convictos.<br />

Assim, foram sem conta os mártires<br />

feitos pelo Rei Sapor II, quando<br />

este iniciou terrível perseguição contra<br />

seus súditos que não adoravam, como<br />

ele desejava, o disco solar.<br />

O culto do Sol era a religião imemorial<br />

dos persas, desde os tempos<br />

da sua pré-História. De maneira que<br />

eles haviam de querer sujeitar os católicos<br />

à adoração do Sol.<br />

Por esse motivo, o soberano mandou<br />

encarcerar o Bispo Simeon.<br />

O prelado era amigo de Guchiatazade,<br />

um eunuco do palácio, homem<br />

que ocupava alto cargo e muito considerado<br />

no reino, mas que, temendo<br />

a perseguição, abjurara sua Fé. Ao ser<br />

conduzido à prisão, Simeon passou<br />

diante do eunuco que o saudou, mas o<br />

santo Bispo, para não ver o apóstata,<br />

desviou os olhos com horror. Esta muda<br />

repreensão tocou profundamente<br />

Guchiatazade, fazendo-o chorar dias<br />

seguidos e dizer de si para si: “Se um<br />

homem que foi meu amigo concebeu<br />

contra mim tal indignação, o que não<br />

fará Deus a Quem traí?”<br />

Pensando desse modo, o eunuco<br />

abandonou suas roupas suntuosas e<br />

cobriu-se de luto, assim comparecendo<br />

ao palácio. Essa atitude encheu a<br />

todos de assombro e o soberano chamou-o<br />

logo à sua presença para perguntar<br />

porque lançava, daquele modo,<br />

presságios funestos sobre o reino,<br />

ao que o eunuco respondeu: “Enlutei-me<br />

por causa de minha dupla perfídia<br />

contra meu Deus e contra vós;<br />

contra meu Deus porque violei a Fé<br />

que jurara, preferi vossos favores à<br />

verdade; contra vós mesmo porque,<br />

obrigado a adorar o Sol, eu o fiz com<br />

hipocrisia; meu coração internamente<br />

protestava contra minha conduta.”<br />

Ameaçado por Sapor II, Guchiatazade<br />

permaneceu inalterável em<br />

sua posição, sendo condenado à morte.<br />

Antes do suplício, contudo, pediu<br />

uma última graça ao Rei dizendo-lhe:<br />

“Vós sempre me elogiastes pelo zelo e<br />

devotamento com que servi a vós e a<br />

vosso pai. Agora eu vos rogo: concedei-me<br />

a mercê de um arauto bradar a<br />

todos que Guchiatazade é conduzido<br />

ao suplício não por ter traído os segredos<br />

do Rei, nem por se ter envolvido<br />

em alguma conspiração, mas porque<br />

é cristão e recusou renegar a seu Deus.<br />

Minha apostasia foi conhecida de toda<br />

a cidade, e talvez minha fraqueza<br />

tenha afetado a muitos. Se agora conhecerem<br />

meu suplício e ignorarem a<br />

causa, ele não servirá de exemplo aos<br />

fiéis. Mas, ao contrário, se souberem<br />

de minha penitência e de que eu morro<br />

por Cristo, eu os fortificarei; suas<br />

26


Flávio Lourenço<br />

almas ficarão mais firmes e seu ardor<br />

reacendido. A voz do arauto será como<br />

uma trombeta de guerra, que dará<br />

aos atletas da justiça o sinal do combate<br />

e os prevenirá para que preparem<br />

as armas.”<br />

Assim se fez e São Guchiatazade foi<br />

morto na Quinta-feira Santa do ano<br />

de 342.<br />

Flávio Lourenço<br />

Por medo de ser executado<br />

renegou a Fé<br />

São Bartolomeu (esquerda) e São Mateus (direita)<br />

Catedral de Sevilha<br />

sa infamante para um homem que a<br />

sua esposa o logre, era considerado,<br />

a justo título, muito mais infamante<br />

lograr seu senhor ou o seu vassalo,<br />

roubando-lhe a esposa. Notem que<br />

outra elevação tem a Civilização Católica,<br />

e em que lodaçal de baixeza<br />

se afundava o mundo antigo.<br />

De qualquer forma, acontece que<br />

esses homens assim mutilados tinham<br />

muita possibilidade de entrar<br />

em contato com os reis, os soberanos,<br />

por causa daquela intimidade<br />

de palácio. E como eram indivíduos<br />

que muitas vezes – mas não sempre –<br />

não se entregavam às orgias, nem às<br />

desordens dos homens comuns, eles<br />

liam muito mais, eram mais estudiosos<br />

e frequentemente mais inteligentes<br />

do que os outros. O resultado<br />

é que eles, com muita frequência,<br />

eram guindados aos mais altos postos<br />

do Estado: confidentes de reis,<br />

Lindíssima narração!<br />

É conhecido o sistema bárbaro,<br />

contrário à Doutrina Católica, adotado<br />

em muitos países pagãos e na Antiguidade<br />

em geral, em que eram mutilados<br />

certos meninos, já na primeira<br />

infância, para que eles não tivessem a<br />

potência varonil, de maneira que pudessem<br />

tomar conta dos haréns, dos<br />

lugares onde estavam as várias esposas<br />

dos reis, sem que estes tivessem,<br />

