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aquela comida preparada com tanta habilidade fosse outro dever a ser desempenhado.
Comeu sem prazer, e bebeu o chá num gole resoluto, como se se tratasse de um
medicamento, sem se deixar enganar pelo gengibre e pela hortelã. No meio da refeição, parou
com um suspiro e fitou a janela por algum tempo. Então, parecendo voltar outra vez, forçou-se
a consumir cada item completamente. Empurrou a bandeja para o lado e recostou-se na
cadeira como se estivesse exausto. Fiquei pasmado. Eu mesmo tinha preparado aquele chá. A
quantidade de casco-de-elfo que havia ali teria feito Fuligem saltar por cima das paredes da
baia.
– Meu príncipe? – disse e, como não se mexeu, toquei levemente no seu ombro. –
Veracidade? O senhor está bem?
– Veracidade – repetiu como se estivesse entorpecido. – Sim. Prefiro isso a “senhor” ou
“príncipe” ou “meu senhor”. É uma jogada do meu pai enviá-lo aqui. Bem. Posso ainda
surpreendê-lo, talvez. Mas, sim, me chame de Veracidade. E diga a eles que eu comi,
obediente como sempre. Vá, garoto. Tenho trabalho para fazer.
Pareceu se locomover com dificuldade, e mais uma vez o seu olhar foi para longe. Empilhei
os pratos tão silenciosamente quanto pude sobre a bandeja e me dirigi para a porta. Mas, no
momento em que eu levantava a tranca da porta, ele falou outra vez.
– Garoto?
– Senhor.
– Ah-ah! – ele me advertiu.
– Veracidade?
– Leon está nos meus aposentos. Leve-o a passear para mim, sim? Ele está sofrendo. Não é
necessário que ambos passemos por isso.
– Sim, senhor. Veracidade.
Assim, o velho cão, para quem os melhores anos já tinham passado, ficou a meu cargo.
Levava-o todos os dias do quarto de Veracidade, e caçávamos pelos montes, penhascos e
praias atrás de lobos que já não andavam por ali havia muitos anos. Como Breu tinha
suspeitado, eu estava em má condição física e, em princípio, essas caçadas simuladas eram a
única atividade em que eu conseguia acompanhar o velho cão de caça. Mas, à medida que os
dias passavam, recuperamos a força, e Leon até apanhou um coelho ou dois para mim. Agora
que estava exilado dos domínios de Bronco, não tinha escrúpulos em utilizar a Manha sempre
que desejava. Mas, como tinha descoberto havia muito tempo, podia me comunicar com Leon,
mas não havia um vínculo entre nós. Ele nem sempre prestava atenção em mim e, às vezes,
nem sequer acreditava em mim. Se fosse um cãozinho recém-nascido, tenho certeza de que nos
ligaríamos um ao outro. Mas ele era velho, e já tinha dado o seu coração, havia muito tempo, a
Veracidade. A Manha não serve para controlar animais, é apenas uma forma de vislumbrar a
vida deles.
Três vezes por dia, eu subia os íngremes degraus em caracol, para persuadir Veracidade a
comer e trocar umas poucas palavras com ele. Em alguns dias, era como falar com uma
criança ou com um idoso trêmulo. Em outros, ele perguntava por Leon e me interrogava sobre
o que se passava na Cidade de Torre do Cervo. Às vezes, ausentava-me por vários dias,
ocupado com as minhas outras tarefas. Normalmente ele parecia não notar, mas, uma vez,
depois da incursão em que fui ferido com uma faca, ele observou que eu carregava
desajeitadamente os pratos vazios na bandeja.