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Guardo outra memória desses tempos, mas não é nítida. Em vez disso, é calorosa e
suavemente colorida, como uma antiga e rica tapeçaria contemplada num quarto escuro.
Lembro-me de ser acordado do sono pela agitação do cachorro e pela luz amarela de uma
lanterna erguida à minha frente. Dois homens inclinavam-se sobre mim, mas, atrás deles,
Bronco permanecia imóvel, e não senti nenhum receio.
– Agora você o acordou – advertiu um, e era o Príncipe Veracidade, o homem do quarto
calorosamente iluminado da minha primeira tarde ali.
– E? Voltará a adormecer imediatamente assim que tivermos partido. Diabos! Ele ostenta
também os olhos do pai. Juro que teria reconhecido o sangue que nele flui onde quer que o
visse. Não será possível negá-lo a ninguém que o veja. Mas nem você nem o Bronco têm mais
juízo do que uma pulga? Bastardo ou não, por acaso se põe uma criança num estábulo entre os
animais? Não havia nenhum outro lugar onde colocá-lo?
O homem que falava assemelhava-se a Veracidade no queixo e nos olhos, mas as
semelhanças acabavam aí. Este homem era muito mais novo. Não tinha barba, e o cabelo,
perfumado e suavizado, era mais fino e castanho. Tinha as bochechas e a testa enrubescidas
pelo frio noturno, mas era algo novo, diferente do rubor de Veracidade, causado pelas
agressões do clima. Além disso, Veracidade vestia-se como os seus homens, em roupas
práticas de lã, de trama resistente e cores pardas, ao passo que o jovem a seu lado brilhava
em escarlates e amarelo-esverdeados, e a sua capa estendia-se em duas vezes a largura de
tecido necessária para cobrir um homem. O gibão que surgia por baixo dela era creme e
repleto de rendas. O lenço que usava no pescoço segurava-se por um alfinete com a forma de
um cervo saltitante, feito de ouro, com uma joia verde-cintilante no lugar do único olho; e as
cuidadosas voltas que dava às palavras eram como fios de ouro entrelaçados, muito diferentes
dos encadeamentos simples de vocábulos que Veracidade empregava.
– Eu não pensei nisso, Majestoso. Que sei eu de crianças? Entreguei-o aos cuidados de
Bronco. Ele é o homem de confiança de Cavalaria, e assim como tem cuidado dos...
– Não foi minha intenção desrespeitar o sangue, senhor – disse Bronco em honesta
confusão. – Eu sou o homem de confiança de Cavalaria, e tratei do garoto o melhor que pude.
Podia ter feito para ele uma cama de palha na caserna, mas ele me pareceu pequeno demais
para ficar na companhia desses homens, com as suas idas e vindas a toda hora, as suas brigas,
bebedeiras e barulho. – no tom das palavras dele ficava claro o seu próprio desagrado por
tais companhias. – Instalado aqui, tem tranquilidade, e o cachorrinho já se afeiçoou a ele. E,
com a minha Raposa tomando conta dele durante a noite, ninguém tentará fazer mal a ele sem
que os dentes dela façam o intruso pagar bem caro pela ousadia. Meus senhores, eu mesmo sei
muito pouco de crianças e pareceu-me...
– Está bem, Bronco, está bem – disse calmamente Veracidade, interrompendo-o. – Se
alguém devia ter pensado nisso, devia ter sido eu. Deixei isso com você e não acho que tenha
cometido nenhum erro. É mais do que muitas crianças têm neste povoado, Eda sabe disso.
Neste lugar, e por enquanto, está bem.
– Terá de ser diferente quando ele for para Torre do Cervo – disse Majestoso, não
parecendo estar contente.
– Então o nosso pai deseja que ele vá conosco para Torre do Cervo? – a pergunta veio de
Veracidade.
– É o que quer o nosso pai. Mas não é o que quer a minha mãe.