O Aprendiz De Assassino - Saga - Robin Hobb
condições. Se tentasse dormir agora, a cama ia começar a girar, e dentro de uma hora euestaria vomitando. O serão tinha sido agradável, e me pareceu que aquela seria uma formadesprezível de terminá-lo; então, fui ao Jardim das Mulheres em vez de ir para o quarto.Num canto do jardim, entre uma parede aquecida pelo sol e uma lagoa pequena, crescemsete variedades de timo. As fragrâncias podem ser estonteantes num dia quente, mas, naquelemomento, com a tardinha virando noite, os odores misturados pareciam acalmar a minhacabeça. Molhei o rosto na lagoa e me encostei à parede de rocha que ainda emanava o calordo sol. As rãs coaxavam umas às outras. Baixei os olhos e observei a superfície calma dalagoa para evitar que minha cabeça girasse.Passos. E então uma voz de mulher me perguntou num tom ríspido:– Você está bêbado?– Não exatamente – respondi, afável, pensando que era Tília, a moça do pomar. – Não tivetempo nem dinheiro suficientes para isso – acrescentei em tom de brincadeira.– Suponho que aprendeu isso com Bronco. Esse homem é um beberrão e um devasso, eandou cultivando as mesmas características em você. Consegue sempre rebaixar ao seu nívelaqueles que o rodeiam.A amargura na voz da mulher me fez olhar para cima. Olhei-a com os olhos semicerradosatravés da luz clara, tentando distinguir os traços da sua fisionomia. Era a senhora da noiteanterior. Imóvel na trilha do jardim, trajando vestes simples, parecia à primeira vista serpouco mais que uma menina. Era magra e mais baixa do que eu, embora não fosse muito altopara os meus quatorze anos, mas o rosto dela era o de uma mulher feita e, nesse momento,tinha a boca arqueada numa linha que expressava claramente a condenação dos meus atos,confirmada pelas sobrancelhas franzidas sobre os olhos cor de avelã. O cabelo era escuro eencaracolado e, embora tivesse tentado prendê-lo, algumas madeixas tinham escapado para atesta e o pescoço.Não que eu me sentisse compelido a defender Bronco, mas é que o meu estado não eraresponsabilidade dele. Portanto, tentei explicar-lhe que Bronco estava a quilômetros dedistância, em outras terras, de modo que dificilmente ele poderia ser considerado responsávelpor aquilo que eu punha na boca e engolia.A senhora deu dois passos na minha direção.– Mas nunca te ensinou nada melhor, não é? Nunca te aconselhou contra a bebedeira, não é?Há um ditado nas Terras do Sul que diz que há verdade no vinho. Deve haver alguma nacerveja também. E eu a disse naquela noite.– Na verdade, senhora, ele estaria imensamente descontente comigo neste momento.Primeiro, me censuraria por não me levantar quando uma dama está falando comigo – e entãoeu bruscamente me coloquei de pé. – E depois, ele me daria um sermão longo e severo sobre ocomportamento esperado de alguém que tem nas veias o sangue de um príncipe, senão ostítulos. – Consegui fazer uma reverência e, contente com o meu sucesso, endireitei-me com umfloreio. – Portanto, boa noite para você, gentil dama do jardim. Desejo-lhe boa-noite e retiroeste ignorante da sua presença.Passava já sob o arco da entrada quando ela me chamou:– Espere!Mas o meu estômago fez um ruído de protesto, e fingi não ouvir. Ela não veio atrás de mim,mas tive a certeza de que me observava, e me mantive de cabeça erguida e no passo certo até
estar fora do pátio da cozinha. Arrastei-me até as baias, onde vomitei em cima de uma pilhade excrementos, e acabei dormindo numa baia limpa e vazia porque as escadas que levavamaos aposentos de Bronco me pareceram inclinadas demais.Mas a juventude é incrivelmente resiliente, em especial quando se sente ameaçada. Estavaem pé na madrugada do dia seguinte, pois sabia que a chegada de Bronco era esperada à tarde.Eu me lavei no estábulo e percebi que a túnica que tinha usado nos últimos três dias precisavaser substituída. Fiquei duplamente consciente da sua condição quando, no corredor à entradado quarto, a senhora me confrontou. Olhou-me de cima a baixo e, antes que eu pudesse dizeralguma coisa, falou para mim:– Troque a camisa – disse-me. E então acrescentou: – Essas calças fazem você parecer umacegonha. Diga à Dona Despachada que elas precisam ser substituídas.– Bom dia, senhora – disse.Não era uma resposta, mas foram as únicas palavras que vieram à minha boca no meuestado de espanto. Decidi que era muito excêntrica, mais até do que a Dama Timo. A minhamelhor maneira de lidar com ela seria tentar agradar-lhe e fazer suas vontades. Esperei quevirasse as costas e fosse embora. Em vez disso, ela continuou com os olhos presos em mim.– Você toca algum instrumento musical? – perguntou.Abanei a cabeça, mudo.– Então canta?– Não, senhora.Pareceu incomodada ao perguntar:– Então talvez tenha sido ensinado a recitar os Épicos e os versos eruditos, das ervas, dascuras e de navegação... esse tipo de coisa?