assim, alguma preocupação. Só isso já<br />

mostra a debilidade das instituições<br />

pagãs antigas que alguns historiadores<br />

querem apresentar como tão fortes.<br />

Eram monarquias que se constituíam<br />

exclusivamente sobre o medo,<br />

a coerção. A esposa do rei só podia<br />

estar em segurança diante de homens<br />

mutilados. Se ela tivesse nas suas proximidades<br />

homens não-mutilados, o<br />

rei, apesar de todo o seu poder, podia<br />

dessa esposa recear tudo.<br />

Compreende-se o clima de uma<br />

civilização que isso supõe e a repercussão<br />

lúgubre para todas as instituições<br />

políticas, sociais, econômicas.<br />

Quando nós estudamos a Idade<br />

Média vemos isto: o vínculo que<br />

propriamente une, coordena os elementos<br />

constitutivos de uma instituição<br />

medieval é o de fidelidade,<br />

a ideia de que é ponto de honra de<br />

ambas as partes, do menor como do<br />

maior, observarem as obrigações recíprocas,<br />

de maneira tal que invadir<br />

os direitos do outro é uma vergonha<br />

muito mais para quem lesa do que<br />

para quem é lesado. E se é uma coide<br />

governadores de província, generais<br />

– alguns deles famosos –, todos<br />

eles com muita projeção no respectivo<br />

país.<br />

Temos, então, o caso desse personagem<br />

que, nessas condições, tornou-se<br />

eminente em um dos maiores<br />

impérios da Antiguidade, que foi o<br />

império persa. Ele era católico, tinha<br />

se convertido em razão da presença,<br />

séculos antes, de São Bartolomeu na<br />

Pérsia, e começou a praticar a Religião.<br />

Mas veio o Rei Sapor II que<br />

promulgou um decreto de condenação<br />

à morte de todos os católicos. E<br />

ele, de medo de ser executado, renegou<br />

a Religião. Um outro Santo que<br />

era Bispo, do qual tinha sido antigamente<br />

amigo, passou perto de Guchiatazade<br />

e nem o olhou. O apóstata<br />

o cumprimentou, mas o Prelado<br />

desviou os olhos e continuou caminhando<br />

para o martírio.<br />

27


Hagiografia<br />

Flávio Lourenço<br />

Bela e pitoresca<br />

teatralidade do Oriente<br />

Vejam como são diferentes as<br />

vias da graça. Nosso Senhor encontrou<br />

São Pedro, deitou-lhe um olhar<br />

de bondade e o converteu para todo<br />

o sempre. Dir-se-ia que esse Santo<br />

Bispo deveria imitar o Divino Salvador<br />

e dirigir um olhar de bondade<br />

a este apóstata, pois assim o converteria.<br />

Mas o Espírito Santo sugere<br />

atitudes diferentes, de acordo<br />

com as diversas vias que Ele tem para<br />

conduzir essas ou aquelas almas.<br />

Aconteceu que o Santo passou perto<br />

do apóstata, se encheu de horror e<br />

desviou os olhos com indignação. O<br />

apóstata, em vez de ficar revoltado,<br />

foi tocado pela graça por causa desse<br />

gesto e fez este raciocínio: “Se esse<br />

homem que foi meu amigo me despreza<br />

e me odeia tanto pelo mal que<br />

eu fiz, que dirá Deus diante do Qual<br />

um dia vou ter que comparecer?” E<br />

então ele resolveu mudar de vida.<br />

Uma primeira observação a que<br />

se presta esta ficha diz respeito à variedade<br />

pela qual Deus toca as almas<br />

e inspira o apostolado de cada um.<br />

A uns o Criador dá o amor contagioso,<br />

penetrante que, pela doçura, leva<br />

à união com Ele; a outros concede a<br />

cólera sacrossanta, sublime, que purifica<br />

como um fogo e ordena a Deus<br />

as almas que são objeto dessa cólera.<br />

De qualquer forma, temos aqui uma<br />

bela e profundíssima conversão. Como<br />

São Pedro, embora por vias diferentes,<br />

ele chorou intensamente o seu pecado<br />

e caminhou para o martírio.<br />

Como ele caminhou? A coisa tem<br />

aquela bela e pitoresca teatralidade<br />

do Oriente de que eu gosto tanto.<br />

Quer dizer, normalmente, em termos<br />

ocidentais, ele escreveria uma carta<br />

para o Rei, dizendo: “Vós sabeis onde<br />

eu moro, querendo podeis mandar<br />

pegar-me.” Ou deixava uma missiva<br />

em casa, fugia e desaparecia, o que<br />

no mundo antigo era relativamente<br />

fácil porque a polícia tinha muito<br />

mais dificuldade de se mover, e um<br />

criminoso ou um rebelde levava uma<br />

vida relativamente folgada. Assim,<br />

ele poderia ter entrado perfeitamente<br />

numa ermida, numa tebaida qualquer,<br />

ou passado para outro país onde<br />

a Religião Católica já estivesse estabelecida,<br />

portando riquezas, joias, e<br />

levar uma vida tranquila.<br />

Não, ele resolveu enfrentar o martírio.<br />

Mas, em vez de escrever uma<br />

