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sono profundo e sem sonhos, reservado para filhotes e tardes quentes de primavera.
Acordei com arrepios, várias horas depois. Estava já completamente escuro, e o calor tênue
daquele início de primavera tinha se dissipado. Narigudo acordou ao mesmo tempo que eu, e
juntos rastejamos para fora do esconderijo.
Um céu noturno pairava sobre Torre do Cervo, com estrelas luzindo, brilhantes e frias. O
odor da baía era mais forte, como se os cheiros diurnos de homens, cavalos e cozidos fossem
coisas temporárias que deviam se render cada noite ao poder do oceano. Percorremos
caminhos desertos, passando por pátios de exercícios, celeiros e lagares. Tudo estava quieto e
silencioso. À medida que nos aproximávamos da torre central, comecei a ver tochas ainda
ardentes e a ouvir vozes ainda envolvidas em conversa, mas tudo isso parecia tomado por uma
espécie de cansaço, os últimos vestígios da folia perdendo a força antes que o alvorecer
viesse romper nos céus. Ainda assim, contornamos a torre central a uma longa distância,
encontrando gente de sobra.
Dei por mim seguindo Narigudo de volta ao estábulo. Ao nos aproximarmos das portas
pesadas, fiquei imaginando como entraríamos, mas a cauda de Narigudo começou a abanar
rapidamente à medida que nos movíamos, e até o meu pobre nariz captou o cheiro de Bronco
no escuro. Ele se levantou do caixote de madeira em que estava sentado ao lado da porta.
– Aí está você – disse numa voz calma. – Vamos lá, então. Vamos. – E ficou parado ao lado
das portas pesadas, abriu-as e nos deixou entrar.
Nós o seguimos pela escuridão, entre as baias enfileiradas do estábulo, passando por
tratadores e adestradores que tinham sido acomodados ali para passar a noite, e depois pelos
nossos próprios cavalos, cães e rapazes do estábulo, que dormiam entre eles, e então por uma
escadaria que interligava as baias e a falcoaria. Seguimos Bronco para cima, por degraus de
madeira rangente, até alcançar outra porta que ele abriu. A luz amarelo-clara de uma vela
derretendo sobre a mesa me cegou temporariamente. Continuamos seguindo-o, agora para
dentro de um quarto de teto inclinado, que cheirava a Bronco, a couro e a óleos, unguentos e
ervas que eram parte do seu trabalho. Ele fechou a porta com firmeza atrás de nós e, quando
passou por mim e Narigudo para acender uma nova vela em cima da outra que estava sobre a
mesa, quase acabada, senti nele o aroma adocicado do vinho.
A luz se espalhou, e Bronco sentou-se numa cadeira de madeira em frente à mesa. Parecia
diferente, vestido com um tecido fino e elegante, marrom e amarelo, e um gibão ornado com
fio de prata. Pôs uma mão no joelho, com a palma para cima, e Narigudo imediatamente foi até
ele. Bronco esfregou as orelhas caídas do cachorro e bateu carinhosamente nas costelas,
rindo-se do pó que se levantou do pelo dele.
– Vocês dois formam um belo par – disse, falando mais para o cãozinho do que para mim. –
Olhem para vocês. Sujos como vagabundos. Menti hoje para o meu rei por causa de vocês. É a
primeira vez na vida que faço uma coisa dessas. Parece que a desgraça de Cavalaria vai me
levar junto com ele. Disse-lhe que você estava limpo e dormindo profundamente, exausto da
viagem. Não ficou nada contente por ter de esperar para te ver, mas, felizmente para nós, tinha
coisas mais significantes com que se preocupar. A renúncia de Cavalaria deixou muitos
nobres alvoroçados. Alguns veem nisso uma oportunidade para tirar vantagem, e outros estão
desapontados pela traição de um rei que admiravam. Sagaz está tentando acalmar a todos.
Deixou espalhar o rumor de que foi Veracidade quem negociou com os Chyurda desta vez. Na
minha opinião, àqueles que acreditam nisso não deveria ser permitido andar por aí. Mas eles