– Apenas os que se referem ao tratamento de cavalos, falcões e cães – disse-lhe, quasehonestamente.Bronco tinha exigido que eu aprendesse esses. Breu tinha me ensinado alguns sobre venenose antídotos, mas tinha me prevenido de que não eram conhecidos pela maior parte daspessoas, e não eram para ser recitados casualmente.– Mas você dança, é claro. E foi instruído na composição de versos?Estava completamente confuso.– Senhora, penso que deve ter me confundido com outro. Talvez esteja pensando emAugusto, o sobrinho do rei. É um ano ou dois mais novo que eu e...– Não estou enganada. Responda à pergunta! – exigiu, numa voz quase estridente.– Não, senhora. Os ensinamentos de que está falando são para aqueles de... nascimentonobre. A mim não foram ensinados.A cada uma das minhas negações, ela parecia mais indignada. A boca endireitou-se mais, eos olhos cor de avelã ficaram nublados.– Isso é intolerável – declarou e, virando-se num alvoroço de saias, desceu correndo pelocorredor.Passado um momento, fui para o quarto, troquei de camisa e vesti as calças mais compridasque eu tinha. Tirei a senhora dos meus pensamentos e me empenhei nas tarefas e lições do dia.Estava chovendo nessa tarde quando Bronco voltou. Encontrei-o à porta do estábulo efiquei segurando a cabeça do cavalo enquanto ele saltava com dificuldade da sela.– Você cresceu, Fitz – comentou, e me inspecionou com um olhar crítico, como se eu fosse
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condições. Se tentasse dormir agora, a cama ia começar a girar, e dentro de uma hora eu
estaria vomitando. O serão tinha sido agradável, e me pareceu que aquela seria uma forma
desprezível de terminá-lo; então, fui ao Jardim das Mulheres em vez de ir para o quarto.
Num canto do jardim, entre uma parede aquecida pelo sol e uma lagoa pequena, crescem
sete variedades de timo. As fragrâncias podem ser estonteantes num dia quente, mas, naquele
momento, com a tardinha virando noite, os odores misturados pareciam acalmar a minha
cabeça. Molhei o rosto na lagoa e me encostei à parede de rocha que ainda emanava o calor
do sol. As rãs coaxavam umas às outras. Baixei os olhos e observei a superfície calma da
lagoa para evitar que minha cabeça girasse.
Passos. E então uma voz de mulher me perguntou num tom ríspido:
– Você está bêbado?
– Não exatamente – respondi, afável, pensando que era Tília, a moça do pomar. – Não tive
tempo nem dinheiro suficientes para isso – acrescentei em tom de brincadeira.
– Suponho que aprendeu isso com Bronco. Esse homem é um beberrão e um devasso, e
andou cultivando as mesmas características em você. Consegue sempre rebaixar ao seu nível
aqueles que o rodeiam.
A amargura na voz da mulher me fez olhar para cima. Olhei-a com os olhos semicerrados
através da luz clara, tentando distinguir os traços da sua fisionomia. Era a senhora da noite
anterior. Imóvel na trilha do jardim, trajando vestes simples, parecia à primeira vista ser
pouco mais que uma menina. Era magra e mais baixa do que eu, embora não fosse muito alto
para os meus quatorze anos, mas o rosto dela era o de uma mulher feita e, nesse momento,
tinha a boca arqueada numa linha que expressava claramente a condenação dos meus atos,
confirmada pelas sobrancelhas franzidas sobre os olhos cor de avelã. O cabelo era escuro e
encaracolado e, embora tivesse tentado prendê-lo, algumas madeixas tinham escapado para a
testa e o pescoço.
Não que eu me sentisse compelido a defender Bronco, mas é que o meu estado não era
responsabilidade dele. Portanto, tentei explicar-lhe que Bronco estava a quilômetros de
distância, em outras terras, de modo que dificilmente ele poderia ser considerado responsável
por aquilo que eu punha na boca e engolia.
A senhora deu dois passos na minha direção.
– Mas nunca te ensinou nada melhor, não é? Nunca te aconselhou contra a bebedeira, não é?
Há um ditado nas Terras do Sul que diz que há verdade no vinho. Deve haver alguma na
cerveja também. E eu a disse naquela noite.
– Na verdade, senhora, ele estaria imensamente descontente comigo neste momento.
Primeiro, me censuraria por não me levantar quando uma dama está falando comigo – e então
eu bruscamente me coloquei de pé. – E depois, ele me daria um sermão longo e severo sobre o
comportamento esperado de alguém que tem nas veias o sangue de um príncipe, senão os
títulos. – Consegui fazer uma reverência e, contente com o meu sucesso, endireitei-me com um
floreio. – Portanto, boa noite para você, gentil dama do jardim. Desejo-lhe boa-noite e retiro
este ignorante da sua presença.
Passava já sob o arco da entrada quando ela me chamou:
– Espere!
Mas o meu estômago fez um ruído de protesto, e fingi não ouvir. Ela não veio atrás de mim,
mas tive a certeza de que me observava, e me mantive de cabeça erguida e no passo certo até