carta, sentiu, na sua alma de oriental,<br />

São Pedro chorando diante da Virgem - Museu do Louvre, Paris<br />

a necessidade de exprimir por símbolos<br />

aquilo que dizia também por palavras.<br />

Então, ele, o homem poderoso,<br />

apresenta-se diante do Rei todo trajado<br />

de luto. Não sei como seria o luto<br />

de um persa, se o traje era preto,<br />

violeta ou de outra cor; enfim, ele se<br />

apresentou todo vestido de luto para<br />

produzir efeito teatral. E produziu.<br />

“Pequei contra Deus<br />

e contra ti!”<br />

Vendo assim trajado o maior dignatário<br />

do Império, as pessoas, assombradas,<br />

perguntam-lhe: “Estás<br />

de luto? Como se explica isso?”<br />

Podemos imaginá-lo com a fisionomia<br />

sinceramente compungida, porque<br />

teatro nem sempre é hipocrisia,<br />

muitas vezes é a manifestação bela, esplêndida,<br />

da verdade. Ele, então, solenemente,<br />

com os olhos encovados de<br />

dor e de tristeza, disse: “Eu quero falar<br />

com o Rei.”<br />

Guchiatazade, então, penetra nos<br />

jardins do palácio imperial. Há um pátio<br />

com aquelas esculturas de touros<br />

– não propriamente touros alados, à<br />

maneira dos assírios, porém era mais<br />

ou menos desse gênero que usavam os<br />

persas –, leões, etc. Isso é muito mais<br />

bonito que a matéria plástica. Existe<br />

também uma fonte que jorra. Imaginem<br />

como romperia a poesia desse<br />

ambiente se um telefone tocasse...<br />

Mais à frente, ouve-se o burburinho<br />

proveniente de uma antecâmara, onde<br />

as pessoas esperavam para ser chamadas<br />

pelo Imperador. Guchiatazade<br />

é introduzido no palácio do Sapor. Podemos<br />

imaginá-lo atravessando várias<br />

salas, com escravos se curvando à sua<br />

passagem, não olhando a nada e tendo<br />

apenas diante de si, enlevado, a sublimidade<br />

do furor do Bispo que não o<br />

olhou ao ser conduzido à prisão. Fascinado<br />

por aquela fisionomia de uma<br />

cólera fulgurante e deslumbrante, ele<br />

chega até o quarto do Rei, que lhe<br />

pergunta: “Que é isso? Tu prognosticas<br />

o luto no Império de teu senhor?”<br />

28


Dito isto do alto de<br />

um trono, com uma voz<br />

cantante, diante de um<br />

homem que se apresenta<br />

de luto alguns degraus<br />

abaixo, numa sala magnífica,<br />

com alguns escravos<br />

segurando flabelli,<br />

mais adiante um tocador<br />

de flauta com uma serpente<br />

na sua frente e um<br />

incenso que sobe.<br />

Há, então, o diálogo.<br />

Diante dos escravos estupefatos,<br />

ele diz a Sapor:<br />

“Eu pequei contra<br />

vós, ó meu Deus; mas<br />

pequei também contra<br />

ti, ó Rei, porque te menti<br />

quando fui adorar o<br />

Sol. Meu coração inteiro<br />

repelia aquela adoração<br />

que eu fazia.”<br />

Pode-se imaginar a raiva<br />

do Sapor, que o condena<br />

à morte, e ele aceita a<br />

sentença com toda a serenidade,<br />

dignidade, placidez.<br />

A graça suscitava heróis<br />

até mesmo da argila<br />

fraca de apóstatas<br />

A divina Pastora (acervo particular)<br />

Vem, então, a última petição. Pode-<br />

-se supor com que poesia, com que atitude,<br />

com que gestos foi dito: “Ó Rei,<br />

ainda tenho um pedido para te fazer!”<br />

Sapor treme de ódio, mas o Santo não<br />

treme diante do ódio do Rei. Ele tremia<br />

face ao ódio daquele olhar que<br />

não via mais, daquele coração que não<br />

pulsava mais, tremia de entusiasmo<br />

diante da sublime intransigência do<br />

homem que o tinha repudiado.<br />

São Guchiatazade disse: “Eu tenho<br />

um pedido a fazer.” Foi um pedido<br />

magnífico. Ele não rogou a vida.<br />

Alegou a sua antiga fidelidade,<br />

mostrou que não tinha feito nada<br />

contra o Rei, nem contra o Império,<br />

e que até havia servido lealmente<br />

o pai do Sapor. E a esse título, pedia<br />

apenas uma coisa: que arautos<br />

percorressem toda a cidade de Susa,<br />

capital do Império, para comunicar<br />

que ele morria porque era cristão.<br />

Queria, por essa forma, desfazer<br />

o escândalo que muitos cristãos<br />

teriam tido pelo fato de saberem<br />

que Guchiatazade havia apostatado,<br />

logo ele que era a alegria e<br />

a honra de seus irmãos pela alta situação<br />

que ocupava nos momentos<br />

em que se celebrava a Santa Missa.<br />

E o Rei, apesar de todo o seu furor,<br />

atende esse pedido. Por fim, ele caminha<br />

para a morte, é estraçalhado.<br />

Momentos depois, a cidade de Susa<br />

ouve os arautos que proclamam<br />

por toda parte: “Morreu o poderoso<br />

Ministro, o sustentáculo do trono foi<br />

