O Aprendiz De Assassino - Saga - Robin Hobb

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Seguiu-se outro dia de desconforto e castigo aleatório. Assim vejo a situação agora. E creioque sabia na ocasião ser esse o caso, no fundo do meu coração, mas ele falava sempre deprovarmos que éramos merecedores, de nos tornarmos duros e fortes. Falava de estar em péno frio, com os pés descalços ficando entorpecidos contra a pedra gelada, como se issoconstituísse uma honra. Ele nos colocou em competição não apenas uns contra os outros, mascontra as tristes imagens que ele fazia de nós.– Provem-me que estou enganado – dizia inúmeras e inúmeras vezes. – Imploro a vocês,provem-me que estou enganado, para que possa mostrar pelo menos um pupilo merecedor domeu tempo.E assim tentamos. Como é estranho agora olhar para trás e espantar-me comigo mesmo.Mas, no espaço de um dia, ele tinha conseguido nos isolar e nos mergulhar numa outrarealidade, onde as regras de cortesia e de bom senso estavam suspensas. Ficávamos em pé,silenciosos, no frio, em várias posições desconfortáveis, de olhos fechados, vestindo poucomais do que roupas íntimas. E ele andava entre nós, distribuindo golpes do chicotezinhoridículo e insultos da língua sórdida. E nos empurrava brutalmente vez ou outra, o que é muitomais doloroso quando se está gelado até os ossos.Aqueles que tremiam ou vacilavam era acusados de fraqueza. Durante todo o dia, ele noscriticou pela falta de valor e repetiu que apenas tinha consentido em tentar nos ensinar porqueessa era a vontade do rei. Ignorava as mulheres e, embora falasse de príncipes e reis passadosque haviam usado o Talento em defesa do reino, nenhuma vez mencionou as rainhas eprincesas que tinham feito o mesmo. Não nos deu nem uma ideia do que estava tentando nosensinar. Havia apenas o frio e o desconforto dos exercícios, e a incerteza em relação a quandoseríamos golpeados outra vez. Por que nos esforçamos para suportar tudo isso, não sei. Eassim, rapidamente, nos tornamos todos cúmplices da nossa própria degradação.O sol finalmente se aventurou outra vez em direção ao horizonte. Mas Galeno tinhaguardado duas surpresas finais para nós nesse dia. Deixou que nos levantássemos, abríssemosos olhos e nos alongássemos livremente por alguns momentos. E então fez um discurso final,este para nos advertir contra aqueles entre nós que tentariam prejudicar o treino de todos porcausa de autoindulgências tolas. Andava devagar entre nós enquanto falava, serpenteando pordentro e por fora das fileiras, e vi muitos olhares se virarem e ouvi muitas inspiraçõesprofundas à medida que passava. E então, pela primeira vez nesse dia, aventurou-se emdireção ao canto das mulheres.– Alguns – avisou enquanto perambulava – pensam que estão acima das regras. Pensam quesão merecedores de atenções e indulgências especiais. Tais ilusões de superioridade precisamser expulsas de vocês antes que possam aprender alguma coisa. É dificilmente merecedor domeu tempo ensinar estas lições a preguiçosos e imbecis. É uma pena que eles tenhamencontrado um jeito de participar da nossa reunião. Mas estão aqui entre nós, e eu vou honrara vontade do meu rei e tentar ensiná-los. Muito embora haja apenas uma maneira de acordartais cabeças preguiçosas.Deu duas batidas rápidas em Graça com o chicote. Mas empurrou Serena com força,fazendo-a ficar equilibrada apenas em um joelho, e açoitou-a quatro vezes. Para minhavergonha, fiquei ali com os outros, enquanto cada golpe era dado, e desejei apenas que ela nãogritasse e provocasse maior punição para si mesma.Mas Serena se levantou, cambaleou uma vez e se levantou outra vez ainda, olhando por

