O Aprendiz De Assassino - Saga - Robin Hobb

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mais cedo, dizendo-me que levasse os meus assobios para outras bandas.Três dias depois, o Rei Sagaz me chamou logo ao raiar do dia. Ele já estava vestido e haviauma bandeja com comida para mais de uma pessoa. Logo que cheguei, mandou o criado seretirar e pediu para eu me sentar. Ocupei uma cadeira diante da pequena mesa do quarto e ele,sem me perguntar se eu tinha fome, serviu-me comida com a própria mão e sentou-se à minhafrente para comer. O gesto me sensibilizou, mas mesmo assim não conseguiu me fazer comermuito. Falou apenas de comida, e não disse nada de acordos ou lealdade ou de manter apalavra. Quando viu que eu tinha acabado de comer, empurrou o próprio prato para longe.Mexeu-se com desconforto no seu lugar.– Foi ideia minha – disse de repente, num tom quase áspero. – Não foi dele. Ele nuncaconcordou. Eu insisti. Quando for mais velho, você vai entender. Não posso correr riscos comninguém. Mas prometi a ele que você saberia disso diretamente da minha boca. Foi tudo ideiaminha, não dele. E nunca pedirei a ele para testar a sua resistência desse jeito outra vez. Nissoeu te dou a minha palavra de rei.Fez um gesto para me mandar embora. Eu me levantei, mas então peguei da bandeja umapequena faca de prata toda entalhada que ele tinha usado para cortar a fruta. Olhei nos olhosdele enquanto fiz aquilo, e enfiei-a descaradamente na manga. Os olhos do Rei Sagaz searregalaram de espanto, mas não disse uma palavra.Duas noites depois, quando Breu me chamou, as nossas lições recomeçaram como se nuncativesse existido uma pausa. Ele falou, eu ouvi, jogamos o jogo com as pedras e não cometinenhum erro. Ele me deu uma missão e fizemos pequenas brincadeiras juntos. Mostrou-mecomo Sorrateiro, a doninha, dançava para ganhar uma salsicha. Estava tudo bem entre nósoutra vez. Porém, antes de deixar os aposentos dele nessa noite, fui até a lareira. Sem umapalavra, coloquei a faca no meio da prateleira em cima da lareira. Na verdade, enfiei-a, com alâmina de frente, dentro da madeira da prateleira. Em seguida, retirei-me sem falar nada e semolhar para ele. Nós nunca falamos disso, de fato, um com o outro.Acredito que a faca ainda esteja lá.