derrubado porque perseverou em ser<br />

católico e não aceitou o culto do Sol<br />

que todos nós prestamos.” Podemos<br />

J. P. Braido<br />

imaginar os católicos no<br />

meio da multidão, enlevados<br />

com o acontecimento,<br />

se olhando apenas<br />

e combinando secretamente<br />

encontros na<br />

primeira morada ou primeiro<br />

esconderijo, para<br />

comentarem o novo<br />

triunfo da graça de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo<br />

e se alimentarem nesse<br />

exemplo na certeza de<br />

que a Religião Católica<br />

não morreria, porque a<br />

graça suscitava heróis de<br />

tal maneira invencíveis,<br />

mesmo da argila fraca<br />

de apóstatas. Calculem o<br />

entusiasmo que isso deveria<br />

provocar.<br />

Devemos<br />

caminhar para o<br />

nosso futuro com<br />

alegria, calma<br />

e confiança<br />

Uma aplicação imediata desses<br />

fatos é esta: para as situações mais<br />

tristes e de maior debilidade da alma<br />

humana, há sempre um remédio, um<br />

auxílio da graça, desde que se peça.<br />

Com certeza Nossa Senhora rezou<br />

por esse homem que havia caído numa<br />

apostasia completa, tinha tantos<br />

liames que o prendiam ao mundo,<br />

era um ministro poderoso e fruía de<br />

uma porção de vantagens na codireção<br />

de um dos maiores impérios da<br />

Terra; ele, portanto, estava tão longe<br />

da Santíssima Virgem, mas por uma<br />

prece foi convertido.<br />

O encontro dele com aquele mártir<br />

que caminhava para o último sacrifício<br />

e recusou olhá-lo evidentemente<br />

foi preparado pela Providência.<br />

O mártir teve aquela reação inspirado<br />

pela graça porque, nas condições<br />

em que Guchiatazade se encontrava,<br />

era o que lhe faria bem. Uma<br />

29


Hagiografia<br />

recusa de olhar bastou para regenerar<br />

um homem que tinha abusado<br />

de tantas graças anteriores. Vemos<br />

um miserável apóstata, que até<br />

pouco tempo antes despertava horror,<br />

transformado de repente em um<br />

Santo da Igreja Católica, cujo nome<br />

mencionamos com respeito.<br />

Devemos ter, na nossa vida espiritual,<br />

uma confiança inquebrantável<br />

na misericórdia de Nossa Senhora,<br />

na onipotência das súplicas que Ela<br />

faz. E por essa forma nos mantermos<br />

sempre animados e perseverantes,<br />

como diz a Escritura: Ainda que caíssem<br />

mil à minha esquerda e dez mil<br />

à minha direita, eu continuaria a lutar<br />

(cf. Sl 90,7). O que no sentido espiritual<br />

quer dizer o seguinte: Ainda que<br />

apostatassem mil à minha esquerda e<br />

dez mil à minha direita, eu continuaria<br />

a esperar. E no nosso caso esperar<br />

que Maria Santíssima, em determinado<br />

momento, reze; e daquelas mesmas<br />

almas, a respeito das<br />

quais tivemos desapontamentos,<br />

tristeza, frustração,<br />

suba novamente para<br />

Deus o aroma da contrição<br />

e do louvor perfeito.<br />

Assim, devemos caminhar<br />

para o nosso futuro<br />

com alegria, calma e confiança.<br />

Não sabemos o dia<br />

de amanhã, que provações<br />

e que batalhas trará para<br />

nós. Não sabemos se mesmo<br />

à nossa direita e à nossa<br />

esquerda teremos decepções.<br />

Não sabemos se seremos<br />

chamados para o martírio.<br />

Uma coisa sabemos:<br />

seremos chamados mais de<br />

uma vez para expormos a<br />

nossa vida. Não tenhamos<br />

medo de nosso medo. É um<br />

erro ter-se medo do medo.<br />

Devemos ter medo de<br />

não rezar, de não recorrer<br />

a Nossa Senhora. Se rezarmos<br />

e recorrermos à Santíssima<br />

Virgem, seremos<br />

apoiados, protegidos e cumpriremos<br />

nosso dever.<br />

O único temor que devemos<br />

ter é de não estarmos<br />

unidos a Nossa Senhora<br />

O único medo que devemos ter é<br />

de não estarmos unidos a Ela. Mesmo<br />

para esse medo há uma súplica<br />

que eu acho muito bonita, a oração<br />

Anima Christi, que se aplica inteiramente<br />

a nós: “Alma de Cristo, santificai-me;<br />

Corpo de Cristo, salvai-<br />

-me...” Em certo momento, há este<br />

pedido belíssimo: “Não permitais que<br />

eu me separe de Vós” – Ne permittas<br />

me separari a Te. Então devemos dizer:<br />

“Minha Mãe, sei que sou tal que,<br />

se for só por mim, eu acabo me separando<br />

de Vós. Mas sei que sois tão insondavelmente<br />

boa e poderosa que<br />

podeis como que me proibir, me impedir<br />

de me separar de Vós. Então,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1971<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

