O Aprendiz De Assassino - Saga - Robin Hobb

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E eu lhe contei sobre a oferta de Penacarriço e de como subitamente eu tinha percebido queos mapas eram mais do que linhas e cores. Eram lugares e possibilidades, e eu podia sair dalie ser alguém diferente, ser um escriba ou...– Não – interrompeu Breu, suave, mas abruptamente. – Para onde quer que vá, ainda será obastardo de Cavalaria. Penacarriço é mais perspicaz do que pensei que fosse, mas, mesmoassim, não percebe. Não vê as circunstâncias. Ele entende que aqui na corte você tem de sersempre um bastardo, tem de ser sempre uma espécie de pária. O que ele não percebe é queaqui, compartilhando as posses do Rei Sagaz, aprendendo as suas lições sob os olhos dele,não é uma ameaça para ele. Definitivamente você está sob a sombra de Cavalaria.Definitivamente isso te protege. Mas, se estiver longe, em vez de não precisar dessa proteção,você se tornaria uma ameaça para o rei, e uma ameaça ainda maior para os seus herdeiros.Não teria uma simples vida de liberdade como escriba viajante. Em vez disso, seriaencontrado algum dia na sua pousada de estadia com a garganta cortada, ou com uma flechaatravessada no peito, à beira de uma estrada qualquer.Um calafrio arrepiou meu corpo todo.– Mas por quê? – perguntei suavemente.Breu suspirou. Despejou as sementes num prato, esfregou as mãos delicadamente para selivrar daquelas que ainda estavam agarradas aos seus dedos.– Porque você é um bastardo real, e refém da sua própria linhagem. Por enquanto, comodigo, você não é uma ameaça para Sagaz. Você é muito novo e, além disso, está exatamenteonde ele pode te vigiar. Mas Sagaz pensa no futuro, e você devia fazer o mesmo. Estamosvivendo tempos de agitação. Os Ilhéus estão se tornando cada vez mais ousados nas suasinvasões. O povo que vive na costa está começando a se queixar, dizendo que precisamos demais navios de patrulha, e alguns dizem que precisamos dos nossos próprios navios deassalto, para atacarmos aqueles que nos atacam. Mas os Ducados do Interior não queremparticipar do pagamento de navios de qualquer tipo, e especialmente não de navios de guerraque possam nos levar a um conflito geral. Queixam-se de que a costa é tudo em que o reipensa, sem se preocupar com as suas lavouras. O povo da montanha está se tornando cada vezmais cauteloso para autorizar o acesso aos seus desfiladeiros. Os pedágios estão se tornandocada vez mais altos a cada mês. Portanto, os mercadores resmungam e reclamam uns aosoutros. No sul, em Orla da Areia e mais além, há a seca, os tempos são difíceis, e a populaçãoprotesta, como se o rei e Veracidade fossem também culpados disso. Veracidade é umaexcelente companhia para uma noite de bebedeira, mas não é nem o soldado nem o diplomataque Cavalaria era. Prefere sair por aí caçando cervos, ou ouvir um menestrel à lareira, aviajar pelas estradas invernais com o tempo ruim, simplesmente para manter contato com osoutros ducados. Mais cedo ou mais tarde, se as coisas não melhorarem, as pessoas vãocomeçar a olhar ao redor e dizer: “Bem, um bastardo não é nada assim tão grave para se fazertanto barulho. Se Cavalaria chegasse ao poder, já teria acabado com isso. Tudo bem que eraum pouco rígido com os protocolos, mas pelo menos fazia as coisas acontecerem, e não teriadeixado estrangeiros nos menosprezarem”.– Então Cavalaria ainda pode se tornar rei?A pergunta fez nascer uma estranha empolgação em mim. De repente, eu estava imaginandoo seu retorno triunfante a Torre do Cervo, o nosso eventual encontro e então... e então o quê?Breu parecia estar lendo a minha mente.

