O Aprendiz De Assassino - Saga - Robin Hobb

27.02.2021 Views

sobre os joelhos e decidi dormir.Os meus sonhos foram confusos e desagradáveis. Majestoso se levantava diante de mim, eeu era outra vez uma criança dormindo no meio da palha. Ria-se e empunhava uma faca.Veracidade encolheu os ombros e me deu um sorriso de desculpas. Breu virou as costas paramim, desapontado. Moli sorriu para Jadão, que passava por mim, esquecendo-se de que euestava ali. Bronco me segurou pelo colarinho da camisa e me chacoalhou, dizendo para eu mecomportar como um homem e não como um animal. Mas eu continuei deitado na palha e numacamisa velha, mordiscando um osso. A carne era muito boa, e eu não conseguia pensar emmais nada.Estava muito confortável até que alguém abriu a porta do estábulo e a deixou escancarada.Uma corrente de ar desagradável começou a vir sorrateiramente através do chão do estábulo,deixando-me com frio, e eu olhei para cima com um rosnado. Cheirei Bronco e cerveja.Bronco veio lentamente através do escuro, resmungando: “Está tudo bem, Ferreirinho”,enquanto passava por mim. Baixei a cabeça enquanto ele começava a subir as escadas.De repente, houve um grito e homens rolando pelas escadas abaixo. Debatiam-se enquantocaíam. Fiquei em pé, num sobressalto, rosnando e latindo. Caíram em cima de mim. Uma botatentou me chutar e eu agarrei a perna, cravando nela os meus dentes e apertei com força amandíbula. Abocanhei mais bota e calça do que carne, mas ele soltou um silvo de raiva e dor,e me atacou.A faca acertou-me de lado.Cerrei os dentes com mais força e aguentei, rosnando. Outros cães tinham acordado eestavam latindo, os cavalos batendo os cascos dentro das baias. Garoto, garoto!, chamei porajuda. Senti que ele estava comigo, mas não veio. O intruso me deu um pontapé, mas não olarguei. Bronco jazia na palha e eu sentia o cheiro do seu sangue. Não se mexia. Ouvi a velhaRaposa se atirar de encontro à porta no andar de cima, tentando em vão alcançar o dono. Afaca me penetrou uma vez, e outra, e outra. Gritei pelo garoto uma última vez, e então nãoconsegui mais aguentar. Fui atirado pela perna que me dava pontapés, indo bater contra alateral de uma baia. Estava me afundando, sangue na minha boca e narinas. Pés correndo. Dorna escuridão. Arrastei-me para mais perto de Bronco. Empurrei o focinho embaixo da suamão. Ele não se mexeu. Vozes e luzes vindo, vindo, vindo...Acordei na encosta escurecida do monte, agarrando o cajado com tanta força que as minhasmãos estavam dormentes. Nem por um momento pensei que aquilo tivesse sido um sonho. Nãopodia deixar de sentir a faca entre as costelas e o sabor do sangue na boca. Como o refrão deuma canção macabra, as memórias se repetiam uma atrás da outra, a corrente de ar frio, a faca,a bota, o sabor do sangue do meu inimigo na boca e o sabor do meu próprio sangue. Esforceimepara compreender o que Ferreirinho tinha visto. Alguém estava no topo das escadas deBronco, à espera dele. Alguém com uma faca. E Bronco tinha caído, e Ferreirinho tinhafarejado sangue...Levantei-me e juntei as minhas coisas. A presença de Ferreirinho era esparsa, debilitada,pequena e calorosa na minha mente. Fraca, mas ainda presente. Sondei a mente dele comcuidado e parei quando percebi o quanto lhe custaria me sentir. Quieto. Fique quieto. Estou acaminho. Estava frio e os meus joelhos tremiam, mas o suor escorria pelas minhas costas.Nenhuma vez questionei o que tinha de fazer. Desci o monte até a estrada de terra batida. Erauma pequena estrada de mercadores, um caminho para mascates, e eu sabia que, se seguisse

