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que tentasse usar o Talento e caísse no feitiço do prazer que o Talento oferecia. Esse homem
perderia a cabeça, uma criança, sem fala, sem visão, sujando-se, esquecendo-se de pensar,
esquecendo-se mesmo de comer e beber, até cair morto. Um homem assim era pior que ser
repugnante.
Eu era um desses. E me afundei na minha vergonha. Desamparado, comecei a soluçar. Eu
bem que merecia o tratamento que ele tinha me dado. Merecia pior. Apenas uma piedade
errônea tinha impedido Galeno de me matar. Havia desperdiçado o seu tempo, recebido a
cuidadosa instrução que tinha me dado e transformado tudo em autoindulgência egoísta. Fugi
de mim mesmo, retirando-me mais e mais para dentro, mas encontrando apenas nojo e ódio
por mim mesmo espalhado por todos os pensamentos. Era melhor estar morto. Se me atirasse
do telhado da torre, não seria um ato suficiente para apagar a minha vergonha, mas pelo menos
não precisaria mais estar consciente dela. Fiquei quieto chorando.
Os outros partiram. À medida que cada um passava por mim, oferecia-me uma palavra, um
cuspe, um pontapé ou um soco. Quase não notei. Eu mesmo me rejeitei mais completamente do
que eles poderiam. Por fim, todos já tinham partido, e havia apenas Galeno debruçado sobre
mim. Deu-me um toque com o pé, mas fui incapaz de responder. Subitamente, ele estava por
todos os lados, em cima, embaixo, em volta e dentro de mim, e eu não podia negá-lo.
– Está vendo, bastardo – disse ele ironica e calmamente. – Tentei dizer a eles que você não
era merecedor. Tentei dizer a eles que o treino te mataria. Mas você não ouviu. Você se
esforçou para usurpar o que foi dado a outros. Mais uma vez, eu estava certo. Bem. Nada
disso foi tempo perdido se serviu para nos vermos livres de você.
Não sei quando ele saiu. Depois de algum tempo percebi que era a lua que me olhava, e não
Galeno. Rolei e fiquei de barriga para baixo. Não podia me levantar, mas podia rastejar. Não
podia fazer depressa, nem sequer levantando o estômago completamente do chão, mas podia
me arrastar. Com um propósito único, comecei a fazer o caminho em direção ao muro mais
baixo. Pensei que podia me arrastar para um banco e daí para cima do muro. E depois para
baixo. Acabar com isso.
Mas era uma longa travessia, no frio e no escuro. Em algum lugar, podia ouvir um
choramingo e me detestei por isso também. Mas enquanto ia me esfolando pelo chão, o gemido
crescia, como uma faísca à distância se torna fogo à medida que nos aproximávamos. Não
permitia que eu o ignorasse. Crescia em intensidade na minha mente, um lamento contra o
destino, uma pequena voz de resistência que me proibia de morrer, que negava o meu fracasso.
Era quente e luminosa, e foi crescendo e crescendo, enquanto eu tentava identificar a sua fonte.
Parei.
Fiquei deitado e quieto.
Estava dentro de mim. Quanto mais o procurava, mais forte se tornava. Amava-me. Amavame
mesmo se eu não conseguisse, se não quisesse amar a mim mesmo. Amava-me mesmo se
eu o detestasse. Fincara os dentes minúsculos na minha alma e agarrava-a de tal maneira que
eu não podia continuar rastejando. Quando tentava, soltava um uivo de desespero, queimandome,
proibindo-me de quebrar uma confiança tão sagrada.
Era Ferreirinho.
Ele chorava com as minhas dores, física e mental. Quando parei de tentar alcançar o muro,
entrou numa exultação de alegria, uma celebração do nosso triunfo. E tudo o que pude fazer
para recompensá-lo foi ficar deitado e quieto e deixar de tentar me destruir. Ele me assegurou