a minha confiança em ser fiel resulta,<br />

minha Mãe, essencialmente disto:<br />

não permitais que jamais me separe<br />

de Vós. Tenho certeza de que, como<br />

nunca se ouviu dizer que tendo alguém<br />

recorrido à vossa proteção, implorado<br />

o vosso auxílio, fosse desamparado,<br />

essa minha súplica também<br />

não deixará de ser ouvida.”<br />

E quanto mais os castigos se aproximarem,<br />

quanto mais sentirmos<br />

os perigos se avolumarem em torno<br />

de nós, tanto mais devemos dizer<br />

ao Imaculado Coração de Maria:<br />

“Não permitais que nos separemos<br />

de Vós!” Ela jamais o consentirá<br />

e, assim, nunca permitirá que nos<br />

apartemos de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, para o Qual Ela é nosso traço<br />

de união.<br />

Esta é a conclusão que devemos tirar<br />

à vista dessa manifestação de poder<br />

da graça. Nossa Senhora não permitiu<br />

que esse Santo se separasse<br />

d’Ela. Ele chegou a apostatar,<br />

mas num determinado<br />

momento Ela o chamou<br />

e ele brilha no Céu<br />

entre os Bem-aventurados.<br />

É um Santo canonizado<br />

pela Santa Igreja Católica<br />

que, mais do que apregoar<br />

a sua penitência para todos<br />

os habitantes de Susa, proclama,<br />

pelo seu exemplo, a<br />

confiança na misericórdia<br />

da Santíssima Virgem a todos<br />

os homens, enquanto<br />

o mundo for mundo. Peçamos<br />

a ele que reze por nós<br />

e que, quando chegarmos<br />

ao Céu, o encontremos lá<br />

bem unido a Nossa Senhora<br />

no resplendor de sua<br />

glória para, em união com<br />

ele, amarmos a Mãe de<br />

Deus e a Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo por toda a eternidade.<br />

