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mas eu podia sentir o seu desagrado e, por isso, o evitava.
Todos os homens de armas demonstravam grande tolerância em relação a mim. Depois das
crianças de rua na Cidade de Torre do Cervo, eles provavelmente eram o que eu tinha de mais
parecido com amigos; mas não importa o quão tolerantes homens podem ser em relação a um
menino de nove ou dez anos, a verdade é que há muito pouco em comum. Eu observava os
seus jogos de azar, em que se utilizavam ossos, e ouvia as histórias que contavam, mas para
cada hora que eu ficava na companhia deles, passavam-se dias sem que nos víssemos. E
embora Bronco nunca tivesse me proibido de frequentar o posto dos guardas, também não
escondeu de mim que desaprovava o tempo que eu passava lá.
Portanto, eu era e não era um membro da comunidade da torre. Alguns eu evitava, outros eu
observava e ainda a outros eu obedecia. Mas não sentia ter uma ligação especial com
ninguém.
Então, numa manhã, um pouco antes de fazer dez anos, eu estava brincando debaixo das
mesas do Grande Salão, dando cambalhotas e importunando os cachorrinhos. Ainda era bem
cedo. Tinha acontecido um evento qualquer no dia anterior e o banquete tinha durado o dia
todo e noite adentro. Bronco tinha bebido até perder os sentidos. Quase todas as pessoas,
nobres e criados, ainda estavam na cama, e a cozinha não oferecia muito à minha fome naquela
manhã. Mas as mesas do Grande Salão exibiam um arsenal de doces e salgados pela metade,
além de pratos de carne. Havia também tigelas de maçãs e pedaços de queijo; em suma, tudo o
que um garoto poderia desejar filar. Os cachorros grandes tinham pegado os melhores ossos e
se retirado para os próprios cantos do salão, deixando os inúmeros filhotes escarafunchando
os pedaços menores. Eu tinha levado um pastel de carne bem grande para baixo de uma mesa e
o compartilhava com os meus cãezinhos preferidos. Desde Narigudo eu tinha o cuidado de não
deixar que Bronco me visse estreitando laços com nenhum cachorro. Ainda não compreendia
as objeções dele à minha proximidade com os cães, mas não queria arriscar a vida de um
animal para contestá-lo. E lá estava eu, alternando mordidas com três cãezinhos, quando ouvi
passos lentos arrastando-se no chão coberto de juncos. Dois homens falavam, discutindo
alguma coisa em voz baixa.
Pensei que fossem criados da cozinha, chegando para limpar o salão. Dali mesmo, embaixo
da mesa, comecei a tatear a superfície, em busca de mais uns restos de comida, antes que eles
levassem tudo embora.
Mas não foi um criado que se espantou com a minha súbita aparição, e sim o velho rei, o
meu próprio avô. Apenas um passo atrás dele, espreitando por cima do seu ombro, estava
Majestoso. Os seus olhos turvos e o gibão amarrotado revelavam que ele tinha participado da
festança da noite anterior. O novo bobo do rei, adquirido há pouco tempo, saltitava atrás
deles, os olhos pálidos esbugalhados num rosto magro. Com a pele clara e uma vestimenta de
bobo toda em preto e branco, era uma criatura tão estranha que eu quase não conseguia olhar
para ele. Em contraste, o Rei Sagaz tinha os olhos límpidos, a barba e o cabelo bem feitos, e
as roupas imaculadas. Ficou surpreso por alguns instantes e então comentou:
– Como vê, Majestoso, é como eu estava te contando. Uma oportunidade se apresenta e
alguém se aproveita dela; geralmente, alguém jovem ou alguém motivado pelas energias e
ânsias da juventude. A realeza não pode se dar ao luxo de ignorar oportunidades como essas
ou deixar que sejam criadas para outros.
O rei continuou a andar, passando por mim, ocupado com o seu discurso, enquanto