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Olhando para trás, suponho que ele se sentisse tão só quanto eu. Cavalaria não tinha dado
permissão para que ele o seguisse para o exílio. Em vez disso, Bronco tinha sido deixado para
trás, para cuidar de um bastardo sem nome e ainda descobrir que esse bastardo tinha uma
tendência para o que ele considerava uma perversão. E, mesmo depois de a perna ter sarado,
descobriu que nunca mais voltaria a cavalgar, caçar ou sequer andar tão bem quanto antes;
tudo isso devia ser duro, muito duro para um homem como Bronco. Que eu tenha ouvido,
nunca se lamentou a ninguém. Mas de novo, olhando para trás, não posso imaginar para quem
ele poderia ter se queixado. Vivíamos os dois trancados nas nossas solidões, e olhando-nos
cara a cara, a cada serão, víamos um no outro a quem atribuíamos a culpa disso.
Contudo, todas as coisas passam, em especial o tempo, e, com os meses e os anos, fui
lentamente encontrando o meu lugar no esquema das coisas. Servia de criado para Bronco,
trazendo-lhe as coisas antes que ele pensasse em pedi-las, arrumava tudo depois de ele
administrar medicamentos aos animais, assumia a responsabilidade de trazer água limpa para
os falcões, e tirava os carrapatos dos cães quando chegavam de uma caçada. O povo se
acostumou a me ver e ninguém mais parava para olhar para mim. Alguns simplesmente fingiam
não me ver. Aos poucos, Bronco relaxou a vigilância e eu ia e vinha com mais liberdade, mas
ainda assim tomava o cuidado de garantir que ele não soubesse das minhas visitas ao
povoado. Havia outras crianças na torre, muitas com mais ou menos a mesma idade que eu.
Algumas tinham até parentesco comigo, primos de segundo ou terceiro grau. Contudo, nunca
estabeleci contato de verdade com nenhuma delas. As mais novas eram mantidas perto das
mães ou amas, as mais velhas tinham tarefas e deveres próprios com que se ocupar. A maior
parte não era cruel comigo; eu estava simplesmente fora dos seus mundos. E, assim, embora
pudesse passar meses sem ver Ricardo, Quim ou Moli, eles continuavam a ser os meus amigos
mais próximos. Nas minhas explorações da torre e nas noites de inverno em que todos se
juntavam no Grande Salão para ouvir os menestréis, ou ver os espetáculos de marionetes ou os
jogos de salão, logo aprendi onde era bem-vindo ou não.
Mantinha-me longe dos olhos da rainha porque ela, sempre que me via, encontrava algum
defeito no meu comportamento e repreendia Bronco por causa disso. Majestoso também era
uma fonte de perigo. Já havia ganhado a maior parte da sua estatura de homem-feito, mas não
tinha escrúpulos ao me empurrar para fora do caminho ou passar, como quem não quer nada,
por cima do que quer que eu tivesse encontrado para me entreter. Era capaz de uma
mesquinhez e rancor que eu nunca tinha visto em Veracidade. Não que este passasse algum
tempo comigo, mas os nossos encontros ocasionais nunca eram desagradáveis. Quando notava
a minha presença, afagava o meu cabelo ou me oferecia uma moeda. Uma vez, um criado
trouxe até os aposentos de Bronco uns bonequinhos de madeira – soldados, cavalos e uma
carruagem cuja pintura estava muito gasta – com a mensagem de que Veracidade tinha
encontrado os brinquedos num canto do seu guarda-roupa e pensado que eu poderia gostar
deles. Não consigo me lembrar de outro bem a que eu desse mais valor.
Nos estábulos, Garrano representava outra zona de perigo. Se Bronco estivesse por perto,
falava normalmente comigo e me tratava bem, mas fazia pouco caso de mim nas demais
ocasiões. Ele deu a entender que não me queria por perto quando estivesse trabalhando.
Descobri por acaso que tinha ciúmes de mim e que ele sentia que os cuidados de Bronco
dirigidos a mim substituíam o interesse que havia tempos tinha manifestado por ele. Garrano
nunca foi escancaradamente cruel comigo, nem nunca me bateu ou repreendeu injustamente,