v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 12/6/1971)<br />

30


Wolfgang Sauber (CC3.0)<br />

Luzes da Civilização Cristã<br />

Soldados do Senhor<br />

Deus dos exércitos<br />

Gabriel K.<br />

A fortaleza se exprime na vida<br />

humana de um modo mais sensível<br />

na carreira militar. Dos vários<br />

exércitos contemporâneos, nenhum<br />

levou as qualidades militares mais<br />

longe do que o exército alemão do<br />

tempo do Kaiser. Seus membros<br />

estavam impregnados da ideia<br />

de holocausto na defesa de um<br />

princípio, fazendo com que não<br />

medissem riscos nem cansaços.<br />

Segundo a Doutrina Católica, tudo quanto há de nobre<br />

e de belo no mundo é um reflexo de Deus. Portanto,<br />

o Criador possui todas as perfeições em grau<br />

supremo, de um modo inimaginável, mas inteligível.<br />

Mais ainda, não se pode dizer que Deus tenha determinada<br />

perfeição, pois Ele é substancialmente aquela<br />

perfeição. Por exemplo, Ele não possui o mais alto grau<br />

de bondade apenas, mas é a Bondade! Todos os graus e<br />

formas de bondade existentes nos Anjos e nos homens<br />

não constituem senão participações criadas da Bondade<br />

infinita e incriada que é Deus.<br />

Assim, alguém que dissesse: “O Senhor expulsou os<br />

demônios do Céu e, portanto, é muito forte”, diria uma<br />

verdade, mas não a verdade inteira na sua expressão<br />

Cristo, o Rei - Igreja das Bodas<br />

de Caná, Kafr Kanna, Israel<br />

31


Luzes da Civilização Cristã<br />

iwm.org (CC3.0)<br />

mais enérgica. Esta consistiria em afirmar: “Deus expulsou<br />

os demônios do Céu porque Ele é a própria Fortaleza.”<br />

E todas as fortalezas que há na Terra são participações<br />

criadas da divina Fortaleza.<br />

Tive oportunidade de comentar esta virtude simbolizada<br />

em um ente irracional, como é o leão 1 . Entretanto,<br />

pediram-me para tratar a respeito dessa perfeição<br />

divina espelhada nos homens. Para isso julgo mais<br />

adequado analisar fotografias, embora haja o inconveniente<br />

de estas apresentarem elementos infectados de<br />

Revolução.<br />

Qualidades militares dignas<br />

de atenção e análise<br />

A meu ver, a fortaleza se exprime na vida humana de<br />

um modo mais sensível na carreira militar. E parece-me<br />

que, dos vários exércitos contemporâneos – ao menos da<br />

época da fotografia –, nenhum levou as qualidades militares<br />

mais longe do que o exército alemão do tempo do<br />

Kaiser. Não por possuir o monopólio a esse respeito, mas<br />

por ter atingido um grau que, no gênero próprio, não foi<br />

superado e, enquanto tal, resulta muito digno de atenção<br />

e de análise da nossa parte.<br />

É bem evidente que esse exército apresenta defeitos<br />

que o tornam objetável sob vários pontos de vista. O primeiro<br />

deles consiste no seu caráter protestante-prussiano.<br />

A Alemanha da época do Kaiser estava dominada<br />

não mais pela Casa d’Áustria, como fora antes – ou<br />

seja, por uma dinastia católica, paterna, altamente culta,<br />

distinta e nobre –, mas por uma dinastia estritamente<br />

militar, um tanto “sargentona”, protestante, com tudo<br />

aquilo que existe de rígido, inflexível, hirto e agressivo<br />

no Protestantismo.<br />

Estas notas prejudicam em algo – aliás, não pouco –<br />

os aspectos do exército alemão que pretendo comentar.<br />

Mas, para não estar sempre repetindo, deixo isso dito<br />

na introdução, a fim de depois apresentar os lados positivos<br />

que nos interessam, nos quais exatamente se pode<br />

ver alguma semelhança com Deus.<br />

O mundo sem militares ficaria irrespirável<br />

As fotografias que vou comentar datam de pouco antes<br />

da Primeira Guerra Mundial e, portanto, do período em<br />

que a Alemanha kaiseriana havia chegado ao seu apogeu.<br />

Quando estive na Alemanha era tão menino – tinha<br />

quatro anos – que não me lembro de nada a esse respeito.<br />

A única recordação militar que conservo da viagem à<br />

Europa em minha infância não procede da Alemanha,<br />

mas de Paris. Estávamos hospedados num hotel<br />

cujas janelas davam para o Arco do Triunfo e, enquanto<br />

brincava no chão do quarto, de repente ouvi<br />

sons de clarins. Não sei o que aquela clarinada determinou<br />

em mim, mas tive um verdadeiro frisson e<br />

fui correndo para a janela. Vi então um piquete de<br />

dragões de cavalaria que passava, com a couraça,<br />

elmo de metal com aquela crina atrás e montados<br />

em cavalos grandes, que avançavam quase em passo<br />

de parada.<br />

iwm.org (CC3.0)<br />

Miltitärfotograf (CC3.0)<br />

32


Fiquei maravilhado! Nascia em mim o militarista.<br />

Não sou militar, mas militarista ao último ponto, admiro<br />

muito a carreira militar. A meu ver, o mundo sem militares<br />

ficaria irrespirável pois, para a harmonia do espírito<br />

humano, é preciso haver magníficos exércitos na Terra.<br />

Eles constroem mais em tempos de paz pelo seu exemplo<br />

do que destroem em tempo de guerra.<br />

Passemos aos comentários, nos quais procurarei seguir<br />

o seguinte método: descrição do quadro, análise das<br />

virtudes nele representadas e uma referência metafísica<br />

a Deus nosso Senhor, Autor dessas virtudes.<br />

Personificação do brio e garbo de seu exército<br />

Uma das fotografias nos mostra o Imperador da Alemanha,<br />

Guilherme II, comandante supremo das forças<br />

armadas, passando o bastão de comando a um general<br />

durante uma parada.<br />

Em primeiro lugar, faço notar o uniforme. O Kaiser<br />

está vestido como um general de cavalaria. Na cabeça,<br />

porta um elmo de aço encimado por um penacho branco.<br />

Ao soprar o vento, essas penas esvoaçam mais ou menos<br />

como se fossem as asas de um pássaro. Quando não<br />

há vento, elas descem e formam uma espécie de triângulo<br />

muito bonito sobre o elmo.<br />

As dragonas eram peças de rigor nos exércitos daquele<br />

tempo, destinadas a acentuar a impressão de varonilidade<br />

do corpo do militar, aumentando-lhe os ombros.<br />

Guilherme II tem o peito constelado por numerosas<br />

condecorações. De seu lado pende uma espada, e veem-<br />