nele, cruzaria, em algum momento, a estrada da costa. E eu a seguiria, encontraria a estrada dacosta e faria o meu próprio caminho de volta para casa. E, com a ajuda de Eda, chegaria atempo de ajudar Ferreirinho. E Bronco.Caminhei, recusando-me a correr. Uma marcha firme me levaria longe mais depressa doque uma corrida louca pela escuridão. A noite era clara, e o caminho reto. Considerei por umavez o fato de que estava acabando para sempre com qualquer oportunidade de provar queconseguia usar o Talento. Tudo o que tinha dedicado a ele, tempo, esforço, dor, tudodesperdiçado. Mas teria sido impossível ficar sentado e esperar outro dia para que Galenotentasse me alcançar. Para abrir a minha mente a um possível toque do Talento de Galeno,teria de limpá-la do laço tênue que mantinha com Ferreirinho. E isso eu não estava disposto afazer. Quando punha tudo na balança, o Talento tinha muito menos peso que Ferreirinho. OuBronco.Por que Bronco? Comecei a pensar. Quem o odiaria tanto a ponto de armar uma emboscadapara ele? E bem na porta dos seus próprios aposentos. Tão claramente como se eu mereportasse a Breu, comecei a juntar os fatos. Alguém que o conhecia suficientemente bem parasaber onde vivia; isso excluía alguma ofensa ocasional cometida numa taberna da Cidade deTorre do Cervo. Alguém que tinha trazido uma faca; isso excluía alguém que quisesse apenasespancá-lo. A faca era afiada, e o homem que a tinha empunhado sabia usá-la. Estremeci outravez com a recordação.Eram esses os fatos. Cautelosamente, comecei a construir hipóteses sobre eles. Alguém queconhecia os hábitos de Bronco e que tinha uma séria necessidade de vingança contra ele, sériao suficiente para justificar assassinato. Os meus passos tornaram-se de repente mais lentos.Por que Ferreirinho não tinha percebido antes o homem que esperava lá em cima? Por queRaposa não tinha começado a latir do outro lado da porta? Passar despercebido por cães nopróprio território indicava alguém com prática de infiltração.Galeno.Não. Eu apenas queria que fosse Galeno. Recusei-me a ir direto para essa conclusão.Fisicamente, Galeno não podia se equiparar a Bronco, e ele sabia disso. Nem sequer com umafaca, no escuro, com Bronco meio bêbado e pego de surpresa. Não. Galeno poderia quererfazer isso, mas não faria. Não ele próprio.Poderia ter enviado outra pessoa? Refleti sobre essa hipótese e concluí que não sabia.Pense mais. Bronco não era um homem paciente. Galeno era o inimigo que ele tinha feito maisrecentemente, mas não o único. Organizei os fatos várias vezes, tentando chegar a umaconclusão sólida. Mas simplesmente não havia indícios suficientes para construir uma.Depois de um bom tempo, cheguei a um riacho e bebi um pouco de água. Recomecei minhacaminhada. O bosque se tornava mais denso, e a lua estava a maior parte do tempo ocultapelas árvores que delineavam a estrada. Não voltei para trás. Forcei-me a seguir em frente,até que a minha trilha fluiu para a estrada da costa como um afluente alimenta um rio. Segui emdireção do sul, e a estrada mais larga brilhava como prata ao luar.Andei e refleti a noite toda. À medida que os primeiros tentáculos da manhã começaram arecolorir a paisagem, eu me senti incrivelmente exausto, mas não menos determinado. A minhapreocupação era um fardo que não podia descansar. Agarrei com força o tênue vínculo decalor que me informava que Ferreirinho ainda estava vivo, e comecei a pensar em Bronco.Não tinha como saber o quão seriamente ele tinha sido ferido. Ferreirinho tinha cheirado o seu

sobre os joelhos e decidi dormir.

