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o autocontrole. Naquele instante, os pequenos sons que mesmo uma embarcação furtiva tem de
fazer chegaram até mim, suaves, mas distintos, através da água. Um homem pigarreou, um
remo chacoalhou na toleteira, algo pesado bateu no convés. Esperei por um grito ou comando
que revelasse que eu tinha sido visto, mas não aconteceu nada. Ergui a cabeça cautelosamente,
olhando através das raízes esbranquiçadas de um dos troncos de madeira flutuantes. Tudo
estava quieto, com exceção do navio que ia se aproximando à medida que os remadores o
traziam para o porto. Os remos se erguiam e caíam num movimento único, quase silencioso.
Pouco depois, pude ouvi-los falando numa língua parecida com a nossa, mas pronunciada
de uma forma tão áspera que podia apenas discernir o significado de algumas palavras com
grande dificuldade. Um homem saltou para fora do barco com uma corda na mão e patinhou
até a margem. Prendeu o navio à costa, a não mais que uma distância de dois navios do lugar
onde eu me escondia entre os rochedos e os pedaços de madeira. Outros dois saltaram para
fora, com facas nas mãos, e escalaram o quebra-mar. Correram pela estrada em direções
opostas, para assumir posições de sentinela. Um se colocou quase diretamente acima de mim.
Fiquei bem encolhido e quieto. Agarrei-me mentalmente a Ferreirinho na mente, da mesma
forma que uma criança se agarra a um brinquedo favorito como proteção contra pesadelos.
Precisava voltar para casa e para ele; portanto, não podia ser descoberto. O conhecimento de
que eu tinha de fazer a primeira dessas coisas, de alguma maneira, fazia a segunda parecer
mais possível.
Os homens saíam apressadamente do navio. Tudo neles indicava familiaridade. Não
conseguia compreender por que eles tinham aportado aqui até que os vi descarregar tonéis de
água vazios. Os tonéis foram transportados ocos, rolando pela estrada sobre o quebra-mar, e
lembrei-me do poço pelo qual tinha passado antes. A parte da minha mente que pertencia a
Breu notou o quão bem conheciam Forja, para aportar quase exatamente em frente àquele
poço. Não era a primeira vez que esse navio tinha parado aqui para se abastecer de água.
“Envenene o poço antes de partir”, sugeriu para mim aquele pedacinho da minha cabeça. Mas
eu não tinha as provisões necessárias para nada do gênero, nem coragem para fazer o que quer
que fosse, a não ser me manter escondido.
Outros tripulantes emergiram e começaram a andar, esticando as pernas. Ouvi uma
discussão entre uma mulher e um homem. Este desejava permissão para acender uma fogueira
com um pouco da madeira flutuante encostada nos quebra-mares e assar carne. Ela o proibiu,
dizendo que não estavam suficientemente longe ainda, e que o fogo seria visível demais.
Compreendi que tinham executado um ataque recentemente, para ter carne fresca, e não muito
longe daqui. Ela lhe deu permissão para outra coisa que não consegui entender muito bem, até
que os vi descarregar dois barris cheios. Outro homem veio à costa com uma peça inteira de
presunto no ombro, e a jogou sobre um dos tonéis colocados em pé. Desembainhou uma faca e
começou a cortar pedaços de presunto, enquanto um dos seus companheiros abria o outro
barril. Iam ficar por um tempo. E se decidissem fazer uma fogueira, ou se ficassem até o
amanhecer, a sombra do meu tronco de madeira não me serviria de esconderijo. Tinha de sair
dali depressa.
Através de ninhos de pulga-do-mar e montes disformes de algas, por baixo e entre troncos e
pedras, fui me arrastando através da areia e do saibro. Juro que todas as raízes pontudas se
engancharam em mim e que todas as placas soltas de pedra bloquearam o meu caminho. A
maré tinha mudado. As ondas batiam barulhentas contra as rochas, e a espuma de água salgada