O Aprendiz De Assassino - Saga - Robin Hobb

27.02.2021 Views

sangue; portanto, a faca o tinha atingido pelo menos uma vez. E a queda da escada? Tenteideixar de lado a preocupação. Nunca tinha pensado que Bronco pudesse ser ferido daquelamaneira e, menos ainda, no que eu sentiria numa situação dessas. Não conseguia encontrarnome para o estado de espírito em que eu me encontrava. Apenas vazio, pensei. Vazio ecansaço.Comi um pouco enquanto ia caminhando e enchi meu odre num riacho. Na metade da manhão céu se encheu de nuvens e choveu um pouco. No princípio da tarde, abruptamente, o céu sedesanuviou. Continuei andando. Tinha esperado encontrar algum tipo de tráfego na estrada dacosta, mas não vi nada. No fim da tarde, a estrada mudou de direção, aproximando-se dasfalésias. Podia olhar para baixo, através de uma pequena mata, e ver o lugar onde antes tinhasido Forja. A tranquilidade que pairava ali era arrepiante. Nenhuma fumaça subia dascabanas, nenhum barco se movia em volta do porto. Sabia que a estrada me levaria exatamentea atravessar aquele lugar. Não era uma ideia que me agradava, mas o vínculo caloroso da vidade Ferreirinho me incitava a continuar.Ergui a cabeça ao ouvir o som arrastado de passos sobre a pedra. Apenas os reflexosadquiridos durante o meu longo treino com Hode me salvaram. Virei-me, com o cajado deprontidão, e varri o ar em torno de mim num círculo defensivo que acertou a mandíbula de umdeles. Os outros recuaram. Outros três. Todos Forjados, vazios como pedra. O que eu tinhagolpeado estava se remexendo e gritando no chão. Ninguém deu atenção a ele, com exceção demim. Dei outro golpe rápido nas costas dele. Gritou mais alto e se contorceu de dor. Mesmonaquela situação, a minha atitude me surpreendeu. Sabia que era sensato assegurar que uminimigo incapacitado se mantivesse incapacitado, mas também sabia que nunca teria dadopontapés em um cão da forma como dei naquele homem. Mas lutar contra esses Forjados eracomo lutar contra fantasmas. Não sentia a presença de nenhum deles; não tinha nenhumapercepção da dor que causava ao homem, nenhum eco da sua raiva ou medo. Era como bateruma porta com força, violência sem vítima, enquanto atacava-o outra vez, para ter a certeza deque ele não tentaria me agarrar enquanto eu saltava sobre ele, rumo a um espaço livre naestrada.Fiz o cajado dançar ao meu redor, mantendo os outros a distância. Eles estavam vestidoscom trapos e mal nutridos, mas ainda assim pensei que seriam capazes de me alcançar se eutentasse fugir. Já estava cansado, e eles eram como lobos esfomeados. Iriam me perseguir atéque eu fosse vencido pela fadiga. Um deles chegou perto demais, e eu dei um golpe rápido nopulso dele. A faca de peixe enferrujada caiu da sua mão e ele a encostou no peito, urrando.Como da vez anterior, os outros dois não prestaram nenhuma atenção no homem contundido.Recuei.– O que querem? – perguntei.– O que você tem? – disse um deles. A voz era rouca e hesitante, como se não tivesse sidousada durante muito tempo, e as palavras não tinham nenhuma entonação. Moveu-se lentamenteem torno de mim, num círculo amplo que me deixou girando. Homens mortos falando, penseicomigo mesmo, e não pude impedir o pensamento de ecoar pela minha mente.– Nada – arfei, manuseando o cajado para impedi-los de se aproximarem mais. – Não tenhonada para vocês. Não tenho dinheiro, não tenho comida, nada. Perdi tudo o que tinha naestrada.– Nada – ouvi o outro dizer, e pela primeira vez percebi que tinha sido uma mulher, tempos

