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ensinou como um garoto de pés ligeiros podia ganhar três ou mesmo cinco moedas por dia
para levar mensagens correndo pelas ruas íngremes do povoado. Achávamo-nos espertos e
ousados, estragando o negócio dos rapazes mais velhos que pediam duas moedas ou até mais
por um só recado. Penso que nunca fui tão corajoso como naquele tempo. Se fechar os olhos,
ainda posso sentir o cheiro desses dias gloriosos. Estopa, resina e lascas frescas de madeira
das docas secas, onde os construtores de barcos trabalhavam com as suas plainas e malhos. O
odor adocicado do peixe muito fresco e o cheiro venenoso de uma rede cheia, deixada fora
por tempo demais num dia quente. Barris de carvalho de aguardente envelhecida de Orla da
Areia confundindo-se com o cheiro de sacas de lã ao sol. Fardos de feno à espera de adoçar a
proa do navio misturavam os seus odores com caixas de melões duros. E todos esses cheiros
rodopiavam com o vento da baía, temperado com sal e iodo. Narigudo chamava a minha
atenção para tudo o que farejava, já que os seus sentidos mais aguçados se sobrepunham aos
meus, mais fracos.
Quim e eu éramos chamados para ir buscar um marinheiro que tinha ido dizer adeus à
esposa ou para levar uma amostra de especiarias a um comprador numa loja. O chefe do porto
podia nos enviar correndo para avisar uma tripulação de que algum idiota tinha atado mal as
linhas e que a maré estava prestes a levar o navio deles. Mas os recados de que eu mais
gostava eram os que nos levavam às tabernas, onde os contadores de histórias e os
bisbilhoteiros desempenhavam as suas funções. Os contadores de histórias narravam as lendas
clássicas, de viagens de descoberta e tripulações que se aventuraram por tempestades
terríveis e de capitães insensatos que naufragavam os seus navios com todos os seus homens.
Aprendi muitas lendas tradicionais, mas os relatos que mais me interessavam não vinham dos
contadores profissionais, mas dos próprios marinheiros. Suas histórias não eram aquelas
contadas à lareira para todo mundo ouvir, mas sim avisos e notícias que passavam de
tripulação para tripulação, quando os homens partilhavam uma garrafa de aguardente ou um
pão de pólen amarelo.
Falavam das capturas que haviam feito, de redes tão cheias que quase afundavam o barco,
ou de peixes maravilhosos e animais vistos apenas na passagem da lua cheia, que atravessava
o rastro deixado pelo navio. Havia relatos de aldeias saqueadas pelos Ilhéus, tanto na costa
como nas ilhas exteriores do nosso ducado, e histórias de piratas e batalhas no mar e navios
usurpados internamente, por traidores. Os relatos mais emocionantes eram os dos Salteadores
dos Navios Vermelhos, Ilhéus que pilhavam e pirateavam, e que atacavam não só os nossos
navios e aldeias, mas até mesmo outros navios Ilhéus. Alguns ridicularizavam a ideia de
navios de proa vermelha e zombavam daqueles que contavam casos de piratas Ilhéus que se
viravam contra outros piratas, iguais a eles.
Mas Quim, Narigudo e eu nos sentávamos debaixo das mesas com as costas apoiadas às
suas pernas, beliscando pãezinhos doces que custavam uma moeda, e ouvíamos de olhos
esbugalhados as histórias de navios de proa vermelha com uma dúzia de corpos balançando
nos seus mastros, não mortos, não, mas homens presos que se contorciam e gritavam quando as
gaivotas vinham para bicá-los. Ouvíamos histórias deliciosamente assustadoras, a ponto de as
tabernas abarrotadas nos parecerem geladas, e então corríamos de volta às docas para ganhar
mais uma moeda.
Uma vez, Quim, Moli e eu construímos uma jangada com tábuas descartadas na costa e
navegamos, com nossos remos improvisados, para cá e para lá debaixo das docas. Deixamo-