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la ali atada e, quando a maré veio, uma parte inteira da doca se soltou, danificando dois
esquifes. Durante dias morremos de medo que alguém descobrisse que nós éramos os
culpados. E, uma vez, o dono de uma taberna puxou as orelhas de Quim e acusou-nos de
roubá-lo. A nossa vingança foi um arenque fedido que colocamos embaixo dos suportes do
tampo de uma das suas mesas. O peixe apodreceu, fedeu e atraiu moscas durante vários dias
antes que ele o encontrasse.
Aprendi várias habilidades durante as minhas andanças: comprar peixe, remendar redes,
construir barcos e ficar à toa. Aprendi ainda mais sobre a natureza humana. Tornei-me um
rápido julgador de personalidades, identificando quem efetivamente pagava a moeda
prometida por uma mensagem entregue, e quem apenas ria da minha cara quando eu voltava
para receber o pagamento. Sabia a qual padeiro podia mendigar e de que lojas era mais fácil
roubar. E Narigudo estava sempre ao meu lado, tão vinculado a mim agora que a minha mente
raramente se separava por completo da dele. Eu usava os seus olhos, nariz e boca como se
fossem meus e nunca passou pela minha cabeça que isso fosse sequer um pouco estranho.
Assim se foi a melhor parte do verão. Porém, num belo dia em que o sol cavalgava num céu
mais azul do que o mar, a minha sorte grande chegou ao fim. Moli, Quim e eu tínhamos
surrupiado uma fileira inteira de linguiça de fígado e íamos fugindo pela rua abaixo com o
legítimo dono atrás de nós. Narigudo estava conosco, como sempre. As outras crianças
acabaram aceitando-o como parte de mim. Penso que nunca passou pela cabeça deles
suspeitar da nossa união de mentes. Nós éramos o Novato e o Narigudo e, provavelmente, eles
pensaram que era apenas por meio de um engenhoso truque qualquer que Narigudo sabia, antes
de eu atirar, para onde devia correr para apanhar sua parte da recompensa. Havia, portanto,
quatro de nós correndo pela rua congestionada, passando as linguiças da mão encardida para a
boca úmida e de volta à mão, enquanto atrás de nós o dono gritava e nos perseguia em vão.
Então Bronco saiu de uma loja.
Eu ia correndo na direção dele. Nós nos reconhecemos num instante de consternação mútua.
A expressão sombria que surgiu no seu rosto me deixou sem nenhuma dúvida sobre a minha
conduta. Fuja, decidi num fôlego, e esquivei-me das mãos que se estendiam para mim, apenas
para descobrir, num súbito engano, que de alguma forma eu tinha corrido diretamente para os
braços dele.
Não gosto de falar do que aconteceu depois disso. Apanhei, não apenas de Bronco, mas do
dono das linguiças, que estava furioso. Todos os meus cúmplices, com exceção de Narigudo,
evaporaram pelos cantos e recantos da rua. Narigudo ficou rosnando para Bronco, e também
apanhou e foi repreendido. Observei com agonia Bronco tirar moedas da bolsa para pagar o
homem das linguiças. Ele me segurou firme pelas costas da camisa, de tal forma que quase me
ergueu no ar. Quando o homem das linguiças partiu e a pequena multidão que tinha se reunido
para ver a minha humilhação se dispersou, ele finalmente me libertou. Tentei interpretar o
olhar de repugnância que ele lançou sobre mim. Com mais uma palmada com as costas da mão
na parte de trás da minha cabeça, ordenou-me:
– Para casa. Agora.
Assim fomos, e mais depressa do que tínhamos ido qualquer outra vez. Encontramos a nossa
cama de cobertores diante da lareira e esperamos ansiosamente. Esperamos durante toda a
longa tarde e o início da noite. Ficamos ambos com fome, mas sabíamos que era melhor não
sair dali. Tinha alguma coisa no rosto de Bronco que era mais assustadora que a fúria do pai