atrás. Agora era esse fantoche oco e malvado, cujos olhos embaçados de repente seacenderam com cobiça enquanto dizia: – Capa. Quero a sua capa.Ela parecia satisfeita por ter formulado esse pensamento, e isso a deixou suficientementedescuidada para me dar a oportunidade de desferir um golpe no seu queixo. Olhou atônita parao ferimento e continuou a mancar na minha direção.– Capa – ecoou o outro. Por um momento, eles se entreolharam, percebendo estupidamentea sua rivalidade. – Eu. Minha – acrescentou.– Não. Eu te mato – respondeu ela calmamente. – E mato você também – lembrou-se demim e aproximou-se outra vez. Agitei o cajado na sua direção, mas ela saltou para trás etentou agarrá-lo quando passou ao seu lado. Virei-me bem a tempo de desferir um golpenaquele cujo pulso eu já tinha machucado. Então saltei por cima dele e desci correndo pelaestrada. Corri desajeitadamente, segurando o cajado com uma mão enquanto me debatia com afivela da capa com a outra. Por fim, a capa se soltou, e eu a deixei cair enquanto continuavacorrendo. Uma impressão de que as minhas pernas eram feitas de borracha me avisou que essaera a minha última cartada. Mas, alguns momentos depois, eles devem ter chegado até a capa,pois ouvi gritos raivosos e urros enquanto lutavam entre si por ela. Rezei para que aquilofosse suficiente para ocupar todos os quatro e continuei correndo. Cheguei a uma curva naestrada, não muito acentuada, mas suficiente para me tirar da linha de visão deles. Aindaassim, continuei a correr e, depois, a caminhar apressadamente enquanto podia, antes de ousarolhar para trás. A estrada reluzia, ampla e vazia, atrás de mim. Eu me esforcei para continuarem frente e, quando vi um lugar apropriado, abandonei a estrada.Encontrei um denso grupo de arbustos e forcei caminho pelo meio deles. Tremendo eexausto, eu me agachei no meio daqueles arbustos cheios de espinhos e me esforcei para tentarouvir qualquer sinal de perseguição. Tomei golinhos de água e tentei me acalmar. Não tinhatempo para esse atraso; tinha de voltar a Torre do Cervo, mas não ousei sair dali.Ainda é inconcebível para mim que eu tenha adormecido naquele lugar, mas foi o que fiz.Despertei aos poucos. Atordoado, tive certeza de que estava me recuperando de algumaferida grave ou de uma doença de longa duração. Meus olhos estavam pegajosos, a bocainchada e amarga. Forcei-me a abrir as pálpebras e olhei em volta, sentindo-me totalmentedesnorteado. A luz estava diminuindo, e nuvens cinzentas venciam a lua.Minha exaustão era tão grande que eu tinha me inclinado sobre os arbustos cheios deespinhos e dormido, apesar das inúmeras picadas. Libertei-me dos espinhos com muitadificuldade, deixando pedaços de roupa, cabelo e pele para trás. Saí do meu esconderijo tãocautelosamente quanto qualquer animal perseguido, não só sondando o mais longe que os meussentidos me permitiam, mas farejando também o ar e mirando tudo ao meu redor. Sabia queisso não me revelaria nenhum Forjado, mas esperava que, se eles estivessem por perto, osanimais da floresta os tivessem visto e reagido. Mas tudo estava quieto.Retomei cautelosamente a estrada. Era larga e estava vazia. Olhei uma vez para o céu erecomecei a caminhar em direção a Forja. Fui me mantendo sempre perto da beira da estrada,onde as sombras das árvores eram mais densas. Tentei me mover ao mesmo tempo depressa esilenciosamente, e não consegui fazer nenhuma das duas coisas tão bem quanto queria. Tinhaparado de pensar no que quer que fosse, exceto em ser cauteloso e na necessidade de voltarpara Torre do Cervo. A vida de Ferreirinho era o mais tênue vínculo na minha mente. Pensoque a única emoção ainda ativa em mim era o medo que me mantinha olhando para trás e

sangue; portanto, a faca o tinha atingido pelo menos uma vez. E a queda da escada? Tentei

deixar de lado a preocupação. Nunca tinha pensado que Bronco pudesse ser ferido daquela

maneira e, menos ainda, no que eu sentiria numa situação dessas. Não conseguia encontrar

nome para o estado de espírito em que eu me encontrava. Apenas vazio, pensei. Vazio e

cansaço.