cima das cabeças das moças à sua frente. Exalei um suspiro de alívio. Mas logo Galeno estavade volta, movendo-se em círculos como um tubarão em torno de um barco de pesca, falandoagora daqueles que se achavam bons demais para partilhar da disciplina do grupo, daquelesque comiam carne em fartura enquanto os outros se limitavam a grãos integrais e alimentospuros. Comecei a pensar quem teria sido tão louco de visitar a cozinha depois do jantar.Então senti o toque quente do chicote nos ombros. Se tivesse pensado que antes o açoitetinha sido usado com toda a força, ele teria nesse instante provado que eu estava errado.– Pensou que tinha me enganado. Pensou que eu nunca iria saber que Tempero guardavapara o precioso bichinho de estimação dela um prato de gulodices, não foi? Mas eu sei tudo oque se passa em Torre do Cervo. Não se iluda quanto a isso.Compreendi então que estava falando dos restos de carne que eu tinha levado paraFerreirinho.– Essa comida não era para mim – protestei, e em vez de dizer isso, podia ter arrancado aminha própria língua à dentada.Os seus olhos brilharam friamente.– Você tenta mentir para que seja poupado um pouco da dor que merece. Você nuncadominará o Talento. Nunca será merecedor dele. Mas o rei me ordenou que tentasse te ensinar,e assim tentarei. Apesar de você e da sua baixa linhagem.Recebi, humilhado, os golpes que me deu. Ele ia me repreendendo à medida que dava cadagolpe, dizendo aos outros que as regras antigas contra ensinar o Talento a um bastardo tinhamsido criadas justamente para prevenir coisas como aquelas.Depois disso, levantei-me, silencioso e humilhado, enquanto ele atravessava as fileiras,dando alguns golpes aleatórios com o açoite a cada um dos meus companheiros, explicandoenquanto fazia isso que todos devíamos pagar pelas falhas de cada indivíduo. Não importavaque aquela declaração não fizesse nenhum sentido ou que o açoite golpeasse os outroslevemente em relação ao que Galeno tinha me infligido. Era a ideia de que todos estavampagando pela minha transgressão. Nunca me senti tão envergonhado na vida.E então nos mandou embora, rumo a outra triste refeição, semelhante à do dia anterior.Desta vez, ninguém falou nas escadas ou durante a refeição. Em seguida, subi diretamente parao quarto.Carne em breve, prometi ao cãozinho esfomeado que esperava por mim. Apesar das costase músculos doloridos, eu me forcei a limpar o quarto, esfregando os dejetos de Ferreirinho eindo buscar juncos frescos para espalhar pela cama dele. Ferreirinho estava um pouco amuadodepois de ser deixado sozinho o dia inteiro, e fiquei preocupado quando percebi que não tinhaideia de quanto tempo esse treino desgraçado duraria.Esperei até tarde, quando todas as pessoas já estivessem nas suas camas, antes de meaventurar a sair do quarto para ir buscar comida para ele. Aterrorizava-me a ideia de poderser descoberto por Galeno, mas que outras opções eu tinha? Estava na metade da segundaescadaria quando vi uma vela solitária tremeluzente vindo na minha direção. Encolhi-mecontra a parede, certo de que era Galeno. Mas foi o Bobo que veio em minha direção, tãobranco e pálido quanto a vela de cera que trazia. Na outra mão trazia uma cesta de comidacom uma jarra de água se equilibrando em cima dela. Silenciosamente, ele fez um sinal paraque eu voltasse ao quarto.Uma vez dentro do quarto, com a porta fechada, ele se virou para mim.

cima das cabeças das moças à sua frente. Exalei um suspiro de alívio. Mas logo Galeno estava

de volta, movendo-se em círculos como um tubarão em torno de um barco de pesca, falando

agora daqueles que se achavam bons demais para partilhar da disciplina do grupo, daqueles

que comiam carne em fartura enquanto os outros se limitavam a grãos integrais e alimentos

puros. Comecei a pensar quem teria sido tão louco de visitar a cozinha depois do jantar.

Então senti o toque quente do chicote nos ombros. Se tivesse pensado que antes o açoite

tinha sido usado com toda a força, ele teria nesse instante provado que eu estava errado.

– Pensou que tinha me enganado. Pensou que eu nunca iria saber que Tempero guardava

para o precioso bichinho de estimação dela um prato de gulodices, não foi? Mas eu sei tudo o

que se passa em Torre do Cervo. Não se iluda quanto a isso.

Compreendi então que estava falando dos restos de carne que eu tinha levado para

Ferreirinho.

– Essa comida não era para mim – protestei, e em vez de dizer isso, podia ter arrancado a

minha própria língua à dentada.

Os seus olhos brilharam friamente.

– Você tenta mentir para que seja poupado um pouco da dor que merece. Você nunca

dominará o Talento. Nunca será merecedor dele. Mas o rei me ordenou que tentasse te ensinar,

e assim tentarei. Apesar de você e da sua baixa linhagem.

Recebi, humilhado, os golpes que me deu. Ele ia me repreendendo à medida que dava cada

golpe, dizendo aos outros que as regras antigas contra ensinar o Talento a um bastardo tinham

sido criadas justamente para prevenir coisas como aquelas.

Depois disso, levantei-me, silencioso e humilhado, enquanto ele atravessava as fileiras,

dando alguns golpes aleatórios com o açoite a cada um dos meus companheiros, explicando

enquanto fazia isso que todos devíamos pagar pelas falhas de cada indivíduo. Não importava

que aquela declaração não fizesse nenhum sentido ou que o açoite golpeasse os outros

levemente em relação ao que Galeno tinha me infligido. Era a ideia de que todos estavam

pagando pela minha transgressão. Nunca me senti tão envergonhado na vida.

E então nos mandou embora, rumo a outra triste refeição, semelhante à do dia anterior.

Desta vez, ninguém falou nas escadas ou durante a refeição. Em seguida, subi diretamente para

o quarto.

Carne em breve, prometi ao cãozinho esfomeado que esperava por mim. Apesar das costas

e músculos doloridos, eu me forcei a limpar o quarto, esfregando os dejetos de Ferreirinho e

indo buscar juncos frescos para espalhar pela cama dele. Ferreirinho estava um pouco amuado

depois de ser deixado sozinho o dia inteiro, e fiquei preocupado quando percebi que não tinha

ideia de quanto tempo esse treino desgraçado duraria.

Esperei até tarde, quando todas as pessoas já estivessem nas suas camas, antes de me

aventurar a sair do quarto para ir buscar comida para ele. Aterrorizava-me a ideia de poder

ser descoberto por Galeno, mas que outras opções eu tinha? Estava na metade da segunda

escadaria quando vi uma vela solitária tremeluzente vindo na minha direção. Encolhi-me

contra a parede, certo de que era Galeno. Mas foi o Bobo que veio em minha direção, tão

branco e pálido quanto a vela de cera que trazia. Na outra mão trazia uma cesta de comida

com uma jarra de água se equilibrando em cima dela. Silenciosamente, ele fez um sinal para

que eu voltasse ao quarto.

Uma vez dentro do quarto, com a porta fechada, ele se virou para mim.

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