Os meus sonhos foram confusos e desagradáveis. Majestoso se levantava diante de mim, e

eu era outra vez uma criança dormindo no meio da palha. Ria-se e empunhava uma faca.

Veracidade encolheu os ombros e me deu um sorriso de desculpas. Breu virou as costas para

mim, desapontado. Moli sorriu para Jadão, que passava por mim, esquecendo-se de que eu

estava ali. Bronco me segurou pelo colarinho da camisa e me chacoalhou, dizendo para eu me

comportar como um homem e não como um animal. Mas eu continuei deitado na palha e numa

camisa velha, mordiscando um osso. A carne era muito boa, e eu não conseguia pensar em

mais nada.

Estava muito confortável até que alguém abriu a porta do estábulo e a deixou escancarada.

Uma corrente de ar desagradável começou a vir sorrateiramente através do chão do estábulo,

deixando-me com frio, e eu olhei para cima com um rosnado. Cheirei Bronco e cerveja.

Bronco veio lentamente através do escuro, resmungando: “Está tudo bem, Ferreirinho”,

enquanto passava por mim. Baixei a cabeça enquanto ele começava a subir as escadas.

De repente, houve um grito e homens rolando pelas escadas abaixo. Debatiam-se enquanto

caíam. Fiquei em pé, num sobressalto, rosnando e latindo. Caíram em cima de mim. Uma bota

tentou me chutar e eu agarrei a perna, cravando nela os meus dentes e apertei com força a

mandíbula. Abocanhei mais bota e calça do que carne, mas ele soltou um silvo de raiva e dor,

e me atacou.

A faca acertou-me de lado.

Cerrei os dentes com mais força e aguentei, rosnando. Outros cães tinham acordado e

estavam latindo, os cavalos batendo os cascos dentro das baias. Garoto, garoto!, chamei por

ajuda. Senti que ele estava comigo, mas não veio. O intruso me deu um pontapé, mas não o

larguei. Bronco jazia na palha e eu sentia o cheiro do seu sangue. Não se mexia. Ouvi a velha

Raposa se atirar de encontro à porta no andar de cima, tentando em vão alcançar o dono. A

faca me penetrou uma vez, e outra, e outra. Gritei pelo garoto uma última vez, e então não

consegui mais aguentar. Fui atirado pela perna que me dava pontapés, indo bater contra a

lateral de uma baia. Estava me afundando, sangue na minha boca e narinas. Pés correndo. Dor

na escuridão. Arrastei-me para mais perto de Bronco. Empurrei o focinho embaixo da sua

mão. Ele não se mexeu. Vozes e luzes vindo, vindo, vindo...

Acordei na encosta escurecida do monte, agarrando o cajado com tanta força que as minhas

mãos estavam dormentes. Nem por um momento pensei que aquilo tivesse sido um sonho. Não

podia deixar de sentir a faca entre as costelas e o sabor do sangue na boca. Como o refrão de

uma canção macabra, as memórias se repetiam uma atrás da outra, a corrente de ar frio, a faca,

a bota, o sabor do sangue do meu inimigo na boca e o sabor do meu próprio sangue. Esforceime

para compreender o que Ferreirinho tinha visto. Alguém estava no topo das escadas de

Bronco, à espera dele. Alguém com uma faca. E Bronco tinha caído, e Ferreirinho tinha

farejado sangue...

Levantei-me e juntei as minhas coisas. A presença de Ferreirinho era esparsa, debilitada,

pequena e calorosa na minha mente. Fraca, mas ainda presente. Sondei a mente dele com

cuidado e parei quando percebi o quanto lhe custaria me sentir. Quieto. Fique quieto. Estou a

caminho. Estava frio e os meus joelhos tremiam, mas o suor escorria pelas minhas costas.

Nenhuma vez questionei o que tinha de fazer. Desci o monte até a estrada de terra batida. Era

uma pequena estrada de mercadores, um caminho para mascates, e eu sabia que, se seguisse

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