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que isso bastava, que era uma plenitude, uma alegria. Fechei os olhos.
A lua já estava alta quando Bronco me virou. O Bobo segurava uma tocha, e Ferreirinho
dançava e saltava em torno dos seus pés. Bronco me pegou e me ergueu, como se eu ainda
fosse a criança que tinha acabado de ser deixada a cargo dele. Vi de relance o seu rosto
escuro, mas não consegui ler nada nele. Carregou-me pela longa escadaria de pedra abaixo,
com o Bobo iluminando o caminho. Levou-me para fora da torre, de volta ao estábulo, rumo
ao seu quarto. Ali o Bobo nos deixou – a mim, Bronco e Ferreirinho –, e não me lembro de
nenhuma palavra ter sido pronunciada. Bronco me instalou na cama dele e a arrastou para
perto do fogo. Com o calor veio uma grande dor, e deixei o meu corpo ao encargo de Bronco,
a alma a Ferreirinho, e abandonei a minha consciência por um longo período.
Abri os olhos e era noite. Não sabia quanto tempo tinha passado. Bronco estava sentado ao
meu lado, quieto, a postos, nem sequer acomodado na cadeira. Senti o aperto das ataduras nas
costelas. Ergui uma mão para tocá-las, mas fiquei surpreso ao notar que tinha dois dedos
presos a uma tala. Os olhos de Bronco seguiram o meu movimento.
– Estavam inchados por algo mais do que frio. Inchados demais para eu poder dizer se
havia fraturas, ou apenas torções. Coloquei-os numa tala como medida de precaução. Creio
que eram apenas torções. Se estivessem quebrados, a dor que eu teria causado em você ao
mexer neles o teria acordado até no estado em que te encontrei.
Falava num tom calmo, como se estivesse me dizendo que tinha eliminado um novo cão com
vermes como precaução contra um contágio. Da mesma forma que a sua voz firme e o toque
calmo teriam funcionado com um animal furioso, funcionaram comigo. Relaxei, pensando que
se ele estava calmo era porque não havia problemas maiores. Pôs um dedo debaixo das
ataduras que sustentavam as minhas costelas, verificando se não estariam muito apertadas.
– O que aconteceu? – perguntou, e virou-se para pegar uma xícara de chá enquanto falava,
como se a pergunta e a resposta não fossem de grande importância.
Forcei-me a recordar as últimas semanas, tentando encontrar uma maneira de explicar. Os
acontecimentos dançavam na minha mente, fugiam-me. Lembrei-me apenas da derrota.
– Galeno me testou – eu disse lentamente. – Eu falhei. Ele me puniu.
Com essas palavras, uma onda de tristeza, vergonha e culpa caiu sobre mim, levando com
ela o breve conforto que eu tinha obtido do ambiente familiar. Ao lado da lareira, Ferreirinho,
adormecido, acordou abruptamente e sentou-se. Instintivamente, acalmei-o antes que
começasse a ganir. Deite-se. Descanse. Está tudo bem. Para meu alívio, ele fez o que eu pedi.
Para meu alívio ainda maior, Bronco parecia não ter percebido o que tinha acabado de
acontecer entre nós. Ofereceu-me a xícara.
– Beba isto. Você precisa de água, e as ervas vão acalmar a dor e deixá-lo dormir. Beba
tudo de uma vez.
– O cheiro é ruim – disse-lhe, e ele fez que sim com a cabeça, e segurou a xícara em torno
da qual as minhas mãos feridas não conseguiam se fechar. Bebi tudo e me deitei.
– Foi só isso? – perguntou-me cuidadosamente, e eu sabia do que ele estava falando. – Ele
te testou sobre uma coisa que te ensinou e você não passou no teste... e ele fez isso com você?
– Não consegui fazer o que ele pediu. Não tive a... autodisciplina. E por isso me puniu.
Os detalhes fugiam à minha memória. A vergonha me inundava, afogando-me em miséria.
– A autodisciplina não se ensina com espancamentos capazes de deixar um rapaz meiomorto.