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Eu estava faminto, com as mãos inchadas e vermelhas do frio, e com a boca tão seca que
não teria conseguido falar mesmo se quisesse. Os outros aparentavam estar mais ou menos na
mesma, embora alguns tivessem sofrido mais intensamente do que eu. Pelo menos eu estava
habituado a tarefas que levavam longas horas, muitas delas ao ar livre. Graça, cerca de um
ano mais velha do que eu, estava acostumada a ajudar a Dona Despachada com a costura. O
rosto redondo tinha se tornado mais branco que vermelho com o frio, e eu a ouvi falar alguma
coisa em segredo para Serena, que pegou na mão dela enquanto descíamos as escadas.
– Não teria sido tão ruim se ele tivesse nos dedicado pelo menos um momento de atenção –
respondeu Serena em segredo. Então tive a desagradável experiência de vê-las olhar de
relance para trás, receosas, verificando se Galeno tinha visto as duas falarem uma com a
outra.
O jantar dessa noite foi a mais triste refeição que alguma vez eu tinha suportado em Torre
do Cervo. Foi servida para nós uma papa fria de grão cozido, pão, água e nabos cozidos e
amassados. Galeno, sem comer, sentou-se à cabeceira da nossa mesa. Não houve conversas.
Penso que nem sequer olhamos uns para os outros. Comi as porções que foram designadas
para mim e deixei a mesa quase tão esfomeado como quando tinha chegado.
Na metade do caminho de volta ao quarto, lembrei-me de Ferreirinho. Voltei à cozinha para
buscar os ossos e restos que Tempero guardou para mim, e uma jarra de água para reabastecer
a tigela dele. Pareceram um terrível fardo para mim enquanto subia as escadas. Achei estranho
que um dia de relativa inatividade, lá fora no frio, tivesse me cansado tanto quanto um dia de
trabalho pesado.
Assim que cheguei ao quarto, o cumprimento acolhedor de Ferreirinho e o seu consumo
ávido da carne foram como uma cura milagrosa. Logo que acabou de comer, nós nos
aninhamos na cama. Ele queria me morder e lutar comigo, mas desistiu depressa. Deixei o
sono tomar conta de mim.
Acordei, como se tivesse sido atingido por um relâmpago, no meio da escuridão, receoso
de ter dormido demais. Um olhar rápido para o céu me informou que eu conseguiria vencer o
sol numa corrida para o topo da torre, mas por pouco. Não tinha tempo de me lavar ou comer
ou limpar o quarto, e ainda bem que Galeno tinha proibido sapatos ou meias, pois também não
tinha tempo de calçar os meus. Estava cansado demais para até mesmo me sentir um idiota ao
correr pelo terreiro e pelas escadas acima, para a torre. Podia ver os outros correndo na
minha frente debaixo da luz trêmula da tocha, e, quando emergi da escadaria, o açoite de
Galeno desceu sobre minhas costas.
Atingiu-me com uma precisão inesperada através da camisa fina. Gritei tanto de surpresa
quanto de dor.
– Fique em pé como um homem e tenha domínio sobre si mesmo, bastardo – disse-me
Galeno duramente e me bateu outra vez com o açoite.
Os outros tinham voltado aos seus lugares do dia anterior. Pareciam tão desgastados quanto
eu, e a maior parte também parecia tão chocada quanto eu pela forma como Galeno tinha me
tratado. Até hoje não sei o porquê, mas fui silenciosamente para o meu lugar e fiquei ali,
encarando Galeno.
– Quem quer que chegue em último lugar estará atrasado e será tratado assim – avisou-nos.
Aquilo me pareceu ser uma regra cruel, pois a única maneira de evitar o açoite no dia
seguinte seria chegar suficientemente cedo para vê-lo açoitar um dos meus companheiros.