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desesperadamente que você seja bom em alguma coisa. Passa o tempo te testando, esperando
que manifeste algum talento súbito, para que ela possa mostrá-lo por aí e dizer às pessoas:
“Veja. Eu disse que havia algo nele”. Ora, eu tive os meus próprios garotos e sei que os
garotos não são desse jeito. Não aprendem, nem crescem, nem têm boas maneiras quando
estamos olhando para eles. Mas, se virarmos as costas e depois voltarmos, lá estarão eles,
mais espertos, mais altos e encantando todo mundo, exceto as próprias mães.
Eu me sentia um pouco perdido.
– Quer que eu aprenda a tocar isto para fazer Paciência feliz?
– Para que ela possa sentir que te deu algo.
– Ela me deu o Ferreirinho. Nada que possa me dar será melhor do que ele.
Renda ficou surpresa com a minha súbita sinceridade. E eu também.
– Bem. Você pode dizer isso para ela. Mas pode também tentar aprender a tocar os tubos do
mar e a recitar a balada e cantar uma das antigas orações. São coisas que ela perceberá
melhor.
Depois que Renda foi embora, sentei e fiquei pensando, preso entre a ira e a melancolia.
Paciência desejava que eu fosse um sucesso e sentia que precisava descobrir algo que eu
pudesse fazer. Como se antes dela eu nunca tivesse feito ou sido bem-sucedido em nada. Mas
à medida que refletia sobre os meus atos e sobre o que Paciência conhecia de mim, percebi
que ela tinha mesmo que ter uma imagem bastante rasa de mim. Sabia ler e escrever e tomar
conta de um cavalo ou de um cão. Também podia destilar venenos, fazer poções soníferas,
roubar, mentir e surrupiar, tudo coisas que não lhe agradariam mesmo que soubesse. Portanto,
havia algo em mim, além de ser espião ou assassino?
Na manhã seguinte, acordei cedo e procurei Penacarriço. Ficou contente quando lhe pedi
que me emprestasse pincéis e tintas. O papel que me deu era melhor do que as folhas de
exercício, e me fez prometer que lhe mostraria o resultado dos meus esforços. Enquanto subia
as escadas, comecei a pensar como teria sido acompanhá-lo enquanto aprendiz. Com certeza
não seria mais difícil do que aquilo que tinha sido exigido de mim nos últimos tempos.
Mas a tarefa a que me propus provou ser mais difícil do que qualquer coisa a que Paciência
tivesse me submetido. Observava Ferreirinho adormecido em sua almofada. Como a curva do
dorso podia ser tão diferente da curva de uma runa, as sombras das orelhas tão diferentes dos
sombreados das ilustrações do herbanário que com muito esforço eu copiava do trabalho de
Penacarriço? Mas eram, e desperdicei folha após folha de papel até que de repente percebi
que eram as sombras em torno do cachorro que faziam as curvas do dorso e a linha da coxa.
Precisava pintar menos, não mais, e pôr na folha o que o olho via em vez do que a mente
sabia.
Era tarde quando lavei os pincéis e os deixei de lado. Tinha duas folhas aceitáveis e uma
terceira de que gostava, embora fosse disforme e embaçada, mais como o sonho de um
cãozinho do que um cãozinho de verdade. Mais o que eu sentia do que o que via, pensei
comigo mesmo.
Mas, quando cheguei à porta da Dama Paciência, olhei para os papéis na mão e de repente
me vi como uma criança pequena se preparando para mostrar dentes-de-leão amassados e
ressecados à mãe. Que passatempo adequado era esse para um jovem? Se eu fosse
verdadeiramente o aprendiz de Penacarriço, exercícios desse tipo seriam apropriados, pois
um bom escriba deve ilustrar e esclarecer tão bem quanto escreve. Mas a porta se abriu antes