CAPÍTULO SEISA Sombra de CavalariaHá duas tradições sobre o costume de dar aos filhos da realeza nomes que sugerem virtudesou habilidades. A mais comum é aquela que diz que, de alguma maneira, são mandatórios;que quando um certo nome é atribuído a uma criança que será treinada no uso do Talento,de alguma forma o Talento marca a criança com o nome, e ela não consegue evitar crescerpraticando a virtude indicada pelo seu nome. Essa primeira tradição é aquela em queacreditam as pessoas com mais propensão para tirar o chapéu na presença de qualquer umda mais baixa nobreza.Uma tradição mais antiga atribui tais nomes a um acaso, pelo menos no começo. Diz-seque o Rei Tomador e o Rei Regedor, os dois primeiros Ilhéus a governar a região que maistarde se tornaria os Seis Ducados, de fato não tinham nomes dessa natureza. Em vez disso,os seus verdadeiros nomes na sua língua nativa soavam de modo similar a outras palavrasna língua dos Seis Ducados, e assim vieram a ser conhecidos por esses homônimos, em vezdos verdadeiros nomes. Mas, para os propósitos da realeza, é melhor que o povo acrediteque um garoto que recebe um nome nobre tem de desenvolver uma natureza nobre.– Garoto!Levantei a cabeça. Da cerca de meia dúzia de outros rapazes sentados em frente à lareira,nenhum outro sequer se moveu. As garotas sequer reagiram quando eu me sentei do outro ladoda mesa baixa, em oposição ao lugar onde o Mestre Penacarriço se ajoelhava. Ele tinha setornado especialista num truque de entonação que fazia todos saberem quando “garoto” queriadizer “garoto” e quando “garoto” queria dizer “bastardo”.Acomodei os joelhos sob a mesa baixa e sentei-me sobre os pés, mostrando a Penacarriço aminha folha de papel. Enquanto ele corria os olhos pelas minhas cuidadosas fileiras de letras,desviei a minha atenção.O inverno tinha nos juntado e mantido ali, todos juntos no Grande Salão. Lá fora, umatempestade marítima castigava as paredes da torre, enquanto grandes ondas se chocavamcontra os rochedos com tamanha força que ocasionalmente faziam tremer o chão de pedra sobos nossos pés. As nuvens pesadas roubavam as poucas horas de luz fraca que o inverno tinhanos deixado. Parecia que a escuridão pairava sobre nós como um nevoeiro, tanto do lado defora como de dentro. A penumbra se infiltrava nos meus olhos, fazendo-me sentir sonolentosem estar cansado. Por um breve instante, deixei os sentidos se expandirem e captei a lentidãoinvernal dos cães nos cantos onde dormiam. Nem ali conseguia encontrar algum pensamentoou imagem que me interessasse.Chamas ardiam em todas as três grandes lareiras, e diferentes grupos tinham se reunidodiante de cada uma. Numa, flecheiros estavam ocupados com o seu trabalho, na expectativa deque o dia seguinte fosse claro o suficiente para lhes permitir uma caçada. Desejei estar entreeles, pois a voz gentil de Agudo subia e descia no contar de alguma história, interrompida com

mais cedo, dizendo-me que levasse os meus assobios para outras bandas.

Três dias depois, o Rei Sagaz me chamou logo ao raiar do dia. Ele já estava vestido e havia

uma bandeja com comida para mais de uma pessoa. Logo que cheguei, mandou o criado se

retirar e pediu para eu me sentar. Ocupei uma cadeira diante da pequena mesa do quarto e ele,

sem me perguntar se eu tinha fome, serviu-me comida com a própria mão e sentou-se à minha

frente para comer. O gesto me sensibilizou, mas mesmo assim não conseguiu me fazer comer

muito. Falou apenas de comida, e não disse nada de acordos ou lealdade ou de manter a

palavra. Quando viu que eu tinha acabado de comer, empurrou o próprio prato para longe.

Mexeu-se com desconforto no seu lugar.

– Foi ideia minha – disse de repente, num tom quase áspero. – Não foi dele. Ele nunca

concordou. Eu insisti. Quando for mais velho, você vai entender. Não posso correr riscos com

ninguém. Mas prometi a ele que você saberia disso diretamente da minha boca. Foi tudo ideia

minha, não dele. E nunca pedirei a ele para testar a sua resistência desse jeito outra vez. Nisso

eu te dou a minha palavra de rei.

Fez um gesto para me mandar embora. Eu me levantei, mas então peguei da bandeja uma

pequena faca de prata toda entalhada que ele tinha usado para cortar a fruta. Olhei nos olhos

dele enquanto fiz aquilo, e enfiei-a descaradamente na manga. Os olhos do Rei Sagaz se

arregalaram de espanto, mas não disse uma palavra.

Duas noites depois, quando Breu me chamou, as nossas lições recomeçaram como se nunca

tivesse existido uma pausa. Ele falou, eu ouvi, jogamos o jogo com as pedras e não cometi

nenhum erro. Ele me deu uma missão e fizemos pequenas brincadeiras juntos. Mostrou-me

como Sorrateiro, a doninha, dançava para ganhar uma salsicha. Estava tudo bem entre nós

outra vez. Porém, antes de deixar os aposentos dele nessa noite, fui até a lareira. Sem uma

palavra, coloquei a faca no meio da prateleira em cima da lareira. Na verdade, enfiei-a, com a

lâmina de frente, dentro da madeira da prateleira. Em seguida, retirei-me sem falar nada e sem

olhar para ele. Nós nunca falamos disso, de fato, um com o outro.

Acredito que a faca ainda esteja lá.

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