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historinhas de lealdade. Garoto, você me envergonha. Pensei que você tinha costas mais largas
do que estas, ou nunca teria começado a te ensinar.
– Breu! – comecei a falar, horrorizado. As palavras dele me deixaram em estado de choque.
Ele se afastou de mim, e eu senti o meu pequeno mundo desmoronando à minha volta enquanto
a voz dele continuava friamente.
– O melhor é voltar para a cama, garotinho. Pense exatamente no quanto você me insultou
hoje. Insinuar que de alguma forma estou sendo desleal ao nosso rei. Rasteje pelas escadas,
seu covardezinho. E, da próxima vez que eu te chamar... isto é, se eu voltar a te chamar, venha
preparado para me obedecer. Ou nem venha. Agora vá.
Breu nunca tinha falado comigo daquele jeito antes. Não conseguia me lembrar de alguma
vez ele ter sequer levantado a voz. Fiquei olhando, quase sem nenhuma capacidade de
compreensão, o braço magro marcado por cicatrizes de varíola que se destacavam sob as
mangas da veste, o longo dedo que apontava com tanto desdém na direção da porta e das
escadas. Ao me levantar, senti-me fisicamente doente. Cambaleei e tive de recorrer a uma
cadeira para me apoiar. Mas continuei, obedecendo ao que tinha sido ordenado, incapaz de
pensar em agir de forma diferente. Breu, que tinha se tornado o pilar central do meu mundo,
que me havia feito acreditar que eu tinha algum valor, agora me tirava tudo. Não só a sua
aprovação, mas o nosso tempo juntos, e a minha esperança de que eu seria alguma coisa na
vida.
Tropecei e quase caí pelas escadas abaixo. Elas nunca tinham parecido ser tantas e tão
frias. A porta no fundo do vão da parede rangeu atrás de mim ao fechar, e fiquei no meio da
escuridão total. Tateei o caminho até a cama, mas os cobertores não conseguiam me aquecer, e
não consegui pregar o olho durante a noite toda. Contorcia-me de agonia. O pior de tudo era
não ser capaz de me sentir indeciso. Não podia fazer o que Breu tinha me pedido. Portanto, eu
iria perdê-lo. Sem os seus ensinamentos, eu não seria de nenhum valor para o rei. Mas essa
não era a agonia. A agonia era simplesmente a falta de Breu na minha vida: não conseguia me
lembrar de como eu tinha conseguido viver antes dele, tão sozinho. Voltar à modorra de viver
o dia a dia, de tarefa em tarefa, parecia impossível.
Tentei desesperadamente pensar em algo que pudesse fazer, mas parecia não haver
resposta. Podia ir até Sagaz, mostrar-lhe o alfinete e ter permissão, e contar-lhe do meu
dilema. Mas o que ele iria me dizer? Será que não me veria como um garotinho bobo? Será
que me diria que eu devia ter obedecido Breu? Pior, e se ele me dissesse que eu tinha razão
para ter desobedecido e se virasse contra Breu? Essas questões eram muito difíceis para a
cabeça de uma criança, e não encontrei respostas que me ajudassem.
Quando a manhã finalmente chegou, saí da cama me arrastando e fui me apresentar a
Bronco, como de costume. Desempenhei as minhas tarefas numa dormência cinzenta que a
princípio me trouxe críticas e mais tarde perguntas sobre o estado da minha barriga. Disse-lhe
simplesmente que não tinha dormido bem, e ele me dispensou sem o tônico que tinha
ameaçado me dar. Não me comportei melhor no treino de armas. O meu estado de distração
era tal que deixei um garoto muito mais novo me acertar uma pancada forte na cabeça. Hode
nos advertiu pela falta de cuidado e me disse para ir descansar um pouco.
Quando voltei à torre, minha cabeça latejava de dor e minhas pernas tremiam. Fui para o
quarto, pois não tinha estômago nem para a refeição do meio-dia, nem para as conversas em
voz alta que a acompanhavam. Deitei-me na cama, com a intenção de fechar os olhos por