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Como se o movimento do rapaz fosse de alguma maneira culpa minha. Uma forte repugnância
a ele tomou conta de mim. Tinha recebido golpes de Hode durante a instrução em bastões e
espadas, e suportado desconforto mesmo com Breu, quando me demonstrava pontos de
contato, técnicas de estrangulamento e meios de silenciar um homem sem incapacitá-lo. Tinha
sofrido a minha dose de joelhadas, pontapés e pancadas de Bronco, algumas justificadas,
outras causadas pela necessidade de um homem muito ocupado exprimir as suas frustrações.
Mas nunca tinha visto um homem bater num rapaz com o aparente deleite que Galeno tinha
acabado de demonstrar. Eu me esforcei para manter uma expressão impassível e olhar para
ele sem parecer encará-lo. Porque sabia que, se virasse a cara para ele, seria acusado de não
prestar atenção.
Satisfeito, Galeno acenou com a cabeça para si mesmo e retomou o discurso. Para nos
ensinar a dominar o Talento, precisava primeiro nos ensinar a dominar a nós mesmos.
Privação física era a chave. Amanhã deveríamos chegar antes que o sol estivesse acima do
horizonte. Não poderíamos vestir sapatos, meias, capas ou quaisquer peças de lã. As cabeças
deveriam estar descobertas. O corpo deveria estar escrupulosamente limpo. Pediu-nos que o
imitássemos na alimentação e nos hábitos do dia a dia. Teríamos de evitar carne, fruta doce,
pratos temperados, leite e “comidas frívolas”. Afirmou que deveríamos comer papas de aveia
e água fria, pães simples e tubérculos cozidos. Deveríamos evitar todas as conversas
desnecessárias, especialmente com o sexo oposto. Advertiu-nos demoradamente contra
qualquer tipo de desejos “sensuais”, nos quais incluiu desejos de comida, sono e calor. E nos
informou que tinha requisitado uma mesa separada para nós no salão, onde poderíamos comer
comida apropriada e não ser distraídos por conversas ociosas. Ou perguntas. Acrescentou a
última frase quase como uma ameaça.
E então nos fez realizar uma série de exercícios. Fechem os olhos e rolem os globos
oculares para cima o máximo possível. Esforcem-se para rolá-los completamente para olhar o
interior do próprio crânio. Sinta a aflição criada por esse exercício. Imaginem o que poderiam
ver se conseguissem rolar tanto os olhos. Valeu a pena e é certo aquilo que viram? De olhos
ainda fechados, equilibrem-se numa perna só. Esforcem-se para se manter completamente
imóveis. Encontrem um equilíbrio, não apenas do corpo, mas do espírito. Afastem da mente
todos os pensamentos sem valor e poderão se manter assim indefinidamente.
Enquanto estávamos ali, sempre de olhos fechados, executando esses exercícios variados,
ele andava entre nós. Podia detectá-lo pelo som do açoite. “Concentre-se!”, ordenava, ou
“Tente, pelo menos, tente!”. Eu próprio senti o açoite ao menos quatro vezes nesse dia. Era
uma coisa trivial, pouco mais do que uma leve pancada, mas era desconcertante ser tocado
com um chicote, mesmo sem dor. Da última vez que caiu em cima de mim foi sobre o ombro, e
enrolou-se em torno do meu pescoço nu enquanto a ponta acertava o meu queixo. Estremeci,
mas consegui manter os olhos fechados e o meu equilíbrio precário sobre um joelho dolorido.
À medida que ele se afastava, eu podia sentir o lento gotejar de sangue quente se formando no
queixo.
Manteve-nos ali o dia inteiro, libertando-nos quando o sol tinha a forma de metade de uma
moeda de cobre no horizonte, e os ventos da noite começavam a se levantar. Nem uma vez nos
deixou parar para comida, água ou qualquer outra necessidade. Com um sorriso inflexível no
rosto, observou-nos passar diante dele em fila e, apenas quando tínhamos passado pela porta,
nos sentimos livres para cambalear e fugir pela escadaria abaixo.