-se também as botas de cavalaria. Ele monta um cavalo<br />

de primeiríssima categoria, em cujo dorso há uma cela<br />

esplêndida, belamente bordada.<br />

O general está fardado mais ou menos como o Kaiser,<br />

mas se percebe nele uma condecoração especial: uma<br />

faixa que lhe toma todo o corpo, a qual fazia parte do<br />

uniforme dos generais de maior graduação do exército<br />

alemão daquele tempo.<br />

Na atitude do Kaiser notamos, antes de tudo, o perfeito<br />

domínio do cavalo – um animal fogoso –, que ele monta<br />

com completo desembaraço. Guilherme II está sentado<br />

no cavalo como sobre uma cadeira; todo o seu corpo<br />

apresenta uma postura de firmeza e segurança. Vê-<br />

-se nele o estilo marcial de um homem cônscio de que domina<br />

o exército talvez mais poderoso do mundo e de que<br />

personifica, portanto, o brio e o garbo desse exército.<br />

O Kaiser encontra-se na flor da idade para um oficial<br />

superior, quer dizer, ele deve ter mais ou menos uns quarenta<br />

a quarenta e cinco anos. O general já é um pouco<br />

mais velho e pesadão, representando menos bem o garbo<br />

militar sob este ponto de vista. Porém, o exército alemão<br />

tem nele a figura de um guerreiro supremo: calmo,<br />

seguro, varonil, digno e disposto a tocar as coisas para a<br />

frente.<br />

Desejo de quebrar os resíduos da preguiça<br />

Outra fotografia nos permite ver os soldados de infantaria<br />

fazendo manobras e marchando com o famoso<br />

passo de ganso do exército prussiano, que se comunicou<br />

a todo o exército alemão e também a alguns exércitos<br />

sul-americanos. Consiste em marchar levantando a<br />

perna até a altura da cintura para exprimir resolução,<br />

ausência de preguiça. O homem preguiçoso arrasta os<br />

pés, quase não os levanta; o soldado de infantaria resoluto,<br />

disposto a lutar de toda maneira, que transpõe a pé<br />

distâncias enormes, levanta a perna quase até o inconcebível,<br />

manifestando seus desejos de violentar e quebrar<br />

completamente os resíduos da preguiça que sempre existem<br />

numa criatura humana.<br />

Por outro lado, vê-se os batalhões rigorosamente alinhados,<br />

e as filas que vão se sucedendo com a decisão de<br />

Bain News Service (CC3.0)<br />

iwm.org (CC3.0)<br />

33


Luzes da Civilização Cristã<br />

lutar e de matar. As baionetas emergem do alto dos fuzis<br />

portados por soldados revestidos de uniformes escuros e<br />

calças brancas. Quem vê um regimento tem a impressão<br />

de uma máquina de disciplina, de energia, de impacto<br />

férreo, disposta a tudo para vencer e diante da qual nada<br />

pode resistir. É exatamente o estilo do militarismo alemão,<br />

bem diferente do militarismo espanhol, mais afeito<br />

à guerra de emboscada, por meio da qual os soldados da<br />

Espanha expulsaram de seu território o maior exército<br />

do tempo, o de Napoleão, organizado segundo os modelos<br />

que mais tarde o exército do Kaiser haveria de seguir.<br />

Podemos imaginar o efeito que causavam milhares de<br />

homens desfilando horas seguidas diante do público eletrizado.<br />

A população se sentia representada naqueles<br />

homens que personificavam o espírito militar alemão; e<br />

o desejo de grandeza, de proeza, de ousadia, o gosto de<br />

organização e disciplina, que distingue os alemães, estavam<br />

ali muito bem expressos. O que encanta toda essa<br />

gente é a ideia de eventualmente até morrer, numa suprema<br />

manifestação de força e coragem.<br />

Uma das mais altas situações que<br />

a vida humana pode oferecer<br />

A próxima fotografia mostra aquele que, a meu ver, é<br />

um dos mais bonitos regimentos do exército alemão. Os<br />

soldados têm sobre o elmo de metal uma águia, emblema<br />

do Império Germânico. Ela representa a força no mundo<br />

dos pássaros e, portanto, simboliza o domínio. Tratam-se<br />

de soldados de cavalaria que vestem um uniforme<br />

branco com grandes botas, as quais vão até acima do<br />

joelho, e portam uma espada.<br />

Em outro batalhão, constituído de oficiais e que deve<br />

ser a guarda pessoal do Imperador, nota-se uma peça do<br />

vestuário, uma espécie de dolman, na qual figura um sol<br />

que, por sua vez, representa o domínio entre os astros. É<br />

o astro-rei, como a águia é o pássaro-rei.<br />

O alinhamento das fileiras é impecável, corretíssimo,<br />

indicando cuidado, disciplina. Nenhum soldado aparece<br />

numa atitude preguiçosa, com ar de quem tem pressa<br />

de cessar esse exercício. Todos estão contentes, felizes<br />

de representar o papel do guerreiro. Por quê? Pela beleza<br />

da luta e da força em si, pelo pulchrum do holocausto<br />

do homem que esgota toda a sua vida no momento em<br />

que realiza isto e pode dizer: “Eu morri no ápice da minha<br />

fortaleza.”<br />

Vemos em outra fotografia uma revista às tropas. Os<br />

destacamentos estão parados e o Kaiser, seguido de seu<br />

Estado-Maior, vai percorrendo os regimentos. Uma vez<br />

mais se faz notar o alinhamento impecável.<br />

A atitude dos soldados é de quem se deixa inspecionar<br />

com entusiasmo. A do Kaiser e de seu séquito, por<br />

sua vez, é de quem compreende a nobreza que há em comandar.<br />

Também eles estão alegres porque comandar a<br />

guerra significa comandar a epopeia e a proeza, realizar<br />

as qualidades de homem numa das mais altas situações<br />

que a vida humana pode oferecer.<br />

A ideia de holocausto na<br />

defesa de um princípio<br />

Em outra fotografia podemos ver uma carga de cavalaria.<br />

Trata-se de um exercício que se prepara para a<br />

guerra. Os oficiais e os soldados cavalgam a todo galope,<br />

de sabre na mão e bradando, para atacarem, no caso<br />

concreto, um adversário imaginário. Mas é uma linda<br />

imagem da guerra.<br />

Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, não se tinha<br />

feito ainda a experiência de que, com armas de fogo<br />

muito evoluídas, o uniforme brilhante tornava o soldado<br />

Photogr. Industrie Jens, Altona (CC3.0)<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Bain News Service (CC3.0)<br />