Comi um pouco enquanto ia caminhando e enchi meu odre num riacho. Na metade da manhã

o céu se encheu de nuvens e choveu um pouco. No princípio da tarde, abruptamente, o céu se

desanuviou. Continuei andando. Tinha esperado encontrar algum tipo de tráfego na estrada da

costa, mas não vi nada. No fim da tarde, a estrada mudou de direção, aproximando-se das

falésias. Podia olhar para baixo, através de uma pequena mata, e ver o lugar onde antes tinha

sido Forja. A tranquilidade que pairava ali era arrepiante. Nenhuma fumaça subia das

cabanas, nenhum barco se movia em volta do porto. Sabia que a estrada me levaria exatamente

a atravessar aquele lugar. Não era uma ideia que me agradava, mas o vínculo caloroso da vida

de Ferreirinho me incitava a continuar.

Ergui a cabeça ao ouvir o som arrastado de passos sobre a pedra. Apenas os reflexos

adquiridos durante o meu longo treino com Hode me salvaram. Virei-me, com o cajado de

prontidão, e varri o ar em torno de mim num círculo defensivo que acertou a mandíbula de um

deles. Os outros recuaram. Outros três. Todos Forjados, vazios como pedra. O que eu tinha

golpeado estava se remexendo e gritando no chão. Ninguém deu atenção a ele, com exceção de

mim. Dei outro golpe rápido nas costas dele. Gritou mais alto e se contorceu de dor. Mesmo

naquela situação, a minha atitude me surpreendeu. Sabia que era sensato assegurar que um

inimigo incapacitado se mantivesse incapacitado, mas também sabia que nunca teria dado

pontapés em um cão da forma como dei naquele homem. Mas lutar contra esses Forjados era

como lutar contra fantasmas. Não sentia a presença de nenhum deles; não tinha nenhuma

percepção da dor que causava ao homem, nenhum eco da sua raiva ou medo. Era como bater

uma porta com força, violência sem vítima, enquanto atacava-o outra vez, para ter a certeza de

que ele não tentaria me agarrar enquanto eu saltava sobre ele, rumo a um espaço livre na

estrada.

Fiz o cajado dançar ao meu redor, mantendo os outros a distância. Eles estavam vestidos

com trapos e mal nutridos, mas ainda assim pensei que seriam capazes de me alcançar se eu

tentasse fugir. Já estava cansado, e eles eram como lobos esfomeados. Iriam me perseguir até

que eu fosse vencido pela fadiga. Um deles chegou perto demais, e eu dei um golpe rápido no

pulso dele. A faca de peixe enferrujada caiu da sua mão e ele a encostou no peito, urrando.

Como da vez anterior, os outros dois não prestaram nenhuma atenção no homem contundido.

Recuei.

– O que querem? – perguntei.

– O que você tem? – disse um deles. A voz era rouca e hesitante, como se não tivesse sido

usada durante muito tempo, e as palavras não tinham nenhuma entonação. Moveu-se lentamente

em torno de mim, num círculo amplo que me deixou girando. Homens mortos falando, pensei

comigo mesmo, e não pude impedir o pensamento de ecoar pela minha mente.

– Nada – arfei, manuseando o cajado para impedi-los de se aproximarem mais. – Não tenho

nada para vocês. Não tenho dinheiro, não tenho comida, nada. Perdi tudo o que tinha na

estrada.

– Nada – ouvi o outro dizer, e pela primeira vez percebi que tinha sido uma mulher, tempos

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