Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
vieram para olhar Veracidade com novos olhos e começar a imaginar se, e quando, ele será o
novo rei, e que tipo de rei ele poderá ser. A desistência e o refúgio de Cavalaria para a
Floresta Mirrada deixou todos os Ducados alvoroçados, como se tivesse cutucado um
vespeiro.
Bronco ergueu os olhos do focinho ávido de Narigudo.
– Bem, Fitz. Imagino que tenha experimentado um pouco disso hoje. Você quase matou o
pobre Garrano de susto, fugindo daquela maneira. Ora, então está magoado? Alguém te tratou
mal? Eu devia saber que alguém te culparia por todo esse alvoroço. Venha cá, então. Venha.
Quando eu hesitei, ele foi até uma cama de cobertores preparada ao lado do fogo e deu
umas batidinhas nela, com ares convidativos.
– Vê? Já existe um lugar aqui, pronto para você. E há pão e carne na mesa para vocês dois.
As palavras dele alertaram-me para uma travessa coberta sobre a mesa. Carne,
confirmaram os sentidos de Narigudo, e eu fui subitamente tomado pelo aroma da carne.
Bronco riu da nossa corrida alvoroçada em direção à mesa e silenciosamente aprovou a forma
como eu dei uma porção a Narigudo, antes de encher a minha própria boca. Comemos até
ficarmos plenamente saciados, pois Bronco não havia subestimado o quanto um cãozinho e um
garoto estariam esfomeados depois dos infortúnios daquele dia. E então, apesar da nossa
longa soneca anterior, os cobertores ao pé da lareira pareceram subitamente muito
convidativos. De barrigas cheias, enroscamo-nos um no outro, com as chamas aquecendo
nossas costas, e adormecemos. Quando acordamos no dia seguinte, o sol já estava a pino, e
Bronco havia partido. Narigudo e eu comemos o que restava do pão da noite anterior e roemos
os ossos dos restos até limpá-los, antes de descermos dos aposentos de Bronco. Ninguém
questionou ou pareceu notar a nossa presença.
Do lado de fora, outro dia de caos e folia começava. A torre estava ainda mais cheia de
gente. Os passos levantavam pó, e as vozes misturadas eram como uma sobreposição entre o
sussurrar do vento e o mais distante lamúrio das ondas. Narigudo absorveu tudo isso, cada
odor, cada imagem, cada som. O impacto sensorial duplicado me deixou tonto. Enquanto
andava, fui compreendendo, a partir de trechos de conversas, que a nossa chegada tinha
coincidido com um certo ritual primaveril que reunia as pessoas em festa. A abdicação de
Cavalaria ainda era o tópico principal, mas não impedia que os espetáculos de marionetes e
malabaristas fizessem de cada canto um palco para as suas brincadeiras. Pelo menos uma
apresentação de marionetes já havia incorporado a queda de Cavalaria na sua comédia
lasciva, e eu permaneci anônimo no meio da multidão e me questionei sobre o significado de
um diálogo sobre semear as terras do vizinho que fazia os adultos morrerem de rir.
Mas logo as multidões e o barulho se tornaram opressivos para nós; e eu deixei Narigudo
saber que eu queria fugir daquilo tudo. Deixamos a torre central, atravessando o portão grosso
da muralha e passamos pelos guardas interessados em flertar com as foliãs, enquanto estas iam
e vinham. Mais um garoto e seu cão saindo atrás de uma família de peixeiros não era nada que
chamasse a atenção. E, sem melhor distração à vista, seguimos essa família à medida que eles
farejavam o caminho afora, pelas ruas que se afastavam da torre e levavam à Cidade de Torre
do Cervo. Nós nos deixamos levar mais e mais, à medida que novos odores exigiam que
Narigudo investigasse ao redor e em seguida urinasse em cada canto, até que éramos só ele e
eu vagueando pela cidade.
Torre do Cervo era então um lugar áspero e com muito vento. As ruas eram íngremes e