O Aprendiz De Assassino - Saga - Robin Hobb

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CAPÍTULO VINTE E UMPríncipesA respeito da erva que chamam de levame, o ditado dos Chyurda é “Uma folha para dormir,duas para atenuar a dor, três para uma sepultura piedosa”.Perto do amanhecer, finalmente peguei no sono para ser acordado pelo príncipe Ruriskatirando para o lado o painel que servia de porta para o meu quarto. Entrou num rompante,segurando uma garrafa sacudindo um líquido dentro. A largura da veste que esvoaçava emvolta dele mostrava que se tratava de um roupão de dormir. Rolei rapidamente para fora dacama e consegui ficar em pé, com a cama entre nós. Estava encurralado, indisposto edesarmado, com exceção da minha faca à cintura.– Ele ainda está vivo! – exclamou espantado, e então avançou na minha direção com ofrasco. – Depressa, beba.– Prefiro não fazer isso – falei, recuando enquanto ele avançava.Vendo a minha prudência, ele fez uma pausa.– Você tomou veneno – disse-me cuidadosamente. – É um milagre de Chranzuli que aindaesteja vivo. Isto é uma purga que o expulsará do seu corpo. Tome-a e talvez ainda viva.– Não resta nada no meu corpo que precise ser purgado – disse-lhe sem rodeios, e então meapoiei na mesa, pois tinha começado a tremer. – Eu sabia que tinha sido envenenado quandodeixei vocês ontem à tarde.– E não me disse nada? – disse ele, incrédulo.Virou-se para a porta, de onde Kettricken espreitava agora timidamente. Tinha o cabelo emtranças desgrenhadas, e os olhos vermelhos de choro.– Foi possível prevenir, mas não graças a você – disse-lhe o irmão severamente. – Vá eprepare para ele um caldo salgado com um pouco da carne de ontem à noite. E traga algunsdoces também. Em quantidade suficiente para nós dois. E chá. Ande, menina tonta!Kettricken saiu correndo, como uma criança. Rurisk me indicou a cama com um gesto.– Venha. Confie em mim o suficiente para se sentar. Antes que derrube a mesa com os seustremores. Estou falando abertamente com você. Você e eu, FitzCavalaria, não temos tempopara desconfiança. Nós temos muito o que conversar.Sentei-me, não tanto por confiar nele, mas mais por medo de cair se eu não fizesse isso.Sem formalidades, Rurisk sentou-se no outro canto da cama.– A minha irmã – disse gravemente – é impetuosa. O pobre Veracidade vai achar que ela émais menina que mulher, eu temo, e muito disso é culpa minha, pois eu a estraguei com mimos.Mas, apesar de isso explicar como ela é apegada a mim, não a desculpa de envenenar umconvidado. Especialmente na véspera do casamento dela com o tio dele.– Penso que eu teria sentido o mesmo a respeito disso em qualquer outra ocasião – disse eu,e Rurisk jogou a cabeça para trás e deu uma gargalhada.– Você tem muito do seu pai. Ele teria concordado com isso, tenho certeza. Mas tenho de te

explicar. Ela veio até mim há alguns dias, para me dizer que você estava a caminho daqui parame eliminar. Disse-lhe então que isso não era problema dela e que eu próprio tomaria contada situação. Mas, como te disse, ela é impulsiva. Ontem viu uma oportunidade e aproveitou-sedela. Sem levar em conta como a morte de um convidado poderia afetar um casamentocuidadosamente negociado. Pensou apenas em livrar-se de você antes que os votos a ligassemaos Seis Ducados e tornassem impensável um ato desses. Eu devia ter suspeitado dissoquando ela te levou tão rapidamente para os jardins.– As ervas que ela me deu?Ele assentiu com um aceno de cabeça, e eu me senti um idiota.– Mas depois de ter comido as ervas, você falou com ela de um jeito tão gentil que elacomeçou a duvidar que você pudesse ser tudo aquilo que ela tinha ouvido. Portanto, ela teperguntou diretamente, mas você evitou a pergunta, fingindo não compreender. Por causadisso, duvidou de você outra vez. Ainda assim, não devia ter demorado a noite toda para virme contar o que tinha feito e as dúvidas sobre a sensatez do seu ato. Por isso, eu te peçodesculpas.– Tarde demais para pedir desculpas. Eu já desculpei vocês – eu me ouvi dizer.Rurisk me encarou.– O seu pai também dizia isso.Ele olhou de relance para a porta, um momento antes de Kettricken entrar. Assim que elaentrou, ele fechou o painel e pegou a bandeja que ela tinha trazido.– Sente-se – disse-lhe severamente. – E observe uma forma diferente de lidar com umassassino.Levantou uma pesada caneca da bandeja e bebeu abundantemente dela antes de me entregar.Lançou outro olhar de relance a Kettricken.– E se esta estava envenenada, você acabou de matar o seu irmão também – dividiu umfolhado de maçã em três pedaços. – Escolha um – disse para mim, e então pegou um para simesmo e deu o que eu escolhi em seguida para Kettricken. – Para que você possa ver que nãohá nada de estranho nesta comida.– Vejo poucas razões para você me dar veneno hoje de manhã depois de vir me dizer quefui envenenado ontem à noite – admiti.Ainda assim, o meu paladar estava atento, procurando o mais ínfimo sabor errado. Mas nãohavia nenhum. Era um folhado muito saboroso, recheado com maçãs maduras e especiarias.Mesmo se eu não estivesse com a barriga tão vazia, teria sido delicioso.– Exatamente – disse Rurisk numa voz abafada, e engoliu. – E, se você fosse um assassino –e aqui lançou um olhar de aviso para que Kettricken ficasse em silêncio –, estaria na mesmaposição. Alguns assassinatos apenas são proveitosos se mais ninguém souber que sãoassassinatos. Assim seria com a minha morte. Se me matasse agora, ou melhor, se eu morressedentro dos próximos seis meses, Kettricken e Jonqui gritariam aos quatro ventos que eu tinhasido assassinado. Dificilmente uma boa base para uma aliança entre povos, você não acha?Consegui fazer um aceno afirmativo com a cabeça. O caldo quente da caneca quase tinhaparado os meus tremores, e o folhado doce tinha um sabor divino.– Portanto, concordamos que, se você fosse um assassino, não haveria agora nenhumavantagem em executar o meu assassinato. Na verdade, seria uma grande perda para você se eumorresse. Pois o meu pai não é tão favorável a essa aliança quanto eu. Ah, ele sabe que é uma

