O Aprendiz De Assassino - Saga - Robin Hobb
as prateleiras cheias de coisas na loja, para mostrar a ela o seu descontentamento por ela tersido negligente. Esboçou um estranho sorrisinho enquanto me dizia isso, como se ocomportamento dele se tornasse menos horrível caso conseguíssemos achá-lo divertido. Nãoconsegui sorrir, e ela desviou o olhar.Ajudei-a a vestir a capa e partimos, subindo pela colina em direção contrária ao vento. Derepente, aquela situação me pareceu uma metáfora de toda a minha vida. À porta da loja, elame surpreendeu ao me dar um abraço e um beijo no canto do queixo, um abraço tão breve quefoi quase como se alguém esbarrasse em mim no mercado.– Novato... – disse ela, e então: – Muito obrigada. Por compreender.Então desapareceu para dentro da loja e fechou a porta atrás de si, deixando-me gelado eperplexo. Tinha me agradecido por compreendê-la num momento em que eu me sentia maisisolado do que nunca, dela e de todas as outras pessoas. Durante a subida de volta à torre,Ferreirinho foi tagarelando sobre todos os perfumes que tinha cheirado nela e de como ela otinha coçado exatamente no lugar aonde ele nunca conseguia chegar, em frente às orelhas, e dobiscoito doce que ela tinha lhe dado para comer na casa de chá.No meio da tarde, voltamos ao estábulo. Fiz alguns trabalhos e, em seguida, voltei ao quartode Bronco, onde Ferreirinho e eu adormecemos. Acordei com Bronco em pé ao meu lado, asobrancelha ligeiramente franzida.– De pé, vamos dar uma olhada em você – ordenou.Levantei-me devagar e fiquei imóvel enquanto ele examinava os meus ferimentos com asmãos hábeis. Ficou contente com o estado da minha mão e me disse que não precisava maisdeixá-la imobilizada a partir de agora, mas que era para manter as ataduras em torno dascostelas e voltar toda noite para ajustá-las.– E quanto ao resto das feridas, mantenha-as limpas e secas, e não coce as crostas. Sealguma delas começar a inflamar, venha me ver.Encheu um pequeno pote com um unguento que aliviava as dores musculares e o deu paramim; deduzi que ele esperava que eu partisse.Fiquei parado segurando o pequeno pote de medicamento. Uma tristeza terrível me invadiu,e contudo não conseguia encontrar palavras para expressá-la. Bronco olhou para mim, franziua sobrancelha e virou as costas.– Agora pare com isso – ele me ordenou, zangado.– O quê? – perguntei.– Às vezes você olha para mim com os olhos do meu senhor – disse com tranquilidade e,em seguida, assumindo um tom tão severo quanto antes: – E, bem, você ia fazer o quê?Esconder-se no estábulo para o resto da vida? Não. Você tem de voltar. Tem de voltar,levantar a cabeça e fazer as suas refeições entre as pessoas da torre, dormir no seu próprioquarto e viver a sua própria vida. Sim, e terminar essas suas malditas lições do Talento.As primeiras ordens pareciam difíceis, mas a última, esta eu sabia bem que era impossível.– Não posso – disse, não acreditando no quão estúpido ele era. – Galeno não me deixariavoltar ao grupo. E, mesmo que deixasse, nunca poderia recuperar todas as lições que perdi. Jáfalhei nisso, Bronco. Falhei e está feito, e preciso encontrar outra coisa para fazer. Gostariade aprender a cuidar dos falcões, por favor.Eu me ouvi dizer essa última frase com alguma surpresa, pois na verdade aquilo nunca tinhapassado pela minha cabeça antes. A resposta de Bronco foi tão ou mais estranha.
– Não pode, porque os falcões não gostam de você. Você é muito quente e se mete demaisna vida dos outros. Agora me ouça. Você não falhou, seu idiota. Galeno tentou fazê-lo desistir.Se não voltar, vai deixá-lo ganhar. Você tem de voltar e forçá-lo a te ensinar. Mas – e aqui sevirou para mim, e a ira nos seus olhos estava direcionada para os meus – não tem de ficarquieto como um burro de carga enquanto ele te bate. Você tem direito, um direito que é denascimento, ao tempo e aos conhecimentos dele. Force-o a te dar o que é seu. E não fuja.Ninguém nunca ganhou o que quer que fosse fugindo.Fez uma pausa, ia começar a dizer mais, mas parou.– Perdi muitas lições. Nunca vou...– Você não perdeu coisa nenhuma – disse Bronco obstinadamente. Virou a cara para mim, eeu não soube como interpretar o seu tom de voz quando ele acrescentou: – Não houve liçõesdesde que você foi embora. Você será capaz de recomeçar exatamente onde parou.– Mas eu não quero voltar.