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– Como eles vão rir mostrando todos os dentes, se souberem que matamos a nossa própria
gente.
Fiquei imóvel, pensando que resposta poderia dar a esse comentário, pois, pelo que sabia,
as minhas tarefas eram apenas do conhecimento de Sagaz e Breu, mas os olhos de Veracidade
estavam longe outra vez. Deixei o quarto silenciosamente.
Sem ter a intenção de fazer isso, comecei a mudar as coisas em volta dele. Um dia,
enquanto ele comia, varri o seu quarto e, mais tarde, à noite, trouxe-lhe um saco cheio de
juncos e ervas para espalhar pelo chão. Eu me preocupava porque poderia ser uma distração
para ele, mas Breu tinha me ensinado a me mover silenciosamente. Trabalhei sem falar e,
quanto a Veracidade, ele não dava sinais de perceber as minhas idas e vindas. Mas o quarto
tinha se refrescado, e os botões de vervéria misturados com as ervas exalavam um cheiro
vivificante. Quando entrei, eu o vi cochilando em sua cadeira. Trouxe para ele almofadas, as
quais ignorou por vários dias, mas um dia ele finalmente as dispôs a seu modo. O quarto
continuou desnudado, mas eu tinha compreendido que era assim que ele precisava que fosse,
para preservar a capacidade de se concentrar num propósito único. Por isso, tudo o que trouxe
para ele foram itens que lhe proporcionariam um mínimo de conforto, nada de tapeçarias nem
penduricalhos para as paredes, nem vasos de flores, nem mensageiros do vento tilintantes, mas
tomilhos em flor colocados em potes para acalmar as dores de cabeça que o atormentavam e,
num dia tempestuoso, um cobertor contra a chuva e o frio que entravam pela janela aberta.
Um dia, encontrei-o dormindo na cadeira, flácido como uma coisa morta. Dispus o cobertor
sobre ele como se fosse um inválido e pousei a bandeja diante dele, mas a deixei tapada, para
manter o calor da comida. Sentei-me no chão ao lado da cadeira, encostado em uma das
almofadas jogadas, e escutei o silêncio do quarto. Parecia quase pacífico nesse dia, apesar da
violenta chuva de verão que vinha de fora, pela janela aberta, e do vento forte que lufava de
vez em quando. Devo ter cochilado, pois acordei com a mão dele no meu cabelo.
– Estão dizendo para você me vigiar assim, garoto, mesmo quando durmo? Do que eles têm
medo, então?
– Nada que eu saiba, Veracidade. Dizem-me apenas para te trazer comida e tentar, o melhor
que possa, que você coma. Nada mais do que isso.
– E cobertores e almofadas, e potes de flores agradáveis?
– Esses são coisa minha, meu príncipe. Nenhum homem merece viver num quarto tão
deserto quanto este.
Nesse momento, percebi que não estávamos falando em voz alta e, num sobressalto, senteime
direito e olhei para ele.
Veracidade também pareceu ganhar consciência. Remexeu-se na sua cadeira pouco
confortável.
– Dou graças por esta tempestade, que me deixa descansar. Escondi-a de três dos navios
deles, persuadindo aqueles que olhavam para o céu de que não era mais do que um chuvisco
de verão. Agora mexem freneticamente os remos e espiam através da chuva, tentando manter
os cursos. E eu posso roubar uns poucos momentos de verdadeiro sono – fez uma pausa. –
Perdoe-me, garoto. Às vezes, usar o Talento parece mais natural para mim do que falar. Não
tinha intenção de me intrometer à força nos seus pensamentos.
– Não faz mal, meu príncipe. Mas fiquei surpreso. Não consigo usar o Talento, a não ser de
um jeito leve e imprevisível. Não sei como consegui me abrir para você.