Bain News Service (CC3.0)<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

L. H. Schiffer (Wiesbaden) (CC3.0)


Max Marcus (CC3.0)<br />

German Federal Archives (CC3.0)<br />

Bain News Service (CC3.0)<br />

Bain News Service (CC3.0)<br />

iwm.org (CC3.0)<br />

um alvo a longo alcance. De maneira que nessa época os<br />

soldados ainda usavam lindos uniformes, os quais lhes<br />

davam consciência da importância de seu métier.<br />

Qual é a fonte do entusiasmo com que eles avançam?<br />

Todos compreendem como é belo andar a cavalo, dominar<br />

um corcel fogoso e, sobretudo, quanto é belo estimulá-lo<br />

a atacar, ter uma força que se joga de encontro ao<br />

adversário para o derrubar, quanto é belo matar e morrer<br />

na defesa da boa causa! Esta ideia de holocausto, de<br />

destruição do adversário e de si mesmo na defesa de um<br />

princípio, fazia com que esses homens não medissem riscos<br />

nem cansaços. Para viver esses momentos de apogeu,<br />

eles sacrificavam tudo.<br />

Um mundo metafísico, de valores<br />

absolutos, que nos aproxima do Céu<br />

Em uma das fotografias, vê-se a figura primorosa de<br />

um velho general conversando com o Kaiser. Um homem<br />

cuja barba é toda branca, e se nota o cabelo branco aparecer<br />

por debaixo do capacete. Apesar da avançada idade,<br />

porém, ele está teso, reto.<br />

Chamo a atenção para o elmo. Ele é brilhante, luzidio,<br />

possui uma guarnição dourada que vai até o queixo,<br />

e não tem penacho nem águia, mas uma ponta que dá a<br />

ideia de que, à mingua de outra coisa, o soldado alemão<br />

avançará fazendo o papel do touro contra o toureiro, e<br />

lutará até a última resistência.<br />

O general está numa atitude que inspira, não o respeito<br />

que se tem por um idoso, mas o respeito devido a<br />

um militar. Vê-se que, se aparecer um adversário, esse<br />

ancião pega a espada e sai para combater. É um homem<br />

válido para qualquer coisa. A firmeza e a altivez militares<br />

encontram-se esplendidamente representadas nessa<br />

fotografia.<br />

Podemos observar uma vez mais o passo de ganso no<br />

desfile dos estandartes do Império, no qual cada soldado<br />

conduz uma insígnia diversa correspondente a um dos<br />

vários regimentos. Além da variedade e beleza dos estandartes<br />

de gala – todos bordados, riquíssimos –, contemplamos<br />

também a diferença dos elmos: um em forma de<br />

cone truncado, outro com ponta, outro ainda com penacho.<br />

Notem com que garbo e entusiasmo eles marcham.<br />

Cada um dá a sensação de estar carregando nas mãos a<br />

honra do próprio regimento, e conduz a bandeira como<br />

quem porta um princípio, um ideal, e o leva para a luta.<br />

Eles não olham para o público. Representam um papel<br />

para um mundo imaginário, metafísico, de valores<br />

absolutos, que está além do nosso. É o mundo feito de<br />

ideias, de princípios, que já nos aproxima do Céu e de<br />

Deus.<br />

A Escritura atribui ao Altíssimo o título de “Senhor<br />

Deus dos exércitos”, quer dizer, o Deus de toda força, o<br />

qual paira acima dos exércitos que defendem o bem e faz<br />

vencer aqueles que Ele quer proteger. Tem-se a impressão<br />

de que esses homens estão imbuídos da grandeza de<br />

serem soldados do Senhor Deus dos exércitos. v<br />

(Continua no próximo número)<br />

(Extraído de conferência de 12/1/1973)<br />

1) Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 251 e 252, p. 30-35.<br />

35


Características<br />

do batalhador da<br />

Santíssima Virgem<br />

José Luiz Bernardes Ribeiro (CC3.0)<br />

Existe, no decurso da História, uma<br />

luta cada vez mais encarniçada e<br />

feroz entre a descendência de Maria<br />

Santíssima, ou seja, os filhos e escravos<br />

d’Ela, e a do demônio, isto é, os homens<br />

que a ele se devotam.<br />

A época em que vivemos é de intensa<br />

combatividade entre essas duas falanges.<br />

Por isso toda a piedade e a formação espiritual<br />

dos escravos de Maria devem ser ordenadas<br />

em função desta luta.<br />

A traição é a arma habitual do demônio.<br />

Ele age por meio de traidores que, disfarçados,<br />

preparam golpes de surpresa contra<br />

os filhos de Nossa Senhora. Estes, portanto,<br />

devem compreender que o espírito<br />

de combatividade em relação ao demônio é<br />

conjugado com o espírito de desconfiança:<br />

desconfiar que satanás está agindo de todos<br />

os modos e por toda parte, com sua infernal<br />

insídia.<br />

Combatividade aliada à desconfiança, eis<br />

as características do batalhador da Santíssima<br />

Virgem contra a raça da serpente.<br />

(Extraído de conferência de janeiro de 1966)<br />

La Virgen Blanca<br />

Catedral de León, Espanha

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