– Não desperdice o meu tempo com discussões – disse-me com a voz firme. – Não ousetestar desse jeito a minha paciência. Já te disse o que você vai fazer. Faça.De repente, eu tinha cinco anos outra vez, e um homem numa cozinha calava uma multidãocom um olhar. Tremi e me encolhi. De repente, era mais fácil enfrentar Galeno do que desafiarBronco. Mesmo quando acrescentou:– E terá de deixar o cachorro comigo até que as lições acabem. Estar fechado num quarto odia inteiro não é vida para um cão. O pelo dele vai estragar e os músculos não sedesenvolverão como devem. Mas é melhor que venha aqui todas as noites para tratar dele e deFuligem, ou terá de se ver comigo. E estou pouco me lixando para o que Galeno vai dizersobre isso também.E assim me mandou embora. Comuniquei Ferreirinho de que devia ficar com Bronco, o queele acatou com uma serenidade que me surpreendeu tanto quanto magoou os meus sentimentos.Desanimado, peguei o meu pote de unguento e fui me arrastando de volta à torre. Fui até acozinha buscar comida, pois não tinha coragem de encarar ninguém à mesa, e subi para oquarto. Estava frio e escuro, sem fogo na lareira, nem velas nos suportes, e os juncosespalhados pelo chão fediam. Fui buscar velas e lenha, fiz uma fogueira e, enquanto estava àespera de que as paredes e o chão de pedra aquecessem, ocupei-me removendo os juncosvelhos do chão. Então, como Renda tinha me aconselhado, esfreguei bem o quarto, com águaquente e vinagre. Sem perceber, tinha arranjado um vinagre aromatizado com estragão e,portanto, quando terminei, o quarto cheirava a essa erva. Exausto, eu me joguei na cama eadormeci perguntando a mim mesmo por que é que nunca tinha descoberto como abrir a portaescondida que dava para os aposentos de Breu. Não tinha dúvidas de que teria me mandadoembora, pois era um homem de palavra e não interferiria até que Galeno não quisesse maissaber de mim. Ou até descobrir que eu não queria mais saber de Galeno.As velas do Bobo me acordaram. Eu estava completamente desorientado em termos detempo e lugar até que ele disse:– Você tem tempo só para se lavar e comer, e ainda ser o primeiro a chegar ao topo datorre.Trazia para mim água quente numa jarra de boca larga, e pãezinhos quentes dos fornos dacozinha.– Não vou.
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– Não pode, porque os falcões não gostam de você. Você é muito quente e se mete demais
na vida dos outros. Agora me ouça. Você não falhou, seu idiota. Galeno tentou fazê-lo desistir.
Se não voltar, vai deixá-lo ganhar. Você tem de voltar e forçá-lo a te ensinar. Mas – e aqui se
virou para mim, e a ira nos seus olhos estava direcionada para os meus – não tem de ficar
quieto como um burro de carga enquanto ele te bate. Você tem direito, um direito que é de
nascimento, ao tempo e aos conhecimentos dele. Force-o a te dar o que é seu. E não fuja.
Ninguém nunca ganhou o que quer que fosse fugindo.
Fez uma pausa, ia começar a dizer mais, mas parou.
– Perdi muitas lições. Nunca vou...
– Você não perdeu coisa nenhuma – disse Bronco obstinadamente. Virou a cara para mim, e
eu não soube como interpretar o seu tom de voz quando ele acrescentou: – Não houve lições
desde que você foi embora. Você será capaz de recomeçar exatamente onde parou.
– Mas eu não quero voltar.
– Não desperdice o meu tempo com discussões – disse-me com a voz firme. – Não ouse
testar desse jeito a minha paciência. Já te disse o que você vai fazer. Faça.
De repente, eu tinha cinco anos outra vez, e um homem numa cozinha calava uma multidão
com um olhar. Tremi e me encolhi. De repente, era mais fácil enfrentar Galeno do que desafiar
Bronco. Mesmo quando acrescentou:
– E terá de deixar o cachorro comigo até que as lições acabem. Estar fechado num quarto o
dia inteiro não é vida para um cão. O pelo dele vai estragar e os músculos não se
desenvolverão como devem. Mas é melhor que venha aqui todas as noites para tratar dele e de
Fuligem, ou terá de se ver comigo. E estou pouco me lixando para o que Galeno vai dizer
sobre isso também.
E assim me mandou embora. Comuniquei Ferreirinho de que devia ficar com Bronco, o que
ele acatou com uma serenidade que me surpreendeu tanto quanto magoou os meus sentimentos.
Desanimado, peguei o meu pote de unguento e fui me arrastando de volta à torre. Fui até a
cozinha buscar comida, pois não tinha coragem de encarar ninguém à mesa, e subi para o
quarto. Estava frio e escuro, sem fogo na lareira, nem velas nos suportes, e os juncos
espalhados pelo chão fediam. Fui buscar velas e lenha, fiz uma fogueira e, enquanto estava à
espera de que as paredes e o chão de pedra aquecessem, ocupei-me removendo os juncos
velhos do chão. Então, como Renda tinha me aconselhado, esfreguei bem o quarto, com água
quente e vinagre. Sem perceber, tinha arranjado um vinagre aromatizado com estragão e,
portanto, quando terminei, o quarto cheirava a essa erva. Exausto, eu me joguei na cama e
adormeci perguntando a mim mesmo por que é que nunca tinha descoberto como abrir a porta
escondida que dava para os aposentos de Breu. Não tinha dúvidas de que teria me mandado
embora, pois era um homem de palavra e não interferiria até que Galeno não quisesse mais
saber de mim. Ou até descobrir que eu não queria mais saber de Galeno.
As velas do Bobo me acordaram. Eu estava completamente desorientado em termos de
tempo e lugar até que ele disse:
– Você tem tempo só para se lavar e comer, e ainda ser o primeiro a chegar ao topo da
torre.
Trazia para mim água quente numa jarra de boca larga, e pãezinhos quentes dos fornos da
cozinha.
– Não vou.