O Aprendiz De Assassino - Saga - Robin Hobb

27.02.2021 Views

impressioná-la.– Conheço bem a raiz do ceifeiro – eu lhe disse. – Alguns a usam para fazer unguento paraombros e costas doloridas. É daí que vem o nome dela. Mas, se destilar a tintura dela emisturá-la bem num vinho, não tem sabor, e pode fazer um homem adulto dormir um dia e umanoite e mais outro dia, ou fazer uma criança morrer durante o sono.Os seus olhos se arregalaram enquanto eu falava, e as minhas últimas palavras trouxeramuma expressão horrorizada ao rosto dela. Fiquei silencioso e me senti profundamenteatrapalhado outra vez.– Como sabe dessas coisas? – disse ela, sem fôlego.– Eu... eu ouvi uma velha parteira ambulante falando com a nossa parteira na torre –improvisei. – E ela estava... contando uma história muito triste, de um homem ferido a quemderam um pouco de raiz do ceifeiro para ajudá-lo a dormir, mas o seu filho bebê tambémtomou. Uma história muito, muito triste.O rosto dela se suavizou e senti que ela se tornava mais amigável outra vez.– Digo isso apenas para que você seja cuidadosa com essa raiz. Não a deixe em nenhumlugar ao alcance de uma criança.– Obrigada. Terei cuidado. Você se interessa por ervas e raízes? Não sabia que um escribase interessava por essas coisas.Subitamente percebi que ela pensava que eu era o ajudante do escriba. Não vi qualquerrazão para lhe contar uma história diferente.– Oh, Penacarriço usa muitas coisas para as tintas. Algumas das cópias são feitas de modobastante simples, mas outras são mais elaboradas, cheias de pássaros e gatos e tartarugas epeixes. Ele me mostrou um herbanário com as partes verdes e as flores de cada erva pintadasna margem das páginas.– Adoraria ver isso – disse ela com entusiasmo, e eu de imediato fiquei pensando emmaneiras de emprestar o herbanário para ela por alguns dias.– Talvez eu possa arranjar uma cópia para você ler... não para ficar com ela, mas paraestudá-la por uns dias – ofereci, hesitante.Ela riu, mas havia uma certa timidez no riso.– Como se eu pudesse ler! Oh, mas imagino que tenha aprendido algumas letras, prestandoserviços a um escriba.– Algumas – disse-lhe, e fiquei surpreso com a inveja que ela tinha nos olhos quando lhemostrei a minha lista e acabei confessando que podia ler todas as sete palavras escritas ali.Uma timidez súbita tomou conta dela. Começou a andar mais devagar, e percebi que nosaproximávamos da casa de velas. Perguntei a mim mesmo se o pai dela ainda lhe batia, masnão ousei falar sobre isso. Pelo menos o rosto dela não mostrava nenhum sinal. Chegamos atéa porta da casa de velas e paramos. Ela tomou uma decisão súbita, pois segurou a manga daminha camisa, inspirou fundo e perguntou:– Acha que poderia ler algo para mim? Pelo menos uma parte?– Posso tentar – ofereci.– Quando eu... agora que visto saias, meu pai me deu as coisas da minha mãe. Ela foi criadade uma dama na torre, quando era moça, e ensinaram-lhe as letras. Tenho algumas tábuas queela escreveu. Gostaria de saber o que dizem.– Posso tentar – repeti.

– Meu pai está na loja.Não disse mais do que isso, mas algo no modo como a sua mente ressoou na minha foisuficiente.– Preciso de duas velas de cera de abelha para Penacarriço – lembrei-lhe. – Não possovoltar à torre sem elas.– Não seja tão familiar comigo – ela me preveniu e abriu a porta.Eu a segui, mas lentamente, como se uma coincidência tivesse nos trazido à porta ao mesmotempo. Não precisava ter sido tão discreto. O pai dormia profundamente numa cadeira dianteda lareira. Fiquei chocado com o quanto ele estava diferente. A sua magreza tinha se tornadoesquelética, e a aparência do rosto dele lembrava uma massa de torta que assou demais sobreum recheio grumoso de fruta. Breu tinha me ensinado bem. Olhei para as unhas e os lábios dohomem e, mesmo àquela distância, de um extremo da loja ao outro, sabia que ele não viveriapor muito tempo. Talvez já não batesse em Moli por falta de força. Moli fez um sinal para queeu ficasse quieto. Desapareceu atrás de umas cortinas que dividiam a casa da loja, deixandomesozinho para explorar o estabelecimento.Era um lugar agradável, não muito grande, mas com o teto mais alto do que o da maior partedas lojas e casas em Cidade de Torre do Cervo. Suspeitava que era o zelo de Moli quemantinha o lugar varrido e arrumado. Os aromas agradáveis e a luz suave dos produtos do seutrabalho se espalhavam por todo o ambiente. As especialidades dela, unidas aos pares pelospavios, pendiam de varões compridos em um suporte. Ao lado, velas de sebo para navios, depreço mais razoável, enchiam uma prateleira. Tinha inclusive três lamparinas de cerâmicaesmaltada, para quem pudesse gastar dinheiro com coisas daquele tipo. Além de velas,descobri que vendia potes de mel, um produto secundário das colmeias que ela mantinha atrásda loja e que forneciam a cera para os seus artigos mais refinados.Então Moli reapareceu e ordenou que eu fosse me juntar a ela. Trouxe uma série de velasestreitas e um conjunto de tábuas e as colocou em cima da mesa. Deu um passo para trás eapertou os lábios como se duvidasse se teria tomado uma decisão sensata.As tábuas eram feitas à moda antiga. Simples pedaços de madeira tinham sido cortados nosveios de uma árvore e alisados com uma lixa. As letras tinham sido pinceladascuidadosamente, e depois seladas na madeira com uma camada amarelada de resina. Eramcinco tábuas, muitíssimo bem pinceladas. Quatro eram relatos rigorosos de receitas de ervaspara velas medicinais. À medida que lia cada uma delas em voz alta, mas suave, podia verMoli se esforçando em memorizá-las. Na quinta tábua, hesitei.– Esta não é uma receita – eu lhe disse.– Bem, o que é? – perguntou num sussurro.Encolhi os ombros e comecei a ler para ela.– “Neste dia nasceu a minha Moli Nariz-Alegre, doce como um ramo de flores. Para oparto, queimei dois círios de bagas de loureiro e duas lamparinas perfumadas com doispunhados de minivioletas, que crescem perto do Moinho de Duel, e um punhado de raiz cor defogo, cortada em lascas muito finas. Se ela puder fazer o mesmo quando chegar a hora de eladar à luz uma criança, o parto será tão fácil como o meu, e o fruto igualmente perfeito. Assimespero.”Era tudo e, quando terminei de ler, ficamos em silêncio. Moli pegou a última tábua dasminhas mãos, segurou-a e fitou-a, como se lesse nas letras algo que eu não tinha conseguido

