Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
ocupações tradicionais enquanto pescadores e comerciantes para se tornarem lavradores e
caçadores longe das ameaças vindas do mar. Era notório que a quantidade de vagabundos na
cidade estava aumentando. Um Forjado veio à própria Cidade de Torre do Cervo e
perambulou pelas ruas, tão intocável como um louco, enquanto se servia do que quer que lhe
apetecesse das bancas do mercado. Antes que um segundo dia tivesse se passado,
desapareceu, e os rumores mais sinistros diziam que devíamos esperar que o corpo fosse
trazido pelo mar à praia. Outros rumores diziam que uma esposa para Veracidade tinha sido
encontrada entre os povos da montanha. Alguns diziam que era para garantir o acesso às
passagens; outros, que não podíamos ter um inimigo potencial atrás de nós, quando em toda a
orla marítima tínhamos de temer os Navios Vermelhos. E havia ainda um burburinho de que
nem tudo ia bem com o Príncipe Veracidade. Alguns diziam que ele estava cansado e doente;
outros faziam piada dizendo que se tratava apenas de um noivo nervoso e preocupado. Alguns
sugeriam que ele andava na bebedeira e que era visto apenas de dia, quando a sua dor de
cabeça era pior.
Descobri que a minha preocupação em relação a estes últimos boatos era mais profunda do
que teria esperado. Ninguém da realeza nunca tinha prestado muita atenção em mim, pelo
menos de uma forma pessoal. Sagaz supervisionava a minha educação e o meu conforto e
tinha, há muito tempo, comprado a minha lealdade, de modo que agora eu era seu, sem sequer
pensar em qualquer alternativa. Majestoso me desprezava, e havia muito tempo eu tinha
aprendido a evitar o olhar raivoso dele, as pancadas casuais e os empurrões escondidos que
em outra época já tinham me feito tropeçar, quando eu ainda era garotinho. Mas Veracidade
sempre tinha sido bondoso comigo, de um jeito distraído, e amava os seus cães, cavalo e
falcões de uma forma que eu conseguia compreender. Queria vê-lo firme e orgulhoso no seu
casamento, e esperava um dia me colocar atrás do seu trono da mesma maneira que Breu se
colocava atrás do trono de Sagaz. Esperava que estivesse bem, e, contudo, não tinha nada que
eu pudesse fazer se ele não estivesse, nem mesmo havia um jeito de poder vê-lo. Mesmo se
tivéssemos horários semelhantes, os círculos em que convivíamos eram raramente os mesmos.
Ainda não desfrutávamos exatamente da plena primavera quando Galeno nos fez o seu
comunicado. O resto da torre estava ocupado com as preparações para a Festa da Primavera.
As bancas no mercado iam ser lixadas e pintadas novamente com cores vivas, e os ramos das
árvores iam ser trazidos para dentro e gentilmente deflorados de modo que as flores e
folhinhas pudessem embelezar a mesa do banquete na Noite de Primavera. Mas legumes tenros
e pão de ló coberto com sementes de carris não eram o que Galeno tinha em mente para nós,
nem espetáculos de marionetes e danças de caça. Em vez disso, com a chegada da nova
estação, seríamos testados, para que provássemos ser merecedores.
– Dispensados – repetia ele, e se estivesse condenando à morte os descartados, a atenção
dos outros pupilos não teria sido maior. Entorpecido, tentei compreender o que significaria se
falhasse. Não acreditava minimamente que ele me testaria com justiça, ou que eu conseguiria
passar no teste mesmo se ele agisse assim.
– Vocês irão formar um círculo, aqueles que provarem estar à altura. Um círculo como esse
nunca foi visto antes, assim espero. No auge da Festa da Primavera, eu mesmo apresentarei
vocês ao nosso rei, e ele verá a maravilha que criei. Como vocês chegaram até aqui comigo,
sabem que não deixarei que me envergonhem diante dele. E assim, eu mesmo testarei vocês, e
testarei até o limite de cada um, para ter certeza de que a arma que colocarei nas mãos do meu