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Ambos pareceram se esquecer por completo da minha presença. Fui ficando menor e mais
discreto, mordiscando o meu biscoito como se fosse um rato num canto.
– Mas que importa um homem ser devorado, se isso salva um reino? – Veracidade não se
deu ao trabalho de disfarçar a amargura na voz, e para mim era claro que não falava apenas do
Talento. Empurrou o prato para o lado. – No fim das contas – acrescentou com um sarcasmo
cansado –, não é como se você não tivesse ainda outro filho para usar a coroa. Um sem as
cicatrizes do que o Talento faz aos homens. Um livre de se casar com quem lhe apetecer.
– Não é culpa de Majestoso que não possua o Talento. Era uma criança doente, muito
doente para Galeno treiná-lo. E quem poderia ter previsto que dois príncipes com o Talento
não seriam suficientes? – protestou Sagaz. Levantou-se abruptamente e percorreu o quarto.
Parou, encostando-se no peitoril da janela e examinando o mar. – Faço o que posso, filho –
acrescentou numa voz mais baixa. – Você acha que eu não me importo, que não vejo como
você está sendo consumido?
Veracidade suspirou profundamente.
– Não. Eu sei. É o cansaço do Talento falando por mim. Um de nós, pelo menos, deve
manter a cabeça limpa e tentar compreender a totalidade do que está acontecendo. Quanto a
mim, não há mais nada senão sondar, e seguir a triagem, a tentativa de reconhecer o timoneiro
dos remadores, de encontrar indícios de medos secretos que o Talento possa ampliar, de
encontrar aqueles com fraca força de vontade e me aproveitar desses primeiro. Quando
durmo, sonho com eles e, quando tento comer, são eles que ficam atravessados na minha
garganta. Sabe que eu nunca senti prazer nisso, Pai. Nunca me pareceu digno de um guerreiro
espiar e atacar de forma silenciosa a mente dos homens. Deem-me uma espada, e eu
explorarei com boa vontade as tripas deles. Prefiro enfrentar um homem com uma espada a
atiçar os cães da sua própria mente para que mordam os seus calcanhares.
– Eu sei, eu sei – disse Sagaz com gentileza, mas não acredito que ele realmente soubesse.
Eu, pelo menos, compreendia realmente a aversão de Veracidade pela sua tarefa. Tenho de
admitir que concordava com ele e que o achava de alguma forma maculado por ela. Mas
quando me olhou de relance, o meu rosto e olhos não revelaram nenhuma acusação. Mais
profunda em mim era a culpa sorrateira de ter falhado em aprender o Talento e de não servir
para nada ao meu tio num momento desses. Perguntei a mim mesmo se, quando ele olhou para
mim, pensou em drenar a minha força outra vez. Era uma ideia assustadora, mas endureci o
meu coração, preparando-me para aceitar o seu pedido. Ele apenas sorriu com gentileza, de
forma ausente, como se aquele pensamento nunca tivesse passado pela cabeça dele. Então se
levantou para sair. Quando passou por mim, afagou o meu cabelo como se eu fosse Leon.
– Leve o cão para passear para mim, mesmo que seja apenas para pegar coelhos. Detesto
deixá-lo no quarto o dia todo, mas as suas pobres súplicas só iriam me distrair daquilo que
devo fazer.
Assenti com a cabeça, surpreso com o que sentia emanar dele. Uma sombra da mesma dor
que eu tinha sentido ao ser separado dos meus próprios cães.
– Veracidade.
Virou-se para responder ao chamamento de Sagaz.
– Quase me esqueci de te dizer o motivo por que te chamei aqui. É, claro, a princesa da
montanha. Ketkin, creio ser esse o nome...
– Kettricken. Lembro-me pelo menos disso. Uma criança pequenina e magricela, da última