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Não sei o que os outros sentiam; no meu coração, não havia mais do que ódio por ele, mas era
um ódio tão intenso que me impelia contra a ideia de ser destruído por esse homem. Depois de
dias de abuso, obter uma só palavra involuntária de reconhecimento da parte dele era como
uma torrente de cumprimentos de qualquer outro mestre. Dias sendo desprezado deveriam ter
me deixado insensível à humilhação. Em vez disso, acabei acreditando em muito do que ele
dizia e tentava futilmente mudar.
Competíamos constantemente uns com os outros pela atenção dele. Alguns emergiram
claramente como favoritos. Augusto era um deles, e ouvíamos com frequência que devíamos
imitá-lo. Eu era claramente o mais detestado. E, contudo, isso não me impediu de ansiar por
me destacar diante dele. Depois da primeira vez, nunca fui o último a chegar ao topo da torre.
Nunca vacilava diante dos golpes dele. Quem também não fazia isso era Serena, que
partilhava comigo a distinção de ser detestada. Serena tornou-se a seguidora mais fervorosa
de Galeno, nunca soltando uma palavra de crítica em relação a ele desde aquele primeiro
açoite. E, apesar disso, ele constantemente achava defeitos nela, criticava-a, humilhava-a e
açoitava-a com muito mais frequência do que qualquer outra das moças. E tudo isso só a
tornava mais determinada em provar que conseguia suportar o abuso; depois do próprio
Galeno, era ela a mais intolerante em relação a quem vacilasse ou duvidasse do treino.
O inverno tornou-se mais rigoroso. Estava frio e escuro no topo da torre, com exceção da
luz que vinha da escadaria. Era o lugar mais isolado do mundo, e Galeno era o seu deus. Ele
nos moldou em uma unidade. Acreditamos ser uma elite, superiores e privilegiados por
sermos instruídos no Talento. Mesmo eu, que suportava humilhação e espancamentos,
acreditava que era assim. Aqueles que ele destruiu eram desprezados por nós. Víamos apenas
uns aos outros durante esse tempo, e ouvíamos apenas Galeno. No começo, senti saudades de
Breu. Tentei imaginar o que Bronco e Paciência estariam fazendo. Mas, à medida que os
meses passavam, essas ocupações menores deixaram de parecer interessantes. Até mesmo o
Bobo e Ferreirinho se tornaram quase distrações incômodas para mim, tão obsessivamente eu
tentava obter a aprovação de Galeno. O Bobo ia e vinha silenciosamente. Mas havia
momentos em que eu estava mais cansado e dolorido do que o normal, em que o toque do
focinho de Ferreirinho no meu rosto era o único conforto que me restava; e havia momentos
em que me sentia envergonhado do pouco tempo que dedicava ao meu cãozinho em
crescimento.
Depois de três meses de frio e crueldade, Galeno tinha nos reduzido a oito candidatos. O
verdadeiro treino finalmente começou, e também nessa ocasião ele nos devolveu um pouco de
conforto e dignidade. O que recebemos nos pareceu então não apenas um rol de grandes luxos,
mas uma dádiva de Galeno pela qual devíamos ser agradecidos. Um pouco de fruta seca com
as refeições, permissão para usar sapatos, breves conversas toleradas à mesa – era tudo, mas
rastejávamos de gratidão por causa disso. Porém, as mudanças estavam apenas começando.
Tudo volta à minha memória como vislumbres de cristal. Lembro-me da primeira vez que
ele me tocou com o Talento. Estávamos no topo da torre, ainda mais espalhados do que antes,
agora que éramos em menor número.
Ele foi passando por nós, ficando um momento diante de cada um, enquanto os demais
esperavam em silêncio reverente.
– Preparem as mentes para o toque. Estejam abertos para ele, mas não se rendam ao prazer
que advém dele. O propósito do Talento não é o prazer.