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frequência pelos risos de apreciação dos que o escutavam. Na lareira do fundo, vozes de
criança entoavam os refrões de uma canção. Reconhecia-a como a Canção do Pastor, uma
cantiga para aprender a contar. Algumas mães estavam de guarda, batendo o pé enquanto se
debruçavam sobre os seus bordados, e os velhos dedos murchos de Jerdão nas cordas da
harpa mantinham as vozes infantis quase afinadas.
Na nossa lareira, crianças suficientemente crescidas para se sentarem quietas e aprender as
letras assim estavam. Penacarriço se responsabilizava por isso. Nada escapava aos seus
penetrantes olhos azuis.
– Aqui – disse-me, apontando para a folha. – Você se esqueceu de cruzar as pernas dele.
Lembra-se de como eu te mostrei? Justiça, abra os olhos e volte ao trabalho. Cochile outra vez
e eu te faço ir lá fora buscar mais lenha para a lareira. E você, Caridade, vai ajudá-lo se tirar
sarro outra vez. Fora isso – e a atenção dele estava subitamente virada outra vez para o meu
trabalho –, as suas letras têm melhorado muito, não só nos caracteres Ducais, mas também nas
runas dos Ilhéus, embora essas não possam ser convenientemente inscritas em papel de tão
pobre qualidade. A superfície é muito porosa e absorve demais a tinta. Folhas de carvalho
bem batidas são o que precisa para runas – e, em um gesto apreciativo, passou o dedo sobre a
folha em que ele próprio estava trabalhando. – Continue a mostrar esse tipo de trabalho e,
antes que o inverno termine, eu o deixarei fazer uma cópia dos Remédios da Rainha Bons-
Votos. O que você acha disso?
Tentei sorrir e mostrar-me lisonjeado, de maneira apropriada. O trabalho de copista não era
normalmente dado a estudantes; um bom papel era raro demais, e uma pincelada descuidada
arruinava a folha. Eu sabia que Remédios era uma coletânea relativamente simples de
propriedades de ervas e profecias, mas qualquer trabalho de copista era uma honra a ser
aspirada. Penacarriço me deu uma folha limpa de papel. Quando me levantei para voltar ao
meu lugar, ele ergueu a mão para me parar.
– Garoto?
Parei.
Penacarriço parecia pouco confortável.
– Não sei para quem dizer isso, senão a você. A forma apropriada é falar com os seus pais,
mas…
Em tom de misericórdia, deixou a frase morrer. Coçou a barba com os dedos respingados
de tinta.
– O inverno acabará em breve, e eu vou embora outra vez. Sabe o que faço no verão,
garoto? Ando para todos os lados dos Seis Ducados, coletando ervas, sementes e raízes para
as minhas tintas e preparando estoques dos papéis de que preciso. É uma vida boa, passear
livremente pelas estradas no verão e hospedar-se aqui durante todo o inverno. Há muito a ser
dito sobre a profissão de escriba.
Olhou para mim, pensativo. Eu lhe devolvi o olhar, tentando imaginar aonde é que ele
queria chegar.
– Levo comigo um aprendiz de tempos em tempos. Com alguns funciona, e eles continuam a
carreira como escribas para torres menores. Com outros não. Alguns não têm paciência para o
detalhe, ou memória para as tintas. Creio que você teria. O que é que pensa sobre se tornar
escriba?
A pergunta me pegou completamente de surpresa, e olhei para ele em silêncio. Não era só a