CAPÍTULO VINTE E UM

Príncipes

A respeito da erva que chamam de levame, o ditado dos Chyurda é “Uma folha para dormir,

duas para atenuar a dor, três para uma sepultura piedosa”.

Perto do amanhecer, finalmente peguei no sono para ser acordado pelo príncipe Rurisk

atirando para o lado o painel que servia de porta para o meu quarto. Entrou num rompante,

segurando uma garrafa sacudindo um líquido dentro. A largura da veste que esvoaçava em

volta dele mostrava que se tratava de um roupão de dormir. Rolei rapidamente para fora da

cama e consegui ficar em pé, com a cama entre nós. Estava encurralado, indisposto e

desarmado, com exceção da minha faca à cintura.

– Ele ainda está vivo! – exclamou espantado, e então avançou na minha direção com o

frasco. – Depressa, beba.

– Prefiro não fazer isso – falei, recuando enquanto ele avançava.

Vendo a minha prudência, ele fez uma pausa.

– Você tomou veneno – disse-me cuidadosamente. – É um milagre de Chranzuli que ainda

esteja vivo. Isto é uma purga que o expulsará do seu corpo. Tome-a e talvez ainda viva.

– Não resta nada no meu corpo que precise ser purgado – disse-lhe sem rodeios, e então me

apoiei na mesa, pois tinha começado a tremer. – Eu sabia que tinha sido envenenado quando

deixei vocês ontem à tarde.

– E não me disse nada? – disse ele, incrédulo.

Virou-se para a porta, de onde Kettricken espreitava agora timidamente. Tinha o cabelo em

tranças desgrenhadas, e os olhos vermelhos de choro.

– Foi possível prevenir, mas não graças a você – disse-lhe o irmão severamente. – Vá e

prepare para ele um caldo salgado com um pouco da carne de ontem à noite. E traga alguns

doces também. Em quantidade suficiente para nós dois. E chá. Ande, menina tonta!

Kettricken saiu correndo, como uma criança. Rurisk me indicou a cama com um gesto.

– Venha. Confie em mim o suficiente para se sentar. Antes que derrube a mesa com os seus

tremores. Estou falando abertamente com você. Você e eu, FitzCavalaria, não temos tempo

para desconfiança. Nós temos muito o que conversar.

Sentei-me, não tanto por confiar nele, mas mais por medo de cair se eu não fizesse isso.

Sem formalidades, Rurisk sentou-se no outro canto da cama.

– A minha irmã – disse gravemente – é impetuosa. O pobre Veracidade vai achar que ela é

mais menina que mulher, eu temo, e muito disso é culpa minha, pois eu a estraguei com mimos.

Mas, apesar de isso explicar como ela é apegada a mim, não a desculpa de envenenar um

convidado. Especialmente na véspera do casamento dela com o tio dele.

– Penso que eu teria sentido o mesmo a respeito disso em qualquer outra ocasião – disse eu,

e Rurisk jogou a cabeça para trás e deu uma gargalhada.

– Você tem muito do seu pai. Ele teria concordado com isso, tenho certeza. Mas tenho de te

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