impressioná-la.

– Conheço bem a raiz do ceifeiro – eu lhe disse. – Alguns a usam para fazer unguento para

ombros e costas doloridas. É daí que vem o nome dela. Mas, se destilar a tintura dela e

misturá-la bem num vinho, não tem sabor, e pode fazer um homem adulto dormir um dia e uma

noite e mais outro dia, ou fazer uma criança morrer durante o sono.

Os seus olhos se arregalaram enquanto eu falava, e as minhas últimas palavras trouxeram

uma expressão horrorizada ao rosto dela. Fiquei silencioso e me senti profundamente

atrapalhado outra vez.

– Como sabe dessas coisas? – disse ela, sem fôlego.

– Eu... eu ouvi uma velha parteira ambulante falando com a nossa parteira na torre –

improvisei. – E ela estava... contando uma história muito triste, de um homem ferido a quem

deram um pouco de raiz do ceifeiro para ajudá-lo a dormir, mas o seu filho bebê também

tomou. Uma história muito, muito triste.

O rosto dela se suavizou e senti que ela se tornava mais amigável outra vez.

– Digo isso apenas para que você seja cuidadosa com essa raiz. Não a deixe em nenhum

lugar ao alcance de uma criança.

– Obrigada. Terei cuidado. Você se interessa por ervas e raízes? Não sabia que um escriba

se interessava por essas coisas.

Subitamente percebi que ela pensava que eu era o ajudante do escriba. Não vi qualquer

razão para lhe contar uma história diferente.

– Oh, Penacarriço usa muitas coisas para as tintas. Algumas das cópias são feitas de modo

bastante simples, mas outras são mais elaboradas, cheias de pássaros e gatos e tartarugas e

peixes. Ele me mostrou um herbanário com as partes verdes e as flores de cada erva pintadas

na margem das páginas.

– Adoraria ver isso – disse ela com entusiasmo, e eu de imediato fiquei pensando em

maneiras de emprestar o herbanário para ela por alguns dias.

– Talvez eu possa arranjar uma cópia para você ler... não para ficar com ela, mas para

estudá-la por uns dias – ofereci, hesitante.

Ela riu, mas havia uma certa timidez no riso.

– Como se eu pudesse ler! Oh, mas imagino que tenha aprendido algumas letras, prestando

serviços a um escriba.

– Algumas – disse-lhe, e fiquei surpreso com a inveja que ela tinha nos olhos quando lhe

mostrei a minha lista e acabei confessando que podia ler todas as sete palavras escritas ali.

Uma timidez súbita tomou conta dela. Começou a andar mais devagar, e percebi que nos

aproximávamos da casa de velas. Perguntei a mim mesmo se o pai dela ainda lhe batia, mas

não ousei falar sobre isso. Pelo menos o rosto dela não mostrava nenhum sinal. Chegamos até

a porta da casa de velas e paramos. Ela tomou uma decisão súbita, pois segurou a manga da

minha camisa, inspirou fundo e perguntou:

– Acha que poderia ler algo para mim? Pelo menos uma parte?

– Posso tentar – ofereci.

– Quando eu... agora que visto saias, meu pai me deu as coisas da minha mãe. Ela foi criada

de uma dama na torre, quando era moça, e ensinaram-lhe as letras. Tenho algumas tábuas que

ela escreveu. Gostaria de saber o que dizem.

– Posso tentar – repeti.

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