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tortuosas, e as pedras do pavimento se moviam e escapavam dos seus lugares sob o peso das
carroças que passavam. O vento castigava o interior das minhas narinas com o cheiro de algas
e barrigadas de peixe, enquanto o gemido das gaivotas e das aves marinhas era uma melodia
fantasmagórica sobre o murmúrio rítmico das ondas. O povoado se agarrava ao rochedo
íngreme e negro como os moluscos e crustáceos se agarram às docas que se estendem pela
baía. As casas eram de pedra e madeira, e as mais elaboradas estavam entre as de madeira,
construídas na parte mais alta da face rochosa, e mais profundamente incrustadas nela.
A Cidade de Torre do Cervo estava relativamente sossegada, em comparação com as
festividades e multidões na torre. Nenhum de nós tinha o bom senso ou a experiência
necessária para saber que a região da cidade em frente ao mar não era o melhor lugar para
uma criança de seis anos e um cãozinho vaguearem. Narigudo e eu explorávamos avidamente
os lugares, farejando o nosso caminho pela Rua do Padeiro, passando por um mercado quase
deserto e, depois, pelos armazéns e galpões para barcos que ficavam na parte mais baixa do
povoado, onde havia água por perto e andávamos nos cais de madeira com tanta frequência
como em areia e pedra. Os negócios aqui corriam como de costume, pouco influenciados pela
atmosfera carnavalesca que se fazia sentir lá em cima, na torre. Os navios devem atracar e
descarregar conforme permitem a subida e a descida das marés, e os que vivem da pesca têm
de seguir os calendários dos bichos de barbatanas e não os dos homens.
Logo encontramos crianças, algumas ocupadas com as tarefas menores dos afazeres dos
seus pais, mas algumas ociosas como nós. Eu me relacionei facilmente com elas, com pouca
necessidade de apresentações ou quaisquer outras regras de educação dos adultos. A maior
parte delas era mais velha do que eu, mas também havia aquelas da mesma idade ou mais
novas. Nenhuma pareceu achar estranho que eu andasse por ali sozinho. Fui apresentado a
todas as vistas importantes da cidade, incluindo o corpo inchado de uma vaca que tinha sido
levada pelas ondas na última maré. Visitamos um barco novo de pesca em construção numa
doca cheia de lascas enroladas de madeira e com forte cheiro de resina derramada. Uma
grelha de defumar peixe, deixada a deus-dará, forneceu uma refeição do meio-dia para meia
dúzia de nós. Se as crianças com quem eu estava eram mais malvestidas e barulhentas do que
as que passavam por nós, ocupadas com as suas tarefas, não me dei conta disso. E se alguém
tivesse me dito que eu estava passando o dia com um bando de fedelhos vagabundos,
proibidos de entrar na torre por causa dos seus hábitos de mão-leve, teria ficado chocado.
Naquela altura sabia apenas que era um dia subitamente animado e agradável, cheio de lugares
aonde ir e coisas para fazer.
Havia alguns meninos, maiores e mais arruaceiros, que teriam aproveitado a oportunidade
de intimidar o recém-chegado se Narigudo não estivesse comigo e não tivesse mostrado os
seus dentes ao primeiro empurrão agressivo. Mas como não mostrei nenhum sinal de querer
contestar a liderança deles, recebi permissão para segui-los. Além disso, estava
convenientemente impressionado com todos os segredos deles. Eu até arriscaria dizer que, no
final da longa tarde, conhecia melhor o bairro pobre da povoação do que muitos dos que
cresceram nele.
Não perguntaram o meu nome. Chamaram-me simplesmente de Novato. Os outros tinham
nomes tão simples quanto Ricardo ou Quim, ou tão descritivos quanto Picuinha e Sangra-
Nariz. Esta última poderia ter sido uma menina muito bonita em circunstâncias mais
favoráveis. Era um ou dois anos mais velha do que eu, mas muito direta e esperta. Meteu-se