– Não, garoto. Isso não é nada provável. Mesmo que todo o povo quisesse, duvido que eleiria contra aquilo que impôs a si mesmo, ou contra os desejos do rei. Mas haveria murmúriose reclamações, e isso poderia levar a tumultos e a conflitos e, em geral, a um ambiente ruimpara um bastardo sair correndo livremente por aí. O problema teria que ser resolvido de umamaneira ou de outra. Ou como cadáver ou como instrumento do rei.– Instrumento do rei. Compreendo.Uma sensação de opressão se instalou no meu íntimo. O rápido vislumbre de céus azuisarqueando sobre estradas amarelas e de minhas viagens por elas montado em Fuligemdesvaneceu de repente. Em vez disso, vi os mastins nos canis, e o falcão, encapuzado e atado,preso ao pulso do rei e apenas libertado para fazer a vontade dele.– Não tem de ser assim tão ruim – disse Breu calmamente. – A maior parte das nossasprisões é criada por nós mesmos. Um homem também faz a própria liberdade.– Eu nunca irei para lugar algum, não é?Apesar da novidade da ideia, viajar de repente parecia algo imensamente importante paramim.– Não diria isso. – Breu estava remexendo as coisas à procura de algo que servisse detampa para o prato cheio de sementes. Finalmente, contentou-se em colocar um pires por cima.– Você irá a muitos lugares. Discretamente e quando os interesses da família exigirem que váaté lá. Mas isso não é muito diferente para um príncipe de sangue. Por acaso você pensa queCavalaria podia escolher onde tratar de assuntos diplomáticos? Pensa que Veracidade gostade ser enviado para observar aldeias saqueadas pelos Ilhéus, que gosta de ouvir as queixasdas pessoas que insistem que uma fortificação melhor ou mais soldados garantiriam que nadadaquilo tivesse acontecido? Um verdadeiro príncipe tem muito pouca liberdade no que serefere aonde deve ir ou como usa o seu tempo. É provável que Cavalaria tenha mais liberdadeagora do que teve alguma vez no passado.– Exceto por não poder voltar a Torre do Cervo? – com as minhas mãos cheias defragmentos de vidro, fiquei petrificado com aquela compreensão repentina.– Exceto por não poder voltar a Torre do Cervo. Não é boa ideia agitar o povo com visitasde um ex-Príncipe Herdeiro. O melhor a se fazer é desaparecer discretamente.Atirei os pedaços de vidro na lareira.– Pelo menos ele pode ir a algum lugar – resmunguei. – Eu nem sequer posso ir à cidade...– E isso é importante para você? Ir lá para baixo, ao porto sujo e pegajoso que é a Cidadede Torre do Cervo?– Há outras pessoas lá... – hesitei. Nem sequer Breu sabia dos meus amigos da cidade.Prossegui. – Lá me chamam de Novato. E não pensam “o bastardo” cada vez que olham paramim.Nunca tinha colocado aquilo em palavras antes, mas de repente a minha atração pela cidadeficou muito clara para mim.– Ah – disse Breu, e os ombros se moveram como se suspirasse, mas permaneceu emsilêncio.Um momento depois, estava me dizendo como era possível fazer um homem adoecer dandolhesimplesmente ruibarbo e espinafre ao mesmo tempo; adoecer mesmo até a morte, caso asdoses fossem suficientes, e sem nunca pôr nada de veneno à mesa. Perguntei-lhe como evitarque outras pessoas à mesma mesa também adoecessem, e a nossa discussão prosseguiu a partir

– Não, garoto. Isso não é nada provável. Mesmo que todo o povo quisesse, duvido que ele

iria contra aquilo que impôs a si mesmo, ou contra os desejos do rei. Mas haveria murmúrios

e reclamações, e isso poderia levar a tumultos e a conflitos e, em geral, a um ambiente ruim

para um bastardo sair correndo livremente por aí. O problema teria que ser resolvido de uma

maneira ou de outra. Ou como cadáver ou como instrumento do rei.

– Instrumento do rei. Compreendo.

Uma sensação de opressão se instalou no meu íntimo. O rápido vislumbre de céus azuis

arqueando sobre estradas amarelas e de minhas viagens por elas montado em Fuligem

desvaneceu de repente. Em vez disso, vi os mastins nos canis, e o falcão, encapuzado e atado,

preso ao pulso do rei e apenas libertado para fazer a vontade dele.

– Não tem de ser assim tão ruim – disse Breu calmamente. – A maior parte das nossas

prisões é criada por nós mesmos. Um homem também faz a própria liberdade.

– Eu nunca irei para lugar algum, não é?

Apesar da novidade da ideia, viajar de repente parecia algo imensamente importante para

mim.

– Não diria isso. – Breu estava remexendo as coisas à procura de algo que servisse de

tampa para o prato cheio de sementes. Finalmente, contentou-se em colocar um pires por cima.

– Você irá a muitos lugares. Discretamente e quando os interesses da família exigirem que vá

até lá. Mas isso não é muito diferente para um príncipe de sangue. Por acaso você pensa que

Cavalaria podia escolher onde tratar de assuntos diplomáticos? Pensa que Veracidade gosta

de ser enviado para observar aldeias saqueadas pelos Ilhéus, que gosta de ouvir as queixas

das pessoas que insistem que uma fortificação melhor ou mais soldados garantiriam que nada

daquilo tivesse acontecido? Um verdadeiro príncipe tem muito pouca liberdade no que se

refere aonde deve ir ou como usa o seu tempo. É provável que Cavalaria tenha mais liberdade

agora do que teve alguma vez no passado.

– Exceto por não poder voltar a Torre do Cervo? – com as minhas mãos cheias de

fragmentos de vidro, fiquei petrificado com aquela compreensão repentina.

– Exceto por não poder voltar a Torre do Cervo. Não é boa ideia agitar o povo com visitas

de um ex-Príncipe Herdeiro. O melhor a se fazer é desaparecer discretamente.

Atirei os pedaços de vidro na lareira.

– Pelo menos ele pode ir a algum lugar – resmunguei. – Eu nem sequer posso ir à cidade...

– E isso é importante para você? Ir lá para baixo, ao porto sujo e pegajoso que é a Cidade

de Torre do Cervo?

– Há outras pessoas lá... – hesitei. Nem sequer Breu sabia dos meus amigos da cidade.

Prossegui. – Lá me chamam de Novato. E não pensam “o bastardo” cada vez que olham para

mim.

Nunca tinha colocado aquilo em palavras antes, mas de repente a minha atração pela cidade

ficou muito clara para mim.

– Ah – disse Breu, e os ombros se moveram como se suspirasse, mas permaneceu em

silêncio.

Um momento depois, estava me dizendo como era possível fazer um homem adoecer dandolhe

simplesmente ruibarbo e espinafre ao mesmo tempo; adoecer mesmo até a morte, caso as

doses fossem suficientes, e sem nunca pôr nada de veneno à mesa. Perguntei-lhe como evitar

que outras pessoas à mesma mesa também adoecessem, e a nossa discussão prosseguiu a partir

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