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Que pedido para fazer a um garotinho. Mesmo assim, creio que algo em mim eriçou os meus
pelos da nuca e farejou com desconfiança a ideia, mas, garotinho que era, não pude encontrar
nenhuma objeção. Além disso, a curiosidade me roía por dentro.
– Eu posso aprender a fazer isso.
– Ótimo – ele sorriu, mas o rosto mostrava cansaço, e não tinha a aparência de estar assim
tão satisfeito quanto àquilo. – Por enquanto, é suficiente. Mais do que suficiente – olhou em
volta do quarto. – Podemos começar esta noite. Vamos primeiro arrumar um pouco isso aqui.
Há uma vassoura ali. Ah, mas antes de qualquer coisa, tire essa camisola e vista algo... ah, há
uma velha túnica aqui. Por enquanto, vai servir. Não podemos ter o pessoal da lavanderia se
perguntando por que é que a sua camisola cheira a cânfora e a analgésico, não é? Agora: varra
o chão que eu vou arrumar umas coisas.
E assim se passaram as horas seguintes. Eu varri e esfreguei o chão de pedra. Ele me
orientou enquanto eu limpava a parafernália na grande mesa. Virei as ervas sobre a grelha
onde secavam. Dei de comer aos três lagartos que ele mantinha enjaulados num canto,
cortando alguns pedaços de carne velha e pegajosa que eles engoliram de uma só vez. Limpei
vários potes e tigelas e os guardei. Ele trabalhava ao meu lado, parecendo grato pela
companhia, e papeava comigo como se fôssemos ambos velhos. Ou ambos jovens.
– Nada de letras ainda? Nada de cifras? Que absurdo! O que é que o velho está pensando?
Bem, vou me assegurar de que isso seja resolvido logo. Você tem as sobrancelhas do seu pai,
garoto, e o mesmo jeito de franzi-las. Alguém já tinha te falado isso? Ah, aí está, Sorrateiro,
seu patife! O que é que você anda aprontando?
Uma doninha marrom apareceu por trás de uma tapeçaria, e fomos apresentados um ao
outro. Breu me deixou alimentar Sorrateiro com ovos de codorna de uma tigela que estava em
cima da mesa e riu quando o pequeno animal me perseguiu, mendigando por mais. Deu-me um
bracelete de cobre que achei debaixo da mesa, avisando que poderia deixar o meu pulso verde
e que, se alguém me perguntasse sobre ele, deveria dizer que o tinha encontrado atrás do
estábulo.
Em dado momento, paramos para comer bolos de mel e beber vinho quente com
especiarias. Sentamo-nos em uma mesa baixa, sobre uns tapetes em frente à lareira, e observei
a luz do fogo dançando no rosto cheio de cicatrizes dele e perguntei a mim mesmo por que
antes tinha achado aquilo tão assustador. Ele percebeu que eu o observava, e suas feições se
contraíram num sorriso.
– Ele te parece familiar, não é, garoto? O meu rosto, eu quero dizer.
Não parecia. Eu estava era vendo as cicatrizes grotescas na pele pálida. Não fazia ideia do
que ele queria dizer. Encarei-o intrigado, tentando descobrir o que era.
– Não se preocupe com isso, garoto. Deixa marcas em todos nós, e mais cedo ou mais tarde
você vai se acostumar com elas. Mas por enquanto, bem... – ele se levantou, espreguiçandose,
de tal forma que a sua túnica revelou umas coxas magras e brancas. – Agora é tarde. Ou
cedo, dependendo de que parte do dia você gosta mais. É tempo de voltar à sua cama. Agora.
Você vai se lembrar de que tudo isso é ultrassecreto, não vai? Não só este quarto, mas a coisa
toda, o acordar à noite e as lições sobre como matar pessoas, e tudo isso.
– Vou me lembrar, sim – disse-lhe e então, percebendo-me de que talvez significasse algo
para ele, acrescentei: – Tem a minha palavra.
Ele gargalhou e em seguida concordou, quase com tristeza. Troquei de roupa, vestindo outra