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tenha observado um cão latindo e se contorcendo numa perseguição onírica.
Os seus sonhos eram como o ar adocicado que emana da fornada quente de um bom pão.
Agora, isolado, num quarto com paredes de pedra, tinha finalmente tempo para aqueles sonhos
devoradores e dolorosos que cabem aos humanos. Não tinha nenhuma mãe quente com filhotes
junto à qual eu pudesse me aninhar, nenhuma sensação de irmãos ou parentes alojados por
perto. Em vez disso, jazia desperto e pensava no meu pai e na minha mãe, em como ambos
tinham me expulsado de suas vidas com tanta facilidade. Ouvia as conversas dos outros, tão
descuidados, nos meus ouvidos, e interpretava os seus comentários do meu jeito, apavorante.
Pensava no que seria de mim quando tivesse crescido e o velho Rei Sagaz já estivesse morto;
pensava, ocasionalmente, se Moli Sangra-Nariz e Quim sentiriam a minha falta ou se já teriam
encarado a minha súbita desaparição com a mesma facilidade com que tinham aceitado a
minha chegada. Mas, mais que tudo, sofria de solidão porque, em toda a enorme torre central,
não tinha nenhum amigo. Apenas os animais, e Bronco tinha me proibido de ter qualquer
proximidade com eles.
Uma noite fui para a cama cansado, atormentado por medos noturnos até que o sono veio, de
má vontade. Acordei com a luz batendo no meu rosto, mas despertei sabendo que alguma coisa
estava errada. Não tinha dormido tempo suficiente, e aquela luz era amarela e tremeluzente,
muito diferente da luz branca do sol que normalmente invade o quarto pela janela. Estremeci,
relutante, e abri os olhos.
Ele estava em pé, junto aos pés da cama, segurando uma lamparina acima dos ombros.
Aquilo por si só já era uma raridade em Torre do Cervo, mas havia outras coisas além da luz
amanteigada da lamparina que chamaram a minha atenção. O próprio homem era estranho. A
sua túnica tinha uma cor de lã sem tingir que tinha sido lavada, mas apenas ocasionalmente e
não recentemente. O cabelo e a barba eram mais ou menos da mesma cor, e davam a
impressão de desleixo. Apesar da cor do cabelo, não consegui concluir que idade tinha.
Existem doenças de pele que deixam cicatrizes no rosto de um homem, mas nunca tinha
visto uma pessoa tão marcada quanto ele, repleto de pequenas cicatrizes de pústulas, como
pequenas queimaduras, em tons de cor-de-rosa e vermelho-vivo mesmo à luz amarela da
lamparina. As mãos dele eram puro osso e tendões envoltos em uma pele branca como papel.
Ele me observava e, mesmo à luz da lamparina, os olhos eram do verde mais penetrante que
eu já vi. Lembravam-me os olhos de um gato à caça de alguma coisa – a mesma combinação
de alegria e ferocidade. Puxei o cobertor para cima, prendendo-o debaixo do queixo.
– Está acordado – disse. – Bom. Levante-se e me siga.
Virou-se abruptamente, afastando-se dos pés da cama e da porta do quarto, rumo a um canto
sombrio entre a lareira e a parede. Não me movi. Ele virou a cabeça para trás, olhando na
minha direção, e ergueu a lamparina mais alto.
– Agilize, garoto – disse com irritação e deu uma pancada na cama com o cajado que lhe
servia de apoio.
Eu saí da cama, estremecendo quando meus pés descalços tocaram no chão frio. Tentei
pegar as minhas roupas e sapatos, mas o homem não tinha a intenção de esperar por mim.
Olhou outra vez de relance para ver o que estava me atrasando, e o seu olhar penetrante foi
suficiente para me fazer largar as roupas e tremer.
Foi então que eu o segui, em silêncio, de camisola, sem encontrar algum motivo que
pudesse me explicar aquilo tudo, exceto o que ele havia sugerido. Segui-o até uma porta que