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podia compelir Augusto a se levantar, a fazer uma reverência, a andar. Mas na vez seguinte ele
estaria ali, olhando para mim, desafiando-me a contatá-lo.
E ninguém parecia capaz de alcançar o meu interior.
– Baixe a guarda, baixe os muros – ordenava-me Galeno com raiva, parado na minha frente,
tentando em vão me comunicar a mais simples direção ou sugestão. Eu sentia apenas o mais
leve dos toques do seu Talento contra mim. Mas não podia deixá-lo entrar na minha mente da
mesma forma que não podia ficar complacente enquanto um homem enfiava uma espada entre
as minhas costelas. Por mais que eu quisesse me forçar, fugia ao seu toque, físico ou mental, e
não conseguia, de jeito nenhum, sentir os toques dos meus colegas.
Eles progrediam diariamente, enquanto eu os observava e me debatia para dominar os
princípios mais básicos. Houve um dia em que Augusto olhava para a página de um livro e, do
outro lado do telhado, um colega a lia em voz alta, enquanto um conjunto de dois pares jogava
uma partida de xadrez em que os que comandavam os movimentos não podiam ver fisicamente
o tabuleiro. E Galeno estava contente com todos, exceto comigo. Todos os dias nos mandava
embora depois de um toque, um toque que eu raramente sentia. E todos os dias eu era o último
a sair e ele me lembrava friamente que desperdiçava o seu tempo com um bastardo apenas
porque o rei tinha lhe ordenado.
A primavera estava chegando e Ferreirinho tinha crescido de filhote para cão. Fuligem
pariu a sua cria enquanto eu frequentava minhas aulas – uma bela potranca, cujo pai era o
garanhão de Veracidade. Vi Moli uma vez, e passeamos juntos pelo mercado quase sem falar.
Havia uma nova banca montada, com um homem rude que vendia pássaros e animais, todos
capturados em estado selvagem e enjaulados por ele. Tinha corvos, pardais, uma andorinha e
uma jovem raposa tão fraca por causa de vermes que quase não conseguia ficar em pé. A
morte a libertaria mais cedo do que qualquer comprador, e mesmo que eu tivesse dinheiro
suficiente para comprá-la, ela tinha chegado a um estado em que os remédios para os vermes a
envenenariam tanto quanto os parasitas. Fiquei enjoado e, por isso, parei ali, sondando a
mente dos pássaros com sugestões de como bicar um pedaço específico de metal brilhante que
abriria as portas das gaiolas. Mas Moli pensou que eu estava olhando apenas os próprios
animais, e eu a senti se tornar mais fria e mais distante de mim do que qualquer outra vez.
Enquanto a acompanhava até a casa de velas, Ferreirinho choramingava como um mendigo
pela atenção dela, e assim ganhou de Moli um afago e uma pancadinha na cabeça antes de
partirmos. Invejei dele a capacidade de choramingar tão bem. O meu choramingo parecia ser
inaudível.
Com os ares primaveris, todos no porto marítimo se prepararam, pois em breve o tempo
seria propício aos ataques dos salteadores. Eu comia com os guardas todas as noites e ouvia
os rumores com atenção. Os Forjados tinham se tornado assaltantes nas nossas estradas, e os
relatos das perversões e depredações deles tomavam conta das conversas das tabernas. Na
condição de predadores, eram mais desprovidos de decência e misericórdia do que qualquer
animal selvagem. Era fácil esquecer que um dia tinham sido humanos e detestá-los com uma
maldade nunca antes vista.
O medo de ser Forjado aumentou proporcionalmente. Os mercados ofereciam bolinhas de
veneno mergulhadas em doce para as mães darem aos filhos, caso a família fosse capturada
pelos salteadores. Havia rumores de que alguns habitantes das vilas costeiras tinham colocado
todos os pertences em carroças e tinham se mudado para o interior, abdicando de suas