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Duas jovens falavam em cima de um tear e, no canto mais distante do quarto, um rapaz não
muito mais velho do que eu balançava ao ritmo suave de uma roda de fiar. Não tinha dúvida
de que a mulher que estava com suas costas largas viradas para mim era a Dona Despachada.
As duas jovens se deram conta da minha presença e pararam de conversar. A Dona
Despachada virou-se para ver para onde é que elas estavam olhando e, num piscar de olhos,
eu já estava preso nas suas garras. Ela não perdeu tempo com nomes ou me explicando o que
estava fazendo. De repente eu estava numa cadeira, sendo virado e medido para lá e para cá,
enquanto ela cantarolava, sem nenhum respeito pela minha dignidade ou mesmo pela minha
humanidade.
Fez pouco caso das minhas roupas, falando para as jovens, e comentou muito calmamente
que eu lembrava bastante o jovem Cavalaria, e que as minhas medidas e cor eram
praticamente as mesmas que as dele, quando tinha a mesma idade. Então, pediu opiniões
enquanto segurava amostras de diferentes tecidos na minha frente.
– Aquele – disse uma das mulheres do tear. – Esse azul combina bem com a pele morena.
Teria ficado bom no pai. Ainda bem que Paciência nunca terá de ver este rapaz. Os traços de
Cavalaria são óbvios demais na cara dele para restar a ela alguma dignidade.
E enquanto estava ali, envolto em tecidos de lã, ouvi pela primeira vez o que qualquer outra
pessoa em Torre de Cervo estava farta de saber. As tecelãs discutiram em detalhes como a
história da minha existência tinha chegado a Torre do Cervo e a Paciência, muito antes de o
meu pai poder contar-lhe tudo de sua própria boca, e a angústia profunda que isso havia
causado nele. Porque Paciência era estéril e, embora Cavalaria nunca tivesse proferido uma
palavra contra ela, todos presumiam o quão difícil deveria ser para um herdeiro não ter um
filho que, algum dia, assumisse o seu posto. Paciência interpretou a minha existência como a
reprovação final, e a sua saúde, que nunca tinha sido boa depois de tantas gestações
interrompidas, foi completamente arruinada, juntamente com a sua atitude diante da vida. Foi
tanto para o seu bem, como por decência, que Cavalaria tinha abdicado do trono e levado a
esposa inválida para as terras quentes e suaves da sua província natal. Corria o boato de que
lá viviam bem e com conforto, que a saúde de Paciência estava se recuperando lentamente e
que Cavalaria, um homem consideravelmente mais discreto do que antes, estava aprendendo a
administrar o vale rico em vinhedos. Uma pena que Paciência também culpasse Bronco pelo
lapso moral de Cavalaria, e tivesse declarado que não toleraria mais ver o homem. Porque
entre a ferida na perna e o seu abandono por Cavalaria, o velho Bronco já não era o homem
que tinha sido um dia. Houve tempos em que nenhuma mulher na torre passaria correndo por
ele; em que chamar a atenção dele seria tornar-se invejada por praticamente todas as mulheres
adultas o suficiente para vestir saias. E agora? Chamavam-no de Velho Bronco, e ele ainda
estava na flor da idade. Aquilo era tão injusto, como se um criado sequer tivesse influência
nas ações do seu senhor. Mas talvez fosse melhor assim, diziam. Afinal de contas, Veracidade
não era um Príncipe Herdeiro muito melhor do que Cavalaria? Cavalaria era tão
rigorosamente nobre que fazia o povo se sentir negligente e mesquinho na sua presença; nunca
concedia a si mesmo um momento de descanso, sempre preocupado em agir de forma
exemplarmente correta e, embora fosse cortês demais para reprovar ou fazer pouco caso dos
que não eram capazes de agir como ele, uma pessoa tinha sempre a sensação de que o seu
comportamento perfeito era uma crítica silenciosa a todos os que tinham sido agraciados com
menos autodisciplina. Ah, e afinal de contas, aqui estava o bastardo, depois de tantos anos – a