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parte dos nossos espíritos com o de Cavalaria – era um costume do povo da sua avó.
Era como se o próprio Bronco tivesse morrido. Uma força gélida impulsionava o seu corpo,
fazendo-o executar as suas tarefas com perfeição, mas sem calor ou satisfação. Subalternos
que no passado tinham competido pelo mais breve sinal de elogio fugiam agora do seu olhar,
como se estivessem envergonhados dele. Apenas Raposa não o abandonou. A velha cadela
seguia-o aonde quer que fosse, sem receber nenhum olhar ou afago como recompensa, mas era
indefectível. Abracei-a uma vez, por simpatia, e me atrevi até mesmo a sondar sua mente, mas
ao tocá-la encontrei apenas uma dormência assustadora. Ela sofria com o dono.
As tempestades de inverno cortavam as falésias, uivando através das pedras. Os dias eram
de um frio sem vida que negava a possibilidade de uma primavera. Cavalaria foi sepultado na
Floresta Mirrada. Houve um Jejum de Luto na torre, mas foi breve e discreto. Não era mais do
que o cumprimento de uma formalidade, e não um verdadeiro Luto. Aqueles que realmente
choravam por ele pareciam ser julgados e culpados de mau gosto. A sua vida pública tinha
terminado com a abdicação; quanta indelicadeza da parte dele chamar mais atenção sobre si
mesmo morrendo.
Uma semana após a morte do meu pai, acordei com a corrente de ar familiar que vinha da
escadaria secreta e a luz amarela que acenava para mim. Levantei e subi correndo pelas
escadas, rumo ao meu refúgio. Seria bom fugir de toda aquela estranheza, misturar ervas e
fazer fumos estranhos com Breu de novo. Estava farto daquela sensação estranha de suspensão
de mim mesmo que sentia desde que tinha ouvido sobre a morte de Cavalaria.
Mas o canto da mesa de trabalho do aposento estava escuro, e a lareira, fria. Em vez disso,
Breu estava sentado diante do seu próprio fogo. Indicou-me com um gesto que me sentasse ao
lado da cadeira dele. Sentei-me e olhei-o, mas ele fitava fixamente o fogo. Ergueu a mão cheia
de cicatrizes e pousou-a sobre o meu cabelo espetado. Por alguns momentos ficamos assim,
fitando juntos o fogo.
– Bem, aqui estamos, meu garoto – disse, por fim, e em seguida mais nada, como se tivesse
dito tudo o que precisava dizer. E afagou o meu cabelo curto.
– Bronco cortou o meu cabelo – disse-lhe subitamente.
– Estou vendo.
– Detesto isso. Pinica quando encosto a cabeça no travesseiro e não consigo dormir. O
capuz não fica direito. E fico com cara de estúpido.
– Fica com cara de um garoto que está de luto pelo pai.
Fiquei calado por um momento. Pensava que o meu cabelo era uma versão mais longa do
corte extremo de Bronco, mas Breu tinha razão. Era o comprimento adequado para um rapaz
em luto pela morte do pai, e não o luto de um subalterno pelo rei, e isso apenas me deixou com
mais raiva.
– Mas por que eu deveria ficar de luto por ele? – perguntei a Breu, como não tinha ousado
perguntar a Bronco. – Eu nem sequer o conhecia.
– Era seu pai.
– E me fez com uma mulher qualquer. Quando descobriu a minha existência, foi embora. Um
pai. Nunca se preocupou comigo.
Eu me senti rebelde ao finalmente dizer aquilo em voz alta. Tinha ficado furioso por causa
do luto profundo e selvagem de Bronco, e agora pela tristeza serena de Breu.
– Você não sabe. Apenas ouve o que os bisbilhoteiros dizem. Não tem idade suficiente para