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viagens e...
– Normalmente, quando está viajando, não corre o risco de ser envenenado.
– Há alguma coisa que você gostaria de me dizer?
Tentei fazer o meu tom de voz soar leve e brincalhão. Sentia falta das habituais caras
irônicas e zombarias do Bobo nesta conversa.
– Apenas que seria sábio da sua parte comer alimentos leves, ou não comer, em hipótese
alguma, nenhuma comida que você mesmo não tenha preparado.
– Em todos os banquetes e festas que vão acontecer lá?
– Não. Apenas naqueles que você queira sobreviver – virou as costas para ir embora.
– Peço desculpas – disse apressadamente. – Não tinha intenção de me intrometer. Fui te
procurar, e estava tão quente, e a porta não estava trancada, por isso entrei. Não tinha intenção
de bisbilhotar.
As costas dele continuaram viradas para mim enquanto perguntou:
– E você achou divertido o que viu?
– Eu... – não consegui pensar em nada para dizer, de um jeito que eu garantisse a ele que o
que eu tinha visto ficaria apenas na minha cabeça.
Ele deu dois passos para a frente e estava já encostando a porta. Eu deixei escapar:
– Eu desejei que houvesse um lugar que fosse tanto eu como aquele lugar é você. Um lugar
que eu também pudesse manter em segredo.
A porta parou à distância de uma mão de se fechar.
– Preste atenção a este conselho e talvez sobreviva à viagem. Quando considerar a
motivação de um homem, lembre-se de que não deve julgar o trigo dele com a sua medida.
Afinal, pode ser que ele não use o mesmo padrão que você.
A porta se fechou e o Bobo foi embora. Mas suas últimas palavras tinham sido enigmáticas
e frustrantes o suficiente para me deixarem pensando que talvez ele tivesse perdoado a minha
invasão.
Enfiei a purga-do-mar no gibão, não a querendo, mas receoso de deixá-la. Olhei o quarto
em volta de relance, mas como sempre era um lugar vazio e prático. Dona Despachada tinha
cuidado da minha bagagem, não confiando a mim a responsabilidade de arrumar as roupas
novas. Eu tinha notado que o cervo marcado da minha insígnia tinha sido substituído por um
cervo com seus cornos baixados.
– Veracidade ordenou que ficasse assim – foi o que ela me disse quando lhe perguntei sobre
o assunto. – Gosto mais do que do cervo marcado. Você não?
– Acho que sim – respondi, e a conversa parou ali. Um nome e uma insígnia. Balancei a
cabeça para mim mesmo, peguei o baú de ervas e rolos de pergaminho e desci para me juntar
à caravana.
Enquanto ia descendo os degraus, encontrei Veracidade, que vinha subindo. A princípio,
quase não o reconheci, pois subia as escadas como um velho ranzinza. Fiquei de lado para
deixá-lo passar e o reconheci quando me olhou de relance. É uma coisa estranha ver um
homem, uma vez tão próximo, daquela maneira, encontrado por acaso como um estranho.
Notei como as roupas estavam desalinhadas sobre ele e como o cabelo negro e farto de que eu
me lembrava tinha agora traços grisalhos. Esboçou um sorriso ausente e, então, como se
tivesse lhe ocorrido de repente, me parou.
– Vai partir para o Reino da Montanha